Este artigo não questiona o avanço das energias renováveis. Ele defende sua consolidação com base em racionalidade técnica, estabilidade econômica e transparência regulatória — para que a transição energética brasileira continue sólida e sustentável.
1. Introdução — O excesso de virtude também exige disciplina
Toda grande transformação nasce de boas intenções — e de riscos mal percebidos.
Nos anos 2000, vivemos a bolha das dotcoms: empresas sem lucro valendo bilhões.
Em 2008, a euforia dos subprimes prometia casas para todos, até o colapso financeiro.
Em ambos os casos, a lição é clara: o entusiasmo sem racionalidade destrói valor.
Hoje, o Brasil vive um dilema semelhante no setor elétrico.
A transição energética é inevitável, mas vem sendo conduzida com euforia e pouca disciplina econômica.
O propósito deste artigo não é contestar a energia limpa, e sim defendê-la de seus próprios excessos, evitando que o otimismo vire instabilidade.
2. O paradoxo da abundância
O Brasil se orgulha — com razão — de ter uma matriz majoritariamente renovável.
Mas quando há excesso de oferta e falta de planejamento, até a virtude se torna problema.
Segundo o Instituto Acende Brasil, o país perdeu R$ 3,85 bilhões em agosto de 2025 com energia gerada e não aproveitada.
O Estadão, em editorial de 8 de outubro de 2025, resumiu bem:
“O governo perdeu o controle do setor elétrico, permitindo a manutenção de subsídios e a expansão sem planejamento da capacidade instalada.”
Geramos energia limpa, mas sem rede, sem armazenamento e sem mercado para escoar.
É o paradoxo da abundância: muito megawatt, pouco valor.
3. O risco moral e o desequilíbrio do incentivo público
Em uma economia madura, o investidor assume o risco e o governo garante as regras.
Mas o modelo brasileiro inverte essa lógica: o risco é público e o retorno é privado.
Contratos de disponibilidade, isenções fiscais e compensações tarifárias criam o que os economistas chamam de risco moral — a sensação de que o Estado sempre vai socorrer o investidor.
Esse tipo de distorção foi o gatilho das bolhas de 2000 e 2008.
No setor elétrico, ela se manifesta em investimentos apressados, estímulos sem contrapartida e subsídios permanentes, que enfraquecem a eficiência do mercado.
4. Data centers: promessa digital, retorno incerto
A MP 1318, que prevê R$ 7,5 bilhões em incentivos fiscais para atrair data centers movidos a energia “verde”, é o exemplo mais recente desse modelo disfuncional.
O argumento é sedutor: associar tecnologia à sustentabilidade.
Mas na prática, data centers são indústrias de custo, não de impacto social.
Eles se instalam onde a energia é barata e estável — e saem quando os incentivos acabam.
Um workload pode ser transferido de país em minutos.
Sem condições estruturais — transmissão confiável, energia firme e regulação estável —, o Brasil subsidia operações temporárias com recursos permanentes.
5. Intermitência: a realidade física que a retórica ignora
A geração eólica e solar é vital, mas intermitente.
Nem o sol brilha 24 horas, nem o vento sopra todos os dias.
Por isso, o sistema precisa de fontes firmes e despacháveis, capazes de garantir energia quando as renováveis não entregam.
No Brasil, essa função recai sobre as hidrelétricas e térmicas.
As hidrelétricas são o pulmão do sistema, mas dependem de chuvas, que estão cada vez mais irregulares.
Quando há estiagem — e elas são mais frequentes —, são as térmicas que sustentam o sistema.
Demonizá-las é um erro técnico e político.
Elas não são o oposto da energia limpa, e sim parte da solução de equilíbrio.
Em tom de ironia, costuma-se dizer que quem rejeita as térmicas está “fazendo lobby para a indústria de velas”.
6. O papel estratégico do gás natural e o futuro híbrido com o hidrogênio verde
Se há uma fonte capaz de unir estabilidade, eficiência e transição, é o gás natural.
Ele é abundante, flexível e compatível com o avanço das renováveis.
O Brasil possui reservas significativas de gás, tanto em terra quanto no pré-sal, e tem acesso logístico privilegiado às rotas de importação da Bolívia, Argentina e Guiana.
