Introdução
Em setembro de 2025, uma notícia ganhou grande repercussão no setor de negócios e varejo brasileiro: a Raízen anunciou sua saída da operação das lojas OXXO no país. A decisão marcou o fim da parceria com a mexicana FEMSA, que agora assume integralmente o controle da rede. O movimento surpreendeu parte do mercado, não apenas pelo porte dos grupos envolvidos, mas porque expôs com clareza o quanto o “Custo Brasil” ainda representa um desafio para empresas estrangeiras e para modelos de negócios importados.
O caso rapidamente se transformou em símbolo. OXXO, que no México é uma máquina de crescimento e domina o varejo de conveniência, encontrou no Brasil um ambiente muito menos receptivo. A estratégia de expansão acelerada, com promessa de abrir praticamente uma loja por dia, enfrentou barreiras estruturais, culturais e regulatórias que minaram a rentabilidade. A saída da Raízen, apesar de estratégica para seu foco em energia e biocombustíveis, soou para muitos como uma confissão de que o modelo não se adaptou ao país.
Esse episódio é mais do que uma história empresarial isolada. Ele deve ser lido como um alerta estratégico para outros setores, especialmente para o de energia, que vive um momento de transformação com a perspectiva de abertura do mercado livre para consumidores de baixa tensão – residenciais e pequenos negócios. Assim como aconteceu com o OXXO, há o risco de que soluções que funcionam em outros países não encontrem a mesma aceitação por aqui se não forem adaptadas.
A tese central deste artigo é clara: a experiência OXXO mostra que a entrada em mercados massificados no Brasil exige mais do que capital e escala. Exige adaptação cultural, inovação regulatória e uma visão realista do ambiente local. O mesmo vale para a energia: o desenho do mercado livre para baixa tensão não pode simplesmente copiar modelos internacionais sem considerar as peculiaridades brasileiras.
Ao longo do texto, vamos seguir uma linha de raciocínio em quatro etapas. Primeiro, revisaremos em detalhe o que foi o caso OXXO no Brasil e as principais lições que ele deixa. Em seguida, apresentaremos o contexto do mercado livre de energia e o que significa a abertura para consumidores de baixa tensão. Depois, faremos os paralelos entre o “efeito OXXO” e os riscos do setor elétrico, destacando experiências internacionais de sucesso e fracasso. Por fim, proporemos caminhos para que o Brasil evite repetir erros e construa um mercado mais inclusivo, competitivo e sustentável.
O Caso OXXO no Brasil
O episódio da saída da Raízen da operação OXXO no Brasil trouxe à tona uma série de reflexões que vão além do varejo de conveniência. Mais do que um caso de “fracasso” ou “sucesso”, o OXXO deve ser entendido como um alerta estratégico: um exemplo de como modelos globais de negócio, mesmo testados e consolidados em outros países, enfrentam enormes desafios ao tentar se adaptar ao ambiente brasileiro.
Este capítulo analisa a trajetória da rede: de sua origem e expansão meteórica no México até a entrada ambiciosa no Brasil, marcada pela promessa de abrir praticamente uma loja por dia. Em seguida, aborda os obstáculos que surgiram no caminho — logísticos, regulatórios, culturais e ligados à informalidade — e que acabaram criando um descompasso entre as expectativas iniciais e os resultados alcançados.
Mais do que números negativos ou decisões societárias, a história do OXXO no Brasil revela um ponto central: escala e capital não substituem adaptação cultural, proximidade com o consumidor e resiliência frente ao Custo Brasil. A saída da Raízen pode ser lida como um movimento estratégico de foco, enquanto a FEMSA permanece apostando no projeto. Ainda assim, a experiência deixa lições claras para qualquer empresa global que veja o Brasil como mercado de expansão.
Para reforçar esse padrão, o capítulo traz também o exemplo do Walmart, outro gigante que enfrentou barreiras semelhantes ao tentar tropicalizar seu modelo. Juntos, OXXO e Walmart ilustram um mesmo recado: quem não compreende as especificidades brasileiras corre o risco de tropeçar, independentemente de seu tamanho ou prestígio internacional.
Origem e trajetória no México e na América Latina
OXXO nasceu em 1978, em Monterrey, como uma pequena loja de conveniência ligada à FEMSA, gigante mexicana do setor de bebidas e varejo. O conceito combinava praticidade, proximidade e preços competitivos, conquistando rapidamente os consumidores urbanos. Ao longo das décadas, transformou-se em um verdadeiro fenômeno de expansão: hoje são mais de 20 mil lojas espalhadas pelo México e milhares em outros países da América Latina, como Chile, Colômbia e Peru.
O segredo do sucesso estava em uma fórmula aparentemente simples: padronização, logística eficiente e capacidade de atender necessidades básicas a qualquer hora e em qualquer esquina. No México, o OXXO se tornou quase onipresente, comparado muitas vezes ao que o McDonald’s representa para o fast food — ubiquidade, consistência e familiaridade. Esse prestígio e escala deram à FEMSA confiança para tentar expandir o modelo ao Brasil.
A entrada no Brasil e a promessa de escala
Em 2019, a FEMSA se uniu à Raízen, criando a joint venture Grupo Nós. O projeto brasileiro foi anunciado com ambição: abrir praticamente uma loja por dia, aproveitando a experiência internacional da FEMSA e a capilaridade da Raízen, por meio da rede de postos Shell. A proposta era clara: replicar no Brasil a mesma lógica de escala que fez do OXXO um sucesso no México.
No início, o entusiasmo era grande. A OXXO se apresentava como a “nova cara” do varejo de conveniência no Brasil, trazendo um mix moderno de produtos e a promessa de proximidade. O mercado enxergava na combinação FEMSA–Raízen uma parceria poderosa, capaz de desafiar o ecossistema já consolidado de padarias, mercadinhos e pequenos comércios de bairro.
Os desafios enfrentados: logística, regulação, cultura e informalidade
A realidade, contudo, se impôs com força. O modelo que funcionava no México encontrou barreiras significativas no Brasil:
- Logística complexa: estradas precárias, altos custos de transporte e burocracia fiscal dificultaram a eficiência do modelo.
