Por que da surpresa da Ford deixar de fabricar carros no Brasil?

Curioso ler comentários de surpresa sobre a Ford deixar de fabricar carros no Brasil. Este caso é parte de um movimento global de adequação da indústria automobilista para os veículos elétricos. Infelizmente, o maior impacto é a perda de 5.000 postos de trabalho. Na mesma segunda-feira (11/01), o Banco do Brasil anunciou o plano de fechamento de 361 agências e a redução de 5.000 funcionários. Na semana anterior foi anunciada a fusão da FCA e PSA, criando a Stellantis, que pretende economizar 5 bilhões de euros por ano após a reestruturação que inclui, certamente, a redução de funcionários. Ainda na mesma semana, o valor de mercado da Tesla ultrapassou US$ 800 bilhões, superando o Facebook no ranking de empresas mais valiosas do mundo. Em dezembro de 2020, a Mercedes e Audi anunciaram o encerramento da produção de automóveis no Brasil. Como vemos a transformação dos negócios está em pleno movimento e, acredito, que tenha assumido uma curva exponencial com a pandemia da Covid-19. Muitas pessoas ainda não se deram conta que o ambiente de negócios mudou. Entretanto, uma coisa é certa, quem não acompanhar as transformações dos negócios não encontrará espaço para trabalhar em breve.

A Ford é uma empresa centenária com grande capacidade para se reinventar. Sua missão é “tornar a vida das pessoas melhor, tornando a mobilidades acessível e econômica”. Ao longo dos anos aprendeu a acompanhar as transformações tecnológicas e as mudanças do comportamento dos consumidores. O mercado automobilístico mudou, significativamente, com a mudança do comportamento dos consumidores, optando por serviços compartilhados, e pelas fortes pressões de proteção ao meio ambiente. Em 2016, anunciou que pararia de vender carros de passeio nos Estados Unidos, como parte de um processo mais amplo de transformação que a empresa já vem investindo há algum tempo. Na prática, o objetivo é investir em segmentos mais lucrativos e em projetos de soluções de mobilidade. Dentro desta linha, a aposta é nas SUVs, provável razão para manter a fábrica na Argentina que produz a picape Ranger e descontinuou a produção do Focus. A nota que comunica o fechamento das fábricas no Brasil, a Ford diz estar comprometida com os consumidores no Brasil e na América do Sul com a nova picape Ranger, a Transit e vários de seus modelos mais icônicos, com planos de lançar diversos novos veículos conectados e eletrificados. O que chama a atenção é para a nova geração de carros conectados e eletrificados.

Basicamente, existem duas formas de as empresas com velhos modelos de negócios sobreviverem por mais um tempo: obtendo subsídios dos governos ou associando-se entre si para uma sobrevida nos negócios. O subsídio é a forma mais fácil, porém nociva para a sociedade pela renúncia de impostos. Por questões de responsabilidade social, as empresas e os governos devem avaliar muito bem a concessão de subsídios para não prejudicar a sociedade. Em alguns casos, como para incentivar a introdução de um novo modelo de negócio, que comprovadamente seja benéfico para a sociedade no longo prazo, o subsídio pode ser justificado. A outra opção de fusão de empresas, é mais complexa, porém uma boa alternativa de transição para outros negócios, pois a economia nas operações pode financiar a criação de novos modelos de negócios, caminho seguido pela FCA e PSA com a criação da Stellantis em 2021 e por uma nova aliança global entre Ford e Volkswagen para a criação de novos produtos e tecnologias, estabelecida em 2019.

Transformação no setor automobilístico

A corrida no setor automobilístico é para o lançamento de carros elétricos. As novas legislações dos países europeus, destacando a Alemanha, é a proibição da fabricação de carros a combustão a partir de 2030, coincidindo com a agenda dos objetivos sustentáveis das Nações Unidas. Entretanto, várias fabricantes de carros já anteciparam o término da produção de carros a combustão. O Estado da Califórnia anunciou a proibição da venda de veículos a gasolina e diesel a partir de 2035, permitindo apenas a venda de veículos elétricos. A Volkswagen produziu o último veículo com motor a combustão na sua fábrica de Zwickau, na Alemanha, em junho de 2020. Neste movimento, muitas montadoras estão investindo em países que ainda não colocaram restrições aos carros de motores a combustão para maximizar seus investimentos em produtos. Ou seja, quando um país recebe investimento para ampliar a produção de carros a combustão não significa que o país é privilegiado.

A Tesla, de Elon Musk, soube aproveitar as oportunidades e agregou novos conceitos no mercado automobilístico. O fato de a plataforma do Tesla ser open source, ou seja, qualquer um pode baixar e usar as patentes dos carros é uma inovação no mercado automobilístico, exceção óbvia é a tecnologia das baterias de alto desempenho. Isto significa que podemos baixar uma parte do carro e mandar imprimir em uma impressora 3D.

