Eduardo M Fagundes

Tech & Energy Insights

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A transição energética na América Latina: entre o potencial renovável e as realidades físicas do sistema

Introdução – A transição deixou o campo das intenções e entrou no domínio da engenharia e da governança sistêmica

A narrativa da transição energética na América Latina foi, por muito tempo, dominada por projeções otimistas baseadas no potencial renovável da região. Com 45% da matriz energética primária de origem renovável — mais que o dobro da média global — o continente costuma ser apresentado como “natural protagonista” da descarbonização. No entanto, como reforça o relatório da McKinsey The Hard Stuff: Navigating the physical realities of the energy transition, o desafio deixou de ser a expansão de capacidade renovável e passou a ser a capacidade física e institucional de integrar, armazenar, despachar e remunerar flexibilidade com confiabilidade e custo competitivo.

Em outras palavras: o problema já não é gerar energia limpa — é garantir que ela chegue, no momento necessário, com a estabilidade exigida pela economia digital e pela nova indústria elétrica intensiva em dados e processos contínuos.

1. Realidades físicas da transição: onde a América Latina precisa ajustar sua visão estratégica

Segundo a McKinsey, mais de 80% do lítio, cobalto, grafite e terras raras — minerais chave para baterias e eletrificação — estão concentrados em três países. Paradoxalmente, Chile, Argentina e Brasil, que possuem parte desse recurso, ainda operam como fornecedores primários de commodities e não como atores estratégicos de uma política industrial energética integrada. A lição é clara: possuir o recurso não significa capturar o valor, especialmente quando o refino, a tecnologia e a governança da cadeia estão alocadas fora da região.

Na América Latina, essa dicotomia se agrava por outro fator: geração abundante, mas infraestrutura insuficiente. A região lidera em potencial renovável, mas não lidera em sistemas de armazenamento, precificação de flexibilidade ou interconexão transfronteiriça, que são — segundo o relatório — os verdadeiros elementos estruturantes de uma transição energética funcional.

2. Curtailment, expansão improdutiva e o paradoxo da energia “sobrando e faltando” ao mesmo tempo

A McKinsey identifica um padrão global: à medida que a geração renovável intermitente cresce, a rede passa a enfrentar simultaneamente excesso de produção e déficit de despacho útil. Isso leva a curtailment e perdas sistêmicas.

Na América Latina, esse paradoxo já é visível:

  • O Chile atingiu níveis históricos de vertimento de energia renovável no Norte, mesmo com tarifas industriais ainda elevadas.
  • O Brasil possui usinas eólicas no Nordeste operando abaixo do fator de capacidade por falta de transmissão e armazenamento, enquanto o Sudeste enfrenta risco de déficit estrutural.
  • A Região Andina discute hidrogênio verde sem resolver a questão do despacho instantâneo para mercados internos.

Conclusão estratégica para decisores: continuar expandindo só a geração renovável, sem uma arquitetura de mercados de flexibilidade, BESS em nós críticos, interconexão regional e remuneração por capacidade, levará a uma transição energeticamente “limpa”, porém ineficiente e economicamente frágil.

3. Flexibilidade: o novo ativo estratégico — e ainda invisível nos modelos de negócios e regulação

A McKinsey afirma: “o verdadeiro gargalo não será a geração, mas a capacidade de mobilizar ativos de flexibilidade com modelo econômico viável”. Traduzido para a realidade da América Latina:

  • BESS e armazenamento térmico ainda são tratados como custo e não como infraestrutura de valor sistêmico.
  • Térmicas de baixa utilização — essenciais para garantir estabilidade em transição — estão sendo descontinuadas sem uma política de substituição por turbinas flexíveis a gás e hidrogênio.
  • Mercados de capacidade e serviços ancilares ainda não existem em escala regulatória plena no Brasil, Chile, Colômbia ou México.

Resultado: o sistema avança para um setor de energia renovável sem lastro econômico e operacional para sustentar a economia baseada em data centers, eletrificação industrial e IA — setores que demandam estabilidade de milissegundos e arquiteturas “firm and flexible by design”.

4. O Brasil como “hub natural” da flexibilidade latino-americana — mas sem uma estratégia institucional

Nenhum outro país na América Latina tem:

  • Capilaridade hidráulica com reservatórios capazes de operar como baterias naturais;
  • Capacidade de exportar flexibilidade e backhaul de energia para corredores industriais do Mercosul;
  • Parques eólicos e solares com complementaridade geográfica e temporal comprovada (Nordeste – Sul).