- Regulação local: normas municipais sobre zoneamento e operação criaram obstáculos inesperados e encareceram o processo de expansão.
- Cultura de consumo: no Brasil, o consumidor valoriza a padaria, o mercadinho e a mercearia de confiança. Essa proximidade cultural reduziu a diferenciação da OXXO, percebida muitas vezes como apenas “mais uma loja”.
- Concorrência informal: negócios que operam fora da formalidade ofereciam preços e flexibilidade difíceis de replicar em um modelo corporativo de grande escala.
O resultado foi um descompasso entre a expectativa de rápida adesão e a realidade de uma expansão marcada por dificuldades operacionais e culturais.
Resultados financeiros e a saída da Raízen
Do ponto de vista financeiro, os desafios foram expressivos. O Grupo Nós acumulou prejuízos, chegando a mais de R$ 165 milhões negativos em 2022. A operação demandava investimentos pesados em capital e apresentava margens mais estreitas do que o previsto.
Em 2025, a Raízen anunciou sua saída da sociedade, vendendo sua participação para a FEMSA. A decisão foi justificada como parte de um foco estratégico em energia, biocombustíveis e distribuição de combustíveis, áreas centrais para a companhia.
Esse movimento não significa necessariamente um fracasso total do OXXO no Brasil. Para a Raízen, foi uma decisão pragmática de priorização. Para a FEMSA, é a oportunidade de assumir integralmente a operação e seguir acreditando no potencial de longo prazo. Ainda assim, o recado para o mercado é claro: a promessa inicial não se materializou nos prazos e nos resultados esperados.
Lições-chave para modelos de negócio globais
O caso OXXO no Brasil deve ser lido como um alerta estratégico. Ele mostra que:
- Escala não substitui adaptação – importar modelos globais sem ajustes profundos gera desalinhamentos com a cultura local.
- O “Custo Brasil” é estrutural – logística cara, burocracia e tributação complexa impactam diretamente a rentabilidade.
- O consumidor valoriza proximidade – vínculos locais, confiança e personalização são diferenciais difíceis de replicar em modelos padronizados.
- Expansão acelerada exige cautela – crescer rápido sem consolidar bases sólidas de rentabilidade aumenta o risco de fragilidade financeira.
- Alinhamento societário é essencial – divergências de visão entre sócios aceleram rupturas estratégicas.
Mais do que fracasso, o OXXO representa um descompasso entre expectativas e execução, e serve de alerta para qualquer setor que busque expansão massiva no Brasil.
Walmart no Brasil – quando até gigantes sucumbem ao Custo Brasil
O OXXO não é o primeiro exemplo de modelo global que precisou rever suas ambições no Brasil. O Walmart, maior varejista do mundo, chegou em 1995 prometendo revolucionar o mercado com sua filosofia de “Everyday Low Prices”. Expandiu por meio de aquisições (Bompreço, BIG), mas encontrou barreiras semelhantes:
Dificuldade em adaptar-se ao perfil do consumidor, que prefere promoções pontuais.
Complexidade tributária e logística que corroíam margens.
Concorrência ágil de Carrefour e Pão de Açúcar, mais próximos do consumidor local.
Resistência cultural à padronização.
Em 2018, o Walmart vendeu 80% da operação ao fundo Advent International e, em 2021, deixou definitivamente o país.
Alerta Estratégico para Modelos Globais no Brasil
O paralelo é evidente: se até gigantes como Walmart e OXXO enfrentaram dificuldades em adaptar modelos de sucesso global ao Brasil, o alerta é claro para outros setores – como o de energia – que se preparam para abrir mercados complexos como o de baixa tensão.
Dimensão | OXXO (2019–2025) | Walmart (1995–2021) | Alerta Estratégico |
Proposta inicial | Escala rápida (1 loja/dia) e sinergia com postos Shell | Revolução no varejo com “Everyday Low Prices” | Expectativas elevadas de rápida transformação |
Principais barreiras | Logística, regulação municipal, cultura de consumo local, informalidade | Tributação complexa, logística cara, concorrência agressiva, cultura de promoções pontuais | O Custo Brasil é estrutural e exige adaptação profunda |
Adaptação ao consumidor | Percepção de ser “mais uma loja”, sem proximidade cultural | Estratégia global desalinhada com hábitos de compra locais | Consumidor brasileiro valoriza confiança, proximidade e flexibilidade |
Resultado financeiro | Prejuízos (R$ 165 milhões em 2022) e saída da Raízen | Margens corroídas e venda da operação para Advent | Escala e capital não garantem rentabilidade no Brasil |
Decisão societária | Raízen sai por foco estratégico, FEMSA segue acreditando | Walmart sai definitivamente após write-off histórico | Divergências e desalinhamento estratégico aceleram mudanças |
Mensagem-chave | Abertura ainda em andamento, mas abaixo das expectativas iniciais | Encerramento definitivo após tentativa de adaptação | Alerta para o setor de energia: não repetir erros de importação de modelos sem tropicalização |
Síntese do box:
- OXXO e Walmart não devem ser vistos como fracassos isolados, mas como alertas sistêmicos.
- Ambos mostram que o Brasil exige tropicalização, resiliência e visão de longo prazo.
- A abertura do mercado livre de energia em baixa tensão precisa aprender com esses exemplos para evitar o “efeito OXXO” no setor elétrico.
O Mercado Livre de Energia no Brasil
O Brasil vive um dos momentos mais transformadores de sua história no setor elétrico. Após quase três décadas de liberalização gradual, que começou nos anos 1990 com grandes consumidores de alta tensão, o país se prepara para dar o passo decisivo: a abertura do mercado livre de energia para consumidores de baixa tensão, incluindo residenciais e pequenos negócios.
Essa transição não é apenas regulatória; ela representa uma mudança cultural e estrutural de grandes proporções. A energia, tradicionalmente percebida como um serviço padronizado e regulado, passa a ser tratada como um produto de escolha, com fornecedores concorrendo por clientes em um ambiente que promete maior diversidade de ofertas, potencial redução de custos e integração com serviços digitais.