Com o gás natural liquefeito (GNL) se tornando mais acessível e os gasodutos regionais retomando viabilidade, o país pode ampliar sua base térmica sem comprometer metas ambientais.
Mais do que uma solução de curto prazo, o gás é o elo de transição.
As térmicas modernas já operam com misturas progressivas de hidrogênio verde, reduzindo emissões e preparando o sistema para um futuro neutro em carbono.
Essa hibridização — Gás + H₂V — representa o caminho mais inteligente entre o pragmatismo e a sustentabilidade.
Permite manter o sistema estável enquanto se investe em novas tecnologias de geração e armazenamento.
Em resumo: o gás natural não é o inimigo da transição; é seu alicerce técnico e econômico.
7. O custo invisível dos subsídios
A expansão desordenada também tem um preço silencioso.
Isenções e incentivos tarifários criam distorções que acabam transferindo o custo para o consumidor comum.
A isenção para quem consome até 80 kWh/mês, por exemplo, tem forte apelo político, mas redistribui custos de forma desigual.
O mesmo vale para benefícios de autoprodução e descontos em TUST/TUSD.
Essas medidas desbalanceiam o sistema: uns pagam menos, outros pagam por todos.
O resultado é uma energia aparentemente barata, mas sustentada por encargos crescentes e ineficiência sistêmica.
8. A ilusão da “energia verde barata”
Em “O custo real da energia para os data centers” (22/09/2025), o economista Luiz Maurer detalha o equívoco da energia 100% renovável sem backup firme.
Quando há curtailment de 30%, o custo de um PPA solar de US$ 30/MWh sobe para US$ 43/MWh.
E quando é preciso comprar energia térmica em períodos críticos, o preço pode chegar a US$ 500/MWh.
A energia continua limpa, mas deixa de ser barata.
Sem considerar o custo marginal da segurança elétrica, o discurso da energia verde se transforma em uma ficção econômica.
9. Populismo energético e o risco institucional
Ao transformar energia em plataforma de popularidade, o governo corre o risco de politizar a transição energética.
Subsídios permanentes e incentivos sem métrica criam incerteza e afastam o investimento produtivo.
O capital não teme o risco — teme a imprevisibilidade.
E o setor elétrico, cada vez mais, se move num ambiente em que as regras mudam ao sabor do ciclo político.
Essa erosão institucional é mais perigosa que o déficit energético: sem confiança, não há investimento de longo prazo.
10. O ciclo de uma bolha energética
O comportamento do setor repete o padrão clássico de uma bolha econômica:
Etapa | Sinais visíveis |
---|---|
Euforia | Expansão acelerada, retórica de autossuficiência, excesso de subsídios. |
Descolamento | Geração maior que transmissão e custos mascarados. |
Correção | Revisão regulatória, aumento de tarifas e retração de investimentos. |
Ainda há tempo de agir — mas a janela é curta.
Toda bolha nasce de um excesso de virtude sem disciplina técnica e fiscal.
11. Caminhos para uma transição racional
A transição verde deve ser sustentável — tecnicamente, economicamente e institucionalmente.
Isso exige três compromissos centrais:
- Planejamento sistêmico: geração, transmissão e demanda integradas.
- Eficiência e prazo: incentivos devem ter metas e data de validade.
- Fontes firmes e flexíveis: gás natural, térmicas híbridas e armazenamento estratégico.
Esses pilares reduzem custos, aumentam confiabilidade e preservam o valor da energia limpa.
O gás natural, integrado ao hidrogênio verde, é a ponte entre o presente e o futuro.
Conclusão — Realismo é o novo nome da sustentabilidade
Defender o realismo energético não é ser contra o verde; é garantir que ele dure.
Sem planejamento, o Brasil pode transformar uma vantagem competitiva em vulnerabilidade.
O gás natural e as térmicas híbridas não são retrocesso, mas parte da arquitetura de estabilidade da matriz.
Elas sustentam o sistema, equilibram a intermitência e pavimentam o caminho para o hidrogênio verde e o armazenamento avançado.
O futuro da energia limpa dependerá menos de slogans e mais de engenharia, economia e governança.
A sustentabilidade não se decreta — constrói-se, com disciplina e racionalidade.