No entanto, essa vantagem estruturante está sendo capturada por iniciativas isoladas de geração, e não convertida em poder sistêmico de integração regional e precificação de serviços de estabilidade.

Se o Brasil não assumir intencionalmente um papel de provedor de flexibilidade continental, outros players — inclusive fundos estrangeiros com portfólio de transmissão e armazenamento — ocuparão esse espaço como “operadores regulados de flexibilidade”, um papel que se aproxima do modelo Independent Distribution Operator (IDO) já discutido por ANEEL e debatido informalmente entre mercados com grande penetração de DERs.

5. A janela de 2025–2028: o momento da virada das regras do jogo

As tendências convergentes entre OLADE, CITEENEL e McKinsey indicam um ponto de inflexão estratégico:

TendênciaImplicação para executivos e reguladores
Renováveis já não são o diferencial competitivoO diferencial será a capacidade de armazenar, despachar e ofertar flexibilidade como serviço contratado
Cadeias de minerais críticas sob risco geopolíticoProjetos de H₂ e BESS precisam nascer com estratégia de suprimento e conteúdo local inteligente
Curva de carga altamente dinâmica (data centers, IA, mobilidade elétrica)Exige mercados de resposta rápida e digitalização do despacho em subestações
Pressão internacional por integração regional de energiaAbrirá espaço para plataformas transfronteiriças de flexibilidade, não apenas intercâmbio de MWh
Regulação discutindo “plataforma digital de distribuição”Caminho para a criação de papéis tipo IDO, onde dados e automação ganham peso equivalente à infraestrutura física

6. Três deslocamentos estratégicos que o setor precisa internalizar imediatamente

  1. De “energia” para “capacidade e serviços de flexibilidade”
    Os PPAs do futuro não serão apenas volumétricos (MWh), mas contratos de estabilidade operacional com métricas de disponibilidade flexível (MW prontos para despacho).
  2. De “geração descentralizada como risco” para “plataformas de dados como eixo de governança”
    O desafio não é integrar GD, mas transformar a rede em uma arquitetura digital com coordenação inteligente entre ativos físicos e algoritmos de despacho.
  3. De “contentamento com liderança renovável” para “liderança geopolítica em flexibilidade energética”
    A América Latina pode ser o maior exportador de estabilidade energética limpa, mas isso depende menos de geração e mais de capacidade de governança integrada entre excedentes e déficits regionais.

7. Agenda sugerida para CEOs, Conselhos e ANEEL / reguladores regionais

Ação estratégicaRacional técnico-institucional
Criar modelo de precificação de flexibilidade com BESS alocado em subestações críticasReduz curtailment, aumenta FCD dos ativos e cria novo mercado de receita recorrente
Estabelecer mecanismos de remuneração por capacidade para térmicas flexíveis e futuros H₂-readyGarante backup operacional sem distorcer leilões de energia pura
Estruturar planos de interconexão operacional, não apenas física, com CREG, ENEL, CAMMESA e OLADEEnergia despachada entre países deve vir acompanhada de sinais de flexibilidade e valor sistêmico
Implementar gêmeos digitais de rede e gestão ativa de demanda com IAReduz custo regulatório e melhora previsibilidade de despacho, reduzindo risco sistêmico
Criar carteira de P&D regulatório focada em governança de flexibilidadeCanaliza recursos de inovação para temas que destravam valor sistêmico (não apenas eficiência local)

Conclusão – A América Latina está diante do “ponto de não retorno regulatório”

A transição energética regional alcançou o limite da expansão por geração. A nova fronteira de valor reside na governança da flexibilidade, nas cadeias estratégicas de minerais e na integração sistêmica de ativos físicos e digitais. O relatório da McKinsey é explícito: sem mecanismos de remuneração de capacidade e sem redes preparadas para operar com serviços de estabilidade, a transição se tornará cara, fragmentada e politicamente instável.

Executivos, conselhos e reguladores da América Latina têm uma oportunidade histórica: posicionar o continente não apenas como produtor de energia limpa, mas como plataforma de flexibilidade estratégica para a economia digital global.

📌 Quem ocupar esse espaço primeiro — com visão de governança, infraestrutura e dados — determinará os próximos 30 anos da matriz energética latino-americana.

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