Ao mesmo tempo, o processo é cercado de desafios. A experiência internacional mostra que liberalizações mal planejadas podem resultar em volatilidade, inadimplência e perda de confiança, enquanto modelos bem desenhados trazem inovação, competição saudável e empoderamento do consumidor. O Brasil está, portanto, diante de uma encruzilhada: pode transformar-se em referência para outros países emergentes ou repetir erros já conhecidos de mercados que se abriram sem a devida preparação.
Este capítulo examina a trajetória da abertura brasileira, os principais marcos regulatórios, o papel das instituições que conduzem o processo e os horizontes que se abrem com a chegada da baixa tensão ao mercado livre. Também traz um olhar comparativo sobre experiências internacionais — da Europa a Portugal, do Texas ao Chile — que ajudam a iluminar o caminho do país.
Linha do tempo da abertura: de alta tensão à baixa tensão
A abertura do mercado livre de energia no Brasil teve início tímido, focado em grandes consumidores. Em 1995, a Lei 9.074 abriu caminho para que empresas com demanda superior a 10 000 kW (alta tensão) pudessem negociar contratos bilaterais diretamente com geradoras ou comercializadoras .
Avançando no tempo, a Portaria Normativa nº 50/2022 estabeleceu que, a partir de janeiro de 2024, todos os consumidores do Grupo A (alta e média tensão) poderiam migrar para o mercado livre . Esse movimento foi um divisor de águas: mais de 72 mil consumidores migraram no primeiro ano, impulsionados por um ambiente competitivo e pela atuação de comercializadoras varejistas .
Hoje, o Brasil se prepara para a próxima etapa: consumidores de baixa tensão — residenciais e pequenos negócios — devem ganhar acesso ao mercado livre. A previsão atual é de abertura escalonada entre 2026 e 2028: grupos industriais e comerciais já em baixa tensão poderão migrar a partir de agosto de 2026 (MP 1.300/2025) , enquanto os residenciais e rurais poderão migrar a partir de janeiro de 2028 . Paralelamente, a ANEEL já testou modelos por meio de sandboxes tarifários para analisar a reação dos consumidores .
O papel do regulador e os marcos da liberalização
A liberalização do mercado passou por marcos regulatórios importantes. O MME e a CCEE, em conjunto com a ANEEL, foram protagonistas. A Portaria 50/2022 foi um salto que ampliou a migração ao mercado livre, enquanto a MP 1.300/2025 definiu cronograma para baixa tensão .
A ANEEL, por sua vez, lançou instrumentos como o sandbox tarifário, ferramenta para testar e ajustar tarifas e modelos de migração antes da adoção em larga escala . Além disso, consultas públicas como a CP MME 137/2022 buscaram subsídios para definir os limites de carga e direcionar os próximos passos da liberalização .
O horizonte da baixa tensão: residenciais e pequenos negócios
Com a democratização do mercado livre, residências e pequenos comércios se tornam os novos protagonistas. A mudança propõe mais do que oferta: pretende provocar transformação cultural, com consumidores com menor poder de negociação ganhando autonomia para escolher fornecedor, tarifa e fonte de energia.
No entanto, trazer esse modelo à escala exige superar desafios — complexidade administrativa, necessidade de educação energética e adaptação de processos contratuais — temas que serão aprofundados nas seções seguintes.
Modelos internacionais de liberalização (Europa, EUA, Chile, Índia, Portugal)
O Brasil observa experiências internacionais para orientar sua própria abertura de mercado. Alguns modelos se tornaram referências diretas para reguladores e formuladores de políticas, mas cada caso traz nuances que precisam ser compreendidas com profundidade.
Brasil em perspectiva
Em 2024 e 2025, o mercado livre já respondia por 43% a 44% do consumo total de eletricidade no país, um avanço expressivo frente ao patamar histórico. Esse crescimento decorre principalmente da abertura em janeiro de 2024, quando todos os consumidores de alta e média tensão (Grupo A) passaram a ter direito de migrar para o ambiente de contratação livre.
Ainda assim, o mercado brasileiro continua híbrido: consumidores residenciais e pequenos negócios (baixa tensão) permanecem cativos, aguardando a implementação da abertura prevista para 2026–2028. Isso significa que o Brasil vive uma fase de transição — com uma participação já significativa do mercado livre, mas sem universalização.
Texas (EUA)
O Texas é um caso frequentemente citado como benchmark por sua liberalização ampla e pelo papel da ERCOT (Electric Reliability Council of Texas) como operador de mercado. Aproximadamente 85% do consumo de energia no estado ocorre em ambiente competitivo, onde consumidores podem escolher livremente seus fornecedores.
No entanto, a rede de transmissão e distribuição continua regulada, e nem todo o território do Texas participa do modelo. Regiões atendidas por cooperativas ou utilities municipais, por exemplo, não oferecem escolha de fornecedor. Esse detalhe relativiza a ideia de “liberalização total”, ainda que o estado seja um dos exemplos mais avançados em competição no varejo de energia.
Europa
Na União Europeia, a liberalização foi estabelecida formalmente por diretivas que culminaram no Terceiro Pacote Energético (2009). Desde 2007, todos os consumidores da UE têm, em teoria, o direito de escolher seu fornecedor de energia. Na prática, porém, a efetividade varia.
Alguns países — como Reino Unido, Alemanha e os nórdicos — desenvolveram mercados altamente competitivos, com intensa troca de fornecedores e diversidade de ofertas. Outros, porém, enfrentam concentração de mercado, barreiras práticas à troca e baixa concorrência efetiva, o que torna a experiência europeia desigual.
Portanto, é incorreto falar em “universalização plena” desde 2007: trata-se de um processo contínuo e ainda em evolução, com diferenças regulatórias, de infraestrutura e de comportamento do consumidor entre os Estados-membros.
Chile e Índia
O Chile avançou de forma gradual, começando pelos grandes consumidores e expandindo para faixas menores, com regras claras e estabilidade regulatória. Isso consolidou um ambiente de confiança, embora a abertura residencial ainda não seja plena.
