Introdução – A transição deixou o campo das intenções e entrou no domínio da engenharia e da governança sistêmica
A narrativa da transição energética na América Latina foi, por muito tempo, dominada por projeções otimistas baseadas no potencial renovável da região. Com 45% da matriz energética primária de origem renovável — mais que o dobro da média global — o continente costuma ser apresentado como “natural protagonista” da descarbonização. No entanto, como reforça o relatório da McKinsey The Hard Stuff: Navigating the physical realities of the energy transition, o desafio deixou de ser a expansão de capacidade renovável e passou a ser a capacidade física e institucional de integrar, armazenar, despachar e remunerar flexibilidade com confiabilidade e custo competitivo.
Em outras palavras: o problema já não é gerar energia limpa — é garantir que ela chegue, no momento necessário, com a estabilidade exigida pela economia digital e pela nova indústria elétrica intensiva em dados e processos contínuos.
1. Realidades físicas da transição: onde a América Latina precisa ajustar sua visão estratégica
Segundo a McKinsey, mais de 80% do lítio, cobalto, grafite e terras raras — minerais chave para baterias e eletrificação — estão concentrados em três países. Paradoxalmente, Chile, Argentina e Brasil, que possuem parte desse recurso, ainda operam como fornecedores primários de commodities e não como atores estratégicos de uma política industrial energética integrada. A lição é clara: possuir o recurso não significa capturar o valor, especialmente quando o refino, a tecnologia e a governança da cadeia estão alocadas fora da região.
Na América Latina, essa dicotomia se agrava por outro fator: geração abundante, mas infraestrutura insuficiente. A região lidera em potencial renovável, mas não lidera em sistemas de armazenamento, precificação de flexibilidade ou interconexão transfronteiriça, que são — segundo o relatório — os verdadeiros elementos estruturantes de uma transição energética funcional.
2. Curtailment, expansão improdutiva e o paradoxo da energia “sobrando e faltando” ao mesmo tempo
A McKinsey identifica um padrão global: à medida que a geração renovável intermitente cresce, a rede passa a enfrentar simultaneamente excesso de produção e déficit de despacho útil. Isso leva a curtailment e perdas sistêmicas.
Na América Latina, esse paradoxo já é visível:
- O Chile atingiu níveis históricos de vertimento de energia renovável no Norte, mesmo com tarifas industriais ainda elevadas.
- O Brasil possui usinas eólicas no Nordeste operando abaixo do fator de capacidade por falta de transmissão e armazenamento, enquanto o Sudeste enfrenta risco de déficit estrutural.
- A Região Andina discute hidrogênio verde sem resolver a questão do despacho instantâneo para mercados internos.
Conclusão estratégica para decisores: continuar expandindo só a geração renovável, sem uma arquitetura de mercados de flexibilidade, BESS em nós críticos, interconexão regional e remuneração por capacidade, levará a uma transição energeticamente “limpa”, porém ineficiente e economicamente frágil.
3. Flexibilidade: o novo ativo estratégico — e ainda invisível nos modelos de negócios e regulação
A McKinsey afirma: “o verdadeiro gargalo não será a geração, mas a capacidade de mobilizar ativos de flexibilidade com modelo econômico viável”. Traduzido para a realidade da América Latina:
- BESS e armazenamento térmico ainda são tratados como custo e não como infraestrutura de valor sistêmico.
- Térmicas de baixa utilização — essenciais para garantir estabilidade em transição — estão sendo descontinuadas sem uma política de substituição por turbinas flexíveis a gás e hidrogênio.
- Mercados de capacidade e serviços ancilares ainda não existem em escala regulatória plena no Brasil, Chile, Colômbia ou México.
Resultado: o sistema avança para um setor de energia renovável sem lastro econômico e operacional para sustentar a economia baseada em data centers, eletrificação industrial e IA — setores que demandam estabilidade de milissegundos e arquiteturas “firm and flexible by design”.
4. O Brasil como “hub natural” da flexibilidade latino-americana — mas sem uma estratégia institucional
Nenhum outro país na América Latina tem:
- Capilaridade hidráulica com reservatórios capazes de operar como baterias naturais;
- Capacidade de exportar flexibilidade e backhaul de energia para corredores industriais do Mercosul;
- Parques eólicos e solares com complementaridade geográfica e temporal comprovada (Nordeste – Sul).