A Tesla construiu em Sparks, Nevada, uma Gigafactory, nome vem da palavra ‘Giga’, a unidade de medida que representa “bilhões”. O conceito é construir em fases para que a Tesla possa começar a fabricar imediatamente dentro das seções acabadas e continuar a expandir depois disso, mesmo conceito da fábrica da Ford em Camaçari, em 2020. Outra Gigafactory está sendo construída em Berlin-Brandenburg, para produzir baterias, powertrains para uso em veículos Tesla, e para montar o Tesla Model Y, com um início de produção previsto para o final de 2021.

Tesla Gigafactory

Outra Gigafactory deverá ser construída na China. O governo brasileiro tenta trazer uma para o Brasil. Poucas fábricas, altamente automatizadas, produzindo bilhões de peças para atender a demanda mundial. As Gigafactories são projetadas para construir todas as partes de um carro e, provavelmente, qualquer outro produto.

Uma mudança para as atuais concessionárias de veículos é se tornarem centros de impressão 3D de partes de carros, tornando o modelo de fábricas atuais de carros obsoleto. Desta forma, você compra uma plataforma, como por exemplo o Blanc Robot da australiana Applied EV, e em casa você projeta o seu próprio carro e manda imprimir em uma concessionária.

Blanc Robot

Transformação no setor financeiro

A transformação no setor financeiro também está em curso. A venda das operações de varejo do Citibank e HSBC, globalmente, mostrou uma nova tendência do mercado financeiro. No Brasil, as operações de varejo do Citibank foram adquiridas pelo Itaú e o Bradesco ficou com as operações do HSBC, ambas em 2016. Atualmente, os bancos comerciais tradicionais enfrentam uma forte concorrência das fintechs, startups que trabalham para inovar e otimizar serviços do sistema financeiro, tendo como vantagem competitiva custos operacionais muito menores comparados às instituições tradicionais.

Muito se irá discutir sobre os impactos da pandemia da Covid-19. Um dos impactos foi a enorme bancarização da população brasileira, com a inclusão dos chamados “invisíveis” no setor bancário. O diretor de organização do sistema financeiro e resolução do Banco Central (BC), João Manoel Pinho de Mello, afirmou em dezembro de 2020 que a autoridade monetária quer “lentamente” substituir o uso do dinheiro físico por meios de pagamentos eletrônicos. Movimento que avança e agora acelerado com o PIX, patrocinado pelo Banco Central.

Dentro deste cenário, as atuais agências bancárias se tornam obsoletas. Os serviços de atendimento a clientes operados por sistemas de inteligência artificial podem, tranquilamente, substituir os humanos. Isto irá gerar uma nova onda de demissões no setor bancário, assim como aconteceu décadas atrás com a automação bancária.

O futuro do emprego

No final do dia, quando discutimos transformação de cenários de negócios com a introdução de novas tecnologias, entre na pauta as questões do emprego e da renda. É fato que uma grande parte das atividades humanas repetitivas no trabalho, sejam elas manuais ou intelectuais, será substituída pela automação. O relatório The Future of Jobs de 2020 mostra que 43% das empresas pesquisadas indicam que reduzirão sua força de trabalho devido à integração de tecnologia, 41% planejam expandir o uso de contratados para tarefas especializadas e 34% planejam expandir sua força de trabalho devido à integração de tecnologia.

O relatório ainda mostra que, embora o número de empregos destruídos seja superado pelo número de “empregos de amanhã”, a criação de empregos está diminuindo enquanto a destruição de empregos se acelera. Os empregadores esperam que, até 2025, as funções cada vez mais redundantes caiam de 15,4% da força de trabalho para 9% (queda de 6,4%), e que as profissões emergentes cresçam de 7,8% para 13,5% (crescimento de 5,7%) da base total de funcionários, com base das empresas que responderam à pesquisa. Com base nesses números, estima-se que em 2025, 85 milhões de empregos podem ser substituídos por uma mudança na divisão de trabalho entre humanos e máquinas, enquanto 97 milhões de novos papéis podem surgir que são mais adaptados à nova divisão de trabalho entre humanos, máquinas e algoritmos.

O grande desafio é qualificar a mão de obra para assumir os “empregos de amanhã”. O ensino à distância (EaD) assume um papel importante na qualificação da mão de obra. Segundo o relatório, houve um aumento de quatro vezes na procura de cursos online por iniciativa própria das pessoas, as empresas aumentaram em cinco vezes a disponibilidade de cursos online para seus empregados e um aumento de nove vezes de pessoas que buscam cursos online em programas governamentais. Interessante observar que as pessoas que estão empregadas deram ênfase a cursos de desenvolvimento pessoal (aumento de 88%) e as pessoas desempregadas buscaram o aprendizado de habilidade digitais, como análise de dados, ciência da computação e tecnologia de informação. Ao que parece, os desempregados estão mais bem preparados para assumir os “empregos de amanhã” que os atuais empregados.