A Índia, por outro lado, tem um processo fragmentado, com forte presença de distribuidoras estatais e uma liberalização que avança de forma desigual entre estados, enfrentando desafios de inadimplência e governança.
Portugal
Entre os modelos internacionais, Portugal se destaca como referência direta para o Brasil. Desde 2006, o país opera um mercado livre consolidado, com diversidade de comercializadoras (EDP Comercial, Endesa, Iberdrola, Galp, Goldenergy, entre outras).
O país integrou-se à Espanha no MIBEL (Mercado Ibérico de Eletricidade), que promove liquidez e eficiência regional. Além disso, a ERSE (Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos) assegura regras claras e um processo simples de troca de fornecedor. O consumidor português pode migrar com facilidade, muitas vezes em prazos de poucos dias, e a transparência nas tarifas é um diferencial.
Por isso, ANEEL e EPE frequentemente citam o modelo português em análises públicas, especialmente quando discutem o desafio da abertura para baixa tensão. A combinação entre regulação estável, simplicidade para o consumidor e integração regional faz de Portugal um case observado de perto pelos formuladores de políticas no Brasil.
Síntese executiva
O Brasil está em linha com a experiência internacional de liberalização gradual, mas precisa evitar armadilhas de simplificação. O caso do Texas mostra que mesmo mercados avançados não são universais; a Europa demonstra que a abertura formal não garante concorrência real; e Portugal oferece o exemplo mais direto de como estruturar um modelo funcional para consumidores residenciais e de pequeno porte.
O Alerta OXXO para o Setor de Energia
O episódio da saída da Raízen da operação OXXO deixou claro que não basta importar um modelo de sucesso global e esperar que ele funcione da mesma forma no Brasil. A experiência do varejo de conveniência se transforma, aqui, em um alerta estratégico para o setor de energia, especialmente diante da iminente abertura do mercado livre para consumidores de baixa tensão. Os paralelos são evidentes e ajudam a projetar cenários de risco que precisam ser antecipados.
Paralelos entre varejo de conveniência e energia: escala vs. proximidade
O modelo OXXO se baseava em escala. A lógica era clara: abrir centenas de lojas rapidamente para ganhar capilaridade e diluir custos. Mas, no Brasil, a proximidade – tanto física quanto cultural – mostrou-se mais relevante. Padarias, mercadinhos e pequenos comércios continuaram sendo preferidos pelo consumidor, mesmo diante da padronização e da eficiência prometida pelo OXXO.
No mercado de energia, há risco de repetir essa equação. Comercializadores podem acreditar que volume de contratos e agressividade na expansão serão suficientes para conquistar clientes de baixa tensão. No entanto, o consumidor residencial e o pequeno empresário valorizam outros atributos: confiança, simplicidade, clareza na cobrança e sensação de proximidade. Assim como no varejo, a padronização em escala pode não ser suficiente para criar lealdade.
O choque cultural: padronização global vs. consumidor brasileiro
O OXXO falhou em entender que o consumidor brasileiro não se contenta apenas com a repetição de um formato global. Ele busca personalização, conveniência local e flexibilidade. No México, a padronização absoluta era um diferencial; no Brasil, foi percebida como impessoal e pouco aderente às preferências locais.
No setor elétrico, a situação pode ser semelhante. Modelos internacionais de comercialização de energia, que funcionam bem em Portugal, Espanha ou no Texas, podem encontrar resistência se aplicados de forma direta. O consumidor brasileiro tem expectativas distintas: prefere promoções visíveis, valoriza atendimento próximo e tende a desconfiar de contratos complexos. Se a liberalização chegar com excesso de tecnicismo e pouca comunicação, corre-se o risco de não engajar a massa de consumidores – exatamente como o OXXO não engajou os frequentadores de bairro.
Riscos ocultos do “Custo Brasil” na energia
O “Custo Brasil”, que minou a estratégia da OXXO, também ronda a abertura do mercado de energia. Ele se manifesta de formas diferentes, mas igualmente impactantes:
- Tributação complexa: múltiplos impostos, variações estaduais e regras pouco claras para faturamento.
- Burocracia contratual: exigências regulatórias que tornam a adesão pouco intuitiva para pequenos consumidores.
- Inadimplência: risco elevado quando se lida com milhões de consumidores pulverizados, especialmente em um país com forte informalidade econômica.
- Logística de cobrança e atendimento: gerenciar milhares de contratos pequenos exige robustez operacional, assim como o OXXO descobriu ao lidar com uma rede em expansão sem suporte adequado.
Esses fatores são menos visíveis em uma análise superficial, mas podem comprometer seriamente a viabilidade da abertura em baixa tensão se não forem enfrentados desde o início.
A armadilha da expansão acelerada sem tropicalização
O OXXO apostou em velocidade: abrir lojas em ritmo acelerado, acreditando que a escala corrigiria falhas de adaptação. O resultado foi uma rede extensa, mas sem rentabilidade sólida. No setor de energia, a armadilha pode ser semelhante. Comercializadores ou novos entrantes podem buscar capturar clientes em massa rapidamente, sem estruturar mecanismos adequados de atendimento, garantias financeiras e comunicação clara.
Sem “tropicalização” – isto é, sem adaptação cuidadosa ao contexto brasileiro – a expansão acelerada pode gerar problemas de inadimplência, colapso operacional e perda de credibilidade junto ao consumidor. O setor elétrico não pode se dar ao luxo de repetir esse erro, pois a consequência não será apenas empresarial, mas sistêmica: um fracasso na abertura da baixa tensão pode comprometer toda a confiança no processo de liberalização.
Mensagem-chave deste tópico
O caso OXXO não é apenas uma curiosidade de mercado: é um alerta estratégico. Mostra que, no Brasil, escala não substitui proximidade, padronização não supera cultura local e velocidade não compensa a falta de adaptação. Para o setor elétrico, isso significa que a abertura da baixa tensão precisa ser pensada com sensibilidade, resiliência e visão de longo prazo.