No entanto, essa vantagem estruturante está sendo capturada por iniciativas isoladas de geração, e não convertida em poder sistêmico de integração regional e precificação de serviços de estabilidade.
Se o Brasil não assumir intencionalmente um papel de provedor de flexibilidade continental, outros players — inclusive fundos estrangeiros com portfólio de transmissão e armazenamento — ocuparão esse espaço como “operadores regulados de flexibilidade”, um papel que se aproxima do modelo Independent Distribution Operator (IDO) já discutido por ANEEL e debatido informalmente entre mercados com grande penetração de DERs.
5. A janela de 2025–2028: o momento da virada das regras do jogo
As tendências convergentes entre OLADE, CITEENEL e McKinsey indicam um ponto de inflexão estratégico:
Tendência | Implicação para executivos e reguladores |
Renováveis já não são o diferencial competitivo | O diferencial será a capacidade de armazenar, despachar e ofertar flexibilidade como serviço contratado |
Cadeias de minerais críticas sob risco geopolítico | Projetos de H₂ e BESS precisam nascer com estratégia de suprimento e conteúdo local inteligente |
Curva de carga altamente dinâmica (data centers, IA, mobilidade elétrica) | Exige mercados de resposta rápida e digitalização do despacho em subestações |
Pressão internacional por integração regional de energia | Abrirá espaço para plataformas transfronteiriças de flexibilidade, não apenas intercâmbio de MWh |
Regulação discutindo “plataforma digital de distribuição” | Caminho para a criação de papéis tipo IDO, onde dados e automação ganham peso equivalente à infraestrutura física |
6. Três deslocamentos estratégicos que o setor precisa internalizar imediatamente
- De “energia” para “capacidade e serviços de flexibilidade”
Os PPAs do futuro não serão apenas volumétricos (MWh), mas contratos de estabilidade operacional com métricas de disponibilidade flexível (MW prontos para despacho). - De “geração descentralizada como risco” para “plataformas de dados como eixo de governança”
O desafio não é integrar GD, mas transformar a rede em uma arquitetura digital com coordenação inteligente entre ativos físicos e algoritmos de despacho. - De “contentamento com liderança renovável” para “liderança geopolítica em flexibilidade energética”
A América Latina pode ser o maior exportador de estabilidade energética limpa, mas isso depende menos de geração e mais de capacidade de governança integrada entre excedentes e déficits regionais.
7. Agenda sugerida para CEOs, Conselhos e ANEEL / reguladores regionais
Ação estratégica | Racional técnico-institucional |
Criar modelo de precificação de flexibilidade com BESS alocado em subestações críticas | Reduz curtailment, aumenta FCD dos ativos e cria novo mercado de receita recorrente |
Estabelecer mecanismos de remuneração por capacidade para térmicas flexíveis e futuros H₂-ready | Garante backup operacional sem distorcer leilões de energia pura |
Estruturar planos de interconexão operacional, não apenas física, com CREG, ENEL, CAMMESA e OLADE | Energia despachada entre países deve vir acompanhada de sinais de flexibilidade e valor sistêmico |
Implementar gêmeos digitais de rede e gestão ativa de demanda com IA | Reduz custo regulatório e melhora previsibilidade de despacho, reduzindo risco sistêmico |
Criar carteira de P&D regulatório focada em governança de flexibilidade | Canaliza recursos de inovação para temas que destravam valor sistêmico (não apenas eficiência local) |
Conclusão – A América Latina está diante do “ponto de não retorno regulatório”
A transição energética regional alcançou o limite da expansão por geração. A nova fronteira de valor reside na governança da flexibilidade, nas cadeias estratégicas de minerais e na integração sistêmica de ativos físicos e digitais. O relatório da McKinsey é explícito: sem mecanismos de remuneração de capacidade e sem redes preparadas para operar com serviços de estabilidade, a transição se tornará cara, fragmentada e politicamente instável.
Executivos, conselhos e reguladores da América Latina têm uma oportunidade histórica: posicionar o continente não apenas como produtor de energia limpa, mas como plataforma de flexibilidade estratégica para a economia digital global.
📌 Quem ocupar esse espaço primeiro — com visão de governança, infraestrutura e dados — determinará os próximos 30 anos da matriz energética latino-americana.