O segundo dia da X Semana de la Energía, em Santiago do Chile, foi marcado por uma sequência de debates intensos que colocaram o armazenamento energético, a integração regional e as dinâmicas geopolíticas no centro da discussão. Participei de quatro blocos temáticos se articularam como capítulos de uma mesma história: hidroenergia, geopolítica, a revolução do armazenamento e a perspectiva energética