Riscos Concretos da Abertura na Baixa Tensão
A abertura do mercado livre de energia para consumidores de baixa tensão é vista como um passo natural na evolução do setor elétrico brasileiro. Porém, esse movimento traz riscos que não podem ser subestimados. A experiência do OXXO mostra que até modelos consolidados podem falhar quando não há adaptação ao ambiente local. No caso da energia, os riscos são ainda mais delicados porque envolvem não apenas empresas, mas a confiança de milhões de consumidores e a estabilidade do sistema elétrico.
Informalidade, inadimplência e confiança do consumidor
O Brasil convive com altos índices de informalidade econômica e inadimplência. Para milhões de famílias e pequenos negócios, o pagamento da conta de luz já é um esforço significativo, com atrasos recorrentes. A abertura do mercado livre amplia o risco: comercializadores terão que lidar com carteiras pulverizadas, de baixo ticket médio, e com consumidores menos acostumados a contratos de longo prazo.
A confiança será um fator crítico. Muitos consumidores têm receio de “trocar o certo pelo duvidoso”. Se surgirem casos de comercializadoras que não entregam, atrasam faturamento ou falham na comunicação, a credibilidade do modelo pode ser rapidamente corroída. A inadimplência, combinada com baixa confiança, pode gerar um círculo vicioso que desestimula a migração.
Complexidade contratual e necessidade de padronização
A conta de energia é hoje relativamente simples para o consumidor cativo: uma fatura única, emitida pela distribuidora. No mercado livre, entram novas variáveis: contrato de fornecimento, tarifas de uso do sistema de distribuição (TUSD), encargos setoriais e liquidação de diferenças no mercado de curto prazo.
Para o consumidor residencial, essa complexidade é um grande obstáculo. Sem padronização contratual e sem mecanismos que simplifiquem a adesão, o processo de migração pode se tornar burocrático, inacessível e até gerar contestações judiciais. A criação de contratos modelo e interfaces digitais simples será essencial para que a abertura seja viável em escala.
Competição assimétrica: grandes players vs. startups
No início da abertura, os grandes grupos – distribuidoras com braços de comercialização, utilities globais e empresas de energia integradas – terão clara vantagem. Eles dispõem de marca consolidada, capacidade financeira e estrutura de atendimento. Já as startups e comercializadoras independentes podem enfrentar dificuldades para competir em marketing, escala e garantias financeiras.
Esse desequilíbrio pode levar a uma concentração precoce, reduzindo o potencial de inovação. Sem medidas regulatórias que estimulem diversidade de players, há o risco de o mercado livre de baixa tensão se transformar em um oligopólio disfarçado, no qual o consumidor tem, na prática, pouca escolha real.
Resistência cultural à migração: “preferência pelo conhecido”
Assim como o consumidor do OXXO preferiu a padaria da esquina, o consumidor de energia pode preferir continuar com sua distribuidora, mesmo pagando mais caro. O fator cultural pesa: existe uma forte inércia no comportamento do consumidor brasileiro, que associa a distribuidora à continuidade do serviço essencial.
Superar essa barreira exige educação, transparência e comunicação de benefícios claros. Se o consumidor não entender a diferença entre mercado cativo e livre, ou se perceber risco de perder segurança no fornecimento, a taxa de adesão pode ser muito menor do que o esperado.
Impactos sobre distribuidoras e equilíbrio setorial
A abertura também traz consequências para as distribuidoras de energia. Ao perderem clientes de baixa tensão, elas precisarão rever seus modelos de negócio e sua estrutura de receitas. A tendência é de redução gradual da base de faturamento, com a necessidade de ajustes regulatórios para evitar desequilíbrios no custeio da rede.
Se essa transição não for bem calibrada, pode haver distorções: consumidores que permanecem cativos podem acabar arcando com custos maiores, criando sensação de injustiça. Além disso, distribuidoras podem resistir à abertura, tentando preservar sua base de clientes. Isso gera tensões políticas e regulatórias que precisam ser geridas com cuidado, para não comprometer a credibilidade do processo de liberalização.
Síntese deste tópico
A abertura da baixa tensão é promissora, mas envolve riscos estruturais: inadimplência, contratos complexos, concentração de mercado, barreiras culturais e tensões regulatórias. Esses riscos não anulam o projeto, mas exigem que ele seja conduzido com pragmatismo e sensibilidade. Ignorar esses pontos seria repetir, no setor elétrico, os mesmos erros que minaram a operação da OXXO no Brasil.
Casos Internacionais: Sucessos e Fracassos
A abertura dos mercados de energia ao redor do mundo gerou resultados muito distintos. Alguns países colheram ganhos de competitividade e inovação; outros enfrentaram crises e frustrações. Para o Brasil, que se prepara para abrir o mercado de baixa tensão, esses exemplos funcionam como um laboratório de lições — tanto positivas quanto negativas.
Insucessos
- Califórnia (crise energética de 2001): A Califórnia se tornou o caso clássico de uma liberalização mal executada. O mercado atacadista foi aberto, mas as tarifas de varejo permaneceram congeladas. Essa assimetria regulatória desincentivou investimentos em geração e contratos de longo prazo. Empresas como a Enron exploraram as falhas para manipular preços, agravando a escassez. O resultado: apagões, tarifas altíssimas e perda de confiança. A mensagem é clara: pressa sem coerência regulatória pode levar ao colapso.
- Espanha (preços voláteis e migração incompleta): Na Espanha, a liberalização se consolidou “no papel”, mas não na prática. Apesar da abertura formal desde 2003, a maioria dos consumidores permanece no mercado regulado, atraída por tarifas sociais e pela previsibilidade. O mercado livre, por sua vez, sofreu com forte volatilidade de preços, o que aumentou a desconfiança do consumidor. O paralelo com OXXO e Walmart é evidente: quando o consumidor não percebe vantagem clara, prefere o que já conhece.
Sucessos
- Reino Unido (mercado competitivo, mas com desafios recentes): O Reino Unido é um dos exemplos mais maduros de liberalização, com dezenas de fornecedores e ampla adesão dos consumidores. Por décadas, a concorrência trouxe diversidade de ofertas e redução de preços. Porém, crises recentes mostraram a fragilidade de pequenas comercializadoras, muitas das quais faliram diante da alta de preços no atacado. Esse episódio reforça que mercados competitivos precisam de mecanismos de resiliência, para proteger consumidores e preservar a confiança.
- Chile (abertura gradual, confiança regulatória): O Chile adotou uma estratégia cautelosa, iniciando pelos grandes consumidores e avançando gradualmente. Essa abordagem permitiu que o regulador consolidasse regras, testasse o funcionamento do mercado e construísse confiança passo a passo. Hoje, o país possui um ambiente competitivo e relativamente estável. A principal lição: a pressa é inimiga da liberalização sustentável.
Lições práticas para o Brasil
Os exemplos internacionais mostram que a liberalização de mercados de energia é um processo cheio de nuances: pode gerar ganhos relevantes de competitividade e inovação, mas também trazer riscos de instabilidade e frustração. Para o Brasil, que se prepara para abrir o mercado de baixa tensão, o aprendizado é claro: não basta copiar modelos estrangeiros, é preciso construir um caminho compatível com a realidade local. A seguir, destacamos cinco lições fundamentais que devem orientar o desenho dessa abertura.
- Não acelerar sem estrutura – A Califórnia mostrou que falhas de desenho regulatório podem gerar crises severas.
- Evitar uma abertura apenas formal – A experiência espanhola alerta que o consumidor só migra se enxergar benefícios reais e simples de compreender.
- Construir mecanismos de resiliência – O Reino Unido ensina que a volatilidade é inevitável, e que falências em cadeia precisam ser prevenidas com garantias financeiras e regulação ativa.
- Adotar um ritmo gradual e testado – O Chile prova que é melhor expandir em fases, com projetos-piloto e sandboxes, do que arriscar um fracasso em escala nacional.
- Reconhecer as especificidades do consumidor brasileiro – Assim como Walmart e OXXO falharam por não se adaptarem, a energia em baixa tensão só avançará se levar em conta cultura, informalidade e comportamento locais.
Mensagem-chave: Os insucessos da Califórnia e da Espanha e os sucessos relativos do Reino Unido e do Chile mostram que liberalização não é receita pronta. Cada país precisa ajustar o processo ao seu contexto. Para o Brasil, o desafio é aprender com os erros alheios e com os fracassos locais de modelos importados, evitando repetir no setor elétrico o que já vimos no varejo.
Caminhos para Evitar o “Efeito OXXO” no Mercado Livre
Se a experiência da OXXO no Brasil serve de alerta, também abre espaço para repensarmos como deve ser conduzida a abertura do mercado livre de energia em baixa tensão. O objetivo não é rejeitar a liberalização, mas garantir que ela seja viável, sustentável e adaptada à realidade nacional. Para evitar repetir erros de modelos importados, algumas diretrizes estratégicas se destacam.
Glocalização: modelos adaptados à realidade brasileira
A principal lição é que não basta replicar o que funciona em outros países. O Brasil exige um modelo “glocal” – global nas referências, mas local na execução. Isso significa considerar fatores como:
- cultura de consumo, em que o brasileiro valoriza promoções visíveis e a relação de confiança com o prestador;
- realidade socioeconômica, marcada por desigualdade de renda e alta informalidade;
- particularidades regionais, já que o país reúne diferentes perfis de consumo, tarifas e disponibilidade de energia.
Uma abertura bem-sucedida só ocorrerá se os contratos, os canais de atendimento e os modelos de comunicação forem desenhados para o consumidor brasileiro, com simplicidade e proximidade.
Inovação financeira: seguros, pooling, garantias coletivas
O risco de inadimplência em um mercado pulverizado é elevado. Para mitigar isso, é preciso introduzir instrumentos financeiros inovadores:
- seguros energéticos, cobrindo eventual inadimplência do consumidor;
- pooling de consumidores, em que grupos de baixa renda ou pequenos negócios aderem coletivamente, diluindo riscos;
- garantias compartilhadas, que protejam comercializadores e consumidores de desequilíbrios no curto prazo.
Esses mecanismos aumentam a confiança dos investidores e a segurança para os novos entrantes, evitando que a liberalização seja interrompida por colapsos financeiros.
Educação e letramento energético em massa
A conta de luz é, para muitos consumidores, um item de baixa transparência. A migração para o mercado livre exige educação em larga escala:
- Campanhas públicas de comunicação clara, destacando direitos e benefícios;
- Ferramentas digitais que simulem economia potencial e comparem fornecedores;
- Programas de letramento energético, para que o consumidor entenda conceitos como tarifa, demanda e sustentabilidade.
Sem esse esforço pedagógico, a abertura corre o risco de repetir o que ocorreu na Espanha: uma liberalização formal, mas com baixa adesão.
Sandbox regulatório e pilotos regionais
Antes de abrir o mercado para milhões de consumidores, é essencial testar o modelo em ambientes controlados. O sandbox regulatório, já utilizado pela ANEEL, é um caminho promissor:
- Permite validar regras com grupos limitados de consumidores;
- Gera aprendizado sem comprometer o sistema;
- Cria evidências para ajustes antes da escala nacional.
Além disso, projetos-piloto regionais podem identificar particularidades locais e servir como laboratórios para soluções específicas. Esse gradualismo é a chave para evitar riscos sistêmicos.
Integração de serviços: energia + IoT + eficiência + telecom
Para conquistar consumidores de baixa tensão, o mercado livre não pode se resumir à venda de energia. É preciso oferecer pacotes de valor agregado:
- Energia combinada com serviços de IoT para monitoramento de consumo;
- Soluções de eficiência energética, reduzindo desperdícios;
- Integração com telecomunicações e conectividade, aproximando a oferta de utilities completas.
Essa abordagem cria diferenciação, gera fidelidade e transforma o mercado livre em um ecossistema de serviços, não apenas em um contrato de fornecimento.