O papel da sociedade e do governo

Para acompanhar as novas tecnológicas disruptivas, a transformação dos negócios e as mudanças culturais da sociedade, é necessário a disposição e colaboração de toda a sociedade e do governo. Como, em tese, o governo deve atender aos anseios e atender as demandas da sociedade, as instituições do governo, em todas as esferas administrativas, devem participar dos movimentos de transformação da economia e sociedade, coordenando iniciativas e programas para facilitar a criação de novos negócios e garantindo que existam programas educacionais que qualifiquem as pessoas para atuarem no mercado de trabalho. Os empresários devem, de forma organizada, elaborar cenários prospectivos antevendo movimentos do mercado e criar diretrizes para os órgãos do governo avaliarem os impactos na sociedade, incluindo meio ambiente, e criar arcabouços legais e programas executivos para atender as demandas. As escolas e Universidades, com base nas diretrizes, oferecem cursos e treinamentos adequados para atender as demandas de qualificação. As pessoas, conhecendo as diretrizes, buscarem qualificação para atender as demandas do mercado, incluindo iniciativas de empreendedorismo.

As audiências públicas são importantes para obter contribuições da sociedade, vindas de qualquer cidadão, para o aperfeiçoamento de decretos, normas regulatórias de agências e projetos de lei.

Um bom exemplo é a política industrial desenhada para ajustar os rumos do setor automotivo até 2030, a legislação que criou o programa Rota 2030. O programa concede incentivos para pesquisa, desenvolvimento e nacionalização de autopeças, eficiência energética e adoção de equipamentos e sistemas de segurança veicular. Segundo Antonio Megale, presidente da Anfavea, associação dos fabricantes de veículos, a indústria ganhou metas e ferramentas para investir e melhorar seus produtos, tornando-os mais eficientes e seguros. O programa prevê renúncia fiscal para o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) para veículos elétricos híbridos que usem motor a combustão flex capazes de rodar com etanol ou gasolina em qualquer proporção.

O programa Rota 2030 criou várias obrigações para os veículos vendidos no Brasil, nacionais ou importados, independente de adesão ao programa de incentivos: rotulagem veicular para informações sobre eficiência energética, consumo em km/l e emissão de CO2; metas de eficiência energética; e, metas de segurança. A superação destas metas gera descontos extra na alíquota no IPI a partir de 2023.

Na área de pesquisa e desenvolvimento (P&D), os fabricantes de veículos ou autopeças devem se comprometer a fazer investimento anuais em P&D com aportes obrigatórios mínimos, nas áreas de direção autônoma, soluções de mobilidade e logística, dispositivos de segurança, eficiência energética, modernização de processos de produção, abertura de novas fábricas e desenvolvimento de fornecedores e componentes. Com isto, os fabricantes podem deduzir até 30% dos investimentos realizados em P&D no Imposto de Renda (IR) e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), limitado a 30% dos tributos devidos. Caso não registrem lucro, as empresas poderão acumular esses créditos tributários para abatimento futuro.

A dedução aumenta para 45% do IR e CSLL caso o investimento seja feito em áreas consideradas estratégicas, que são: Manufatura avançada; Conectividade veicular e industrial; Mobilidade e logística; Propulsão alternativa a combustíveis fósseis; Direção autônoma; Inteligência artificial; Ferramental; Nanotecnologia; e, Big data.

Outro exemplo, foi a discussão sobre o Marco Legal das Startups, dispõe sobre medidas de estímulo à criação startups e estabelece incentivos aos investimentos por meio do aprimoramento do ambiente de negócios no país. O Projeto de Lei Complementar n. 146 de 2019 foi apensado ao Projeto de Lei n. 249 de 2020, que “institui o marco legal das startups e do empreendedorismo inovador”, de autoria do Poder Executivo.

Ou seja, temos instrumentos institucionais com diretrizes claras para o desenvolvimento do ambiente de negócios no país. Cabe a mobilização da sociedade.

Conclusão

Assim como a Ford deixou de fabricar no Brasil, outras empresas e setores estão em processo de transformações de seus negócios e devem causar a demissão de milhares de trabalhadores. A automação extrema das fábricas, conhecida como Indústria 4.0, reduz a mão de obra de baixa qualificação, porém requer trabalhadores altamente qualificados. As startups de tecnologia ganham espaço no mercado com novos modelos de negócios, atraindo ondas de consumidores, desafiando grandes empresas com modelos de negócios ultrapassados. O desafio é criar políticas públicas, elaboradas de forma colaborativa entre sociedade e governo, para garantir a transição dos cenários de negócios e o emprego.