Mensagem-chave deste tópico
Evitar o “efeito OXXO” significa reconhecer que a abertura do mercado de energia para baixa tensão não pode ser uma mera cópia de modelos internacionais. Ela deve ser adaptada ao Brasil, protegida por inovações financeiras, sustentada por educação em massa, testada em ambientes controlados e enriquecida por ofertas integradas. Somente assim a liberalização terá força para ganhar a confiança do consumidor e consolidar-se como política de Estado.
Cenários Prospectivos (2025–2035)
Projetar o futuro do mercado livre de energia na baixa tensão não é apenas um exercício acadêmico: é uma ferramenta estratégica para reguladores, investidores e empresas. A próxima década será marcada por escolhas regulatórias, ajustes de mercado e mudanças culturais que podem levar a resultados muito diferentes. Três cenários ilustram essas possibilidades: o otimista, em que confiança e competição se consolidam; o intermediário, em que a abertura avança lentamente e de forma desigual; e o pessimista, em que a falta de preparo gera inadimplência, concentração e retrocessos.
Cenário otimista: confiança e competição sustentável
No cenário otimista, a abertura da baixa tensão no Brasil se transforma em um case internacional de sucesso. O país consegue equilibrar velocidade e prudência, garantindo que consumidores entendam o processo, que comercializadores tenham condições de competir e que o sistema preserve estabilidade financeira.
Nesse ambiente, o consumidor residencial finalmente percebe valor em migrar, graças a tarifas claras, plataformas digitais intuitivas e serviços agregados que simplificam sua relação com a energia. Comercializadores oferecem diversidade de pacotes – desde energia renovável certificada até combos que integram conectividade, IoT e eficiência energética.
A competição é saudável: grandes players convivem com startups inovadoras, e a regulação atua como guardiã da confiança. O Brasil passa a ser visto como um exemplo de liberalização adaptada ao contexto de países emergentes, unindo inclusão, inovação e sustentabilidade.
Cenário intermediário: migração parcial e lenta
O cenário intermediário reflete uma abertura que avança, mas não rompe barreiras estruturais. A liberalização acontece, mas sua penetração é limitada. Residências continuam majoritariamente cativas, seja por desinteresse, seja por receio de mudar. Já pequenos comércios e empresas de serviços migram com mais frequência, atraídos por oportunidades de economia em escala modesta.
Nesse contexto, o mercado livre se concentra em nichos, mas não se universaliza. As comercializadoras menores enfrentam dificuldades para se firmar, e o espaço competitivo acaba dominado por grandes utilities e distribuidoras que oferecem pacotes integrados. A promessa de democratização perde força, e a abertura se torna mais um movimento de ajuste incremental do setor, sem grandes transformações para o consumidor final.
Cenário pessimista: alta inadimplência, concentração e retrocessos
O cenário pessimista representa o risco de a abertura se transformar em um efeito OXXO no setor elétrico. O mercado é aberto em escala ampla sem preparação suficiente, e logo surgem problemas: inadimplência elevada, contratos mal compreendidos pelos consumidores e falhas operacionais em comercializadoras que crescem rápido demais.
A credibilidade do modelo é abalada por notícias de consumidores lesados, disputas judiciais e aumento da concentração em poucos players com poder de mercado. Os órgãos reguladores enfrentam pressão política para intervir, e o processo de liberalização passa a ser questionado na sua essência. Nesse cenário, em vez de ampliar confiança, a abertura gera retrocesso regulatório e resistência social, travando a modernização do setor.
Fatores críticos de sucesso em cada cenário
Independentemente do cenário, alguns elementos serão decisivos para definir a trajetória do Brasil. São os fatores críticos de sucesso que podem conduzir a liberalização para o caminho otimista ou empurrá-la para a rota pessimista:
- Regulação eficiente e responsiva, capaz de corrigir falhas rapidamente e manter previsibilidade.
- Gestão do risco de inadimplência, com garantias financeiras, seguros e instrumentos de clearing que deem segurança ao sistema.
- Educação e letramento energético, garantindo que o consumidor compreenda o processo e confie nele.
- Diversidade de players, para evitar concentração precoce e estimular inovação.
- Oferta de serviços integrados, que transformem energia em uma experiência de valor agregado.
- Gradualismo estratégico, com pilotos regionais e sandboxes regulatórios que permitam ajustes antes da expansão massiva.
Esses fatores não são opcionais: são a diferença entre a construção de um mercado vibrante e sustentável ou a repetição de insucessos já observados em outros países e setores.
Dessa forma, cada cenário ganha corpo e se transforma em um guia de planejamento estratégico, tanto para formuladores de política pública quanto para investidores e conselhos de administração.
Recomendações Estratégicas por Stakeholder
A abertura do mercado livre de energia para consumidores de baixa tensão não será bem-sucedida apenas com uma lei ou uma portaria. Trata-se de uma transformação sistêmica, que exige coordenação entre reguladores, distribuidoras, comercializadores e investidores. Cada ator tem um papel específico, mas todos compartilham a responsabilidade de garantir que o processo seja confiável, sustentável e adaptado à realidade brasileira.
Para o regulador (ANEEL, MME, CCEE)
O tripé regulatório do setor elétrico brasileiro – ANEEL, MME e CCEE – é o fiador da confiança nesse processo. Algumas recomendações são prioritárias:
- Clareza normativa: padronizar contratos, simplificar regras e comunicar de forma acessível ao consumidor.
- Proteção ao sistema: criar mecanismos de mitigação de risco de inadimplência, como garantias centralizadas ou fundos setoriais.
- Sandbox regulatório: ampliar o uso de pilotos regionais e ambientes controlados antes da abertura total.
- Fiscalização responsiva: acompanhar em tempo real a evolução do mercado, corrigindo falhas sem atrasar a expansão.
- Integração internacional: observar casos como Portugal e Chile para adaptar boas práticas ao contexto brasileiro.
Para as distribuidoras
As distribuidoras deixarão de ser apenas fornecedoras cativas e precisarão se reposicionar:
- Novo papel como gestoras de rede: focar na qualidade da infraestrutura e no atendimento universal.
- Explorar novos modelos de negócio: atuar em eficiência energética, geração distribuída e serviços complementares.
- Reforçar a proximidade: usar a relação histórica de confiança com o consumidor como diferencial competitivo.
- Evitar resistência política: participar do desenho regulatório de forma construtiva, ao invés de se opor à abertura.
- Plataformas digitais: investir em soluções que simplifiquem o atendimento e a interação com consumidores livres.
Para comercializadores e novos entrantes
Para os novos players, a abertura é uma oportunidade única, mas também um campo minado:
- Construção de confiança: investir em transparência, atendimento de qualidade e linguagem simples.
- Modelos inovadores: oferecer pacotes que combinem energia com IoT, telecom, eficiência energética ou serviços financeiros.
- Gestão de risco: preparar instrumentos para lidar com inadimplência e volatilidade de preços.
- Estratégia de nicho: explorar segmentos específicos (como pequenos comércios, condomínios ou cooperativas) antes de buscar massificação.
- Parcerias estratégicas: colaborar com fintechs, startups de energia e utilities tradicionais para ampliar capilaridade e reduzir custos de aquisição de clientes.
Para investidores e conselhos de administração
O mercado livre de baixa tensão deve ser visto como um projeto de longo prazo, e não como ganho rápido:
- Avaliar o risco Brasil: considerar informalidade, burocracia e desafios culturais na análise de viabilidade.
- Capital paciente: entender que a curva de adesão será gradual e exigirá resiliência financeira.
- Monitoramento regulatório: acompanhar de perto o ambiente político e regulatório, influenciando decisões estratégicas.
- Governança de risco: exigir mecanismos robustos de compliance, auditoria e garantias financeiras.
- Visão estratégica ampliada: não investir apenas em comercialização, mas em ecossistemas de serviços integrados, que gerem fidelização do consumidor.
Roadmap de Ações por Stakeholder (2025–2030)
Stakeholder | Curto Prazo (2025–2026) | Médio Prazo (2027–2028) | Longo Prazo (2029–2030) |
Regulador (ANEEL, MME, CCEE) | – Publicar normas claras e padronizadas de migração. – Expandir sandboxes regulatórios. – Criar contratos modelo simplificados. – Estruturar fundo de garantias contra inadimplência. | – Ajustar regulação com base em pilotos regionais. – Implementar clearing centralizada para reduzir riscos financeiros. – Iniciar campanhas nacionais de educação energética. | – Consolidar regulação de serviços integrados (energia + IoT + telecom). – Harmonizar regras estaduais e federais. – Promover integração regional com países vizinhos. |
Distribuidoras | – Investir em digitalização do atendimento. – Mapear riscos de perda de receita cativa. – Criar unidades de negócios voltadas a eficiência energética e serviços adicionais. | – Reposicionar-se como gestoras de rede. – Desenvolver parcerias com comercializadoras. – Monetizar dados de consumo em conformidade regulatória. | – Transformar-se em plataformas multisserviço. – Integrar energia, telecom e conectividade em soluções completas. |
Comercializadores e Novos Entrantes | – Estruturar mecanismos de mitigação de inadimplência. – Definir nichos prioritários (condomínios, pequenos comércios). – Investir em linguagem clara e confiança. | – Ampliar portfólio com serviços agregados. – Adotar modelos de pooling/cooperativas. – Expandir presença regional com escalabilidade sustentável. | – Evoluir para ecossistemas integrados (energia, IoT, eficiência, fintechs). – Consolidar diferenciação por experiência do cliente. |
Investidores e Conselhos de Administração | – Avaliar riscos e oportunidades do mercado livre de baixa tensão. – Exigir planos robustos de compliance e governança. – Aportar capital paciente para fase inicial. | – Monitorar desempenho regulatório e competitividade do setor. – Reavaliar estratégias de portfólio com foco em inovação. – Apoiar fusões, aquisições e parcerias estratégicas. | – Consolidar posições em players vencedores. – Estimular internacionalização de modelos bem-sucedidos. – Atuar como financiadores de inovação em energia distribuída. |
Mensagem-chave deste tópico
O sucesso da abertura da baixa tensão não depende de um único ator, mas da orquestração de todos os stakeholders. Reguladores precisam dar segurança; distribuidoras, reinventar-se; comercializadores, inovar; e investidores, assumir uma visão de longo prazo. Só assim será possível evitar o “efeito OXXO” e transformar a liberalização em um avanço histórico para o setor elétrico brasileiro.
Conclusão
A saída da Raízen da operação OXXO no Brasil é mais do que uma notícia de mercado: é uma metáfora poderosa para o setor de energia em um momento decisivo. Assim como o OXXO acreditou que poderia replicar no Brasil o modelo de sucesso mexicano, há o risco de que a abertura do mercado livre de energia para consumidores de baixa tensão siga o mesmo caminho — tentando importar soluções sem adaptação às realidades locais.
O “efeito OXXO” evidencia que escala não substitui proximidade, padronização não supera cultura e velocidade não compensa falta de tropicalização. Esse alerta vale integralmente para a energia. Se o Brasil abrir o mercado de baixa tensão sem considerar informalidade, comportamento do consumidor, riscos financeiros e especificidades regulatórias, a liberalização pode se transformar em frustração, com baixa adesão e instabilidade setorial.
O passado também reforça a lição. O caso Walmart mostrou que até o maior varejista global não resistiu ao Custo Brasil ao ignorar os hábitos e preferências locais. Agora, o OXXO atualiza essa narrativa, mostrando que a lógica se repete quando a estratégia desconsidera a cultura e a complexidade do país.
O chamado à ação é claro: não copiar, mas construir. O Brasil deve aprender com esses exemplos e desenhar soluções sob medida — regulatórias, financeiras e culturais — para garantir que a abertura do mercado livre seja um processo sustentável, inclusivo e confiável. Essa é a única forma de transformar a liberalização em uma oportunidade histórica, capaz de gerar valor para consumidores, atrair inovação e consolidar a transição energética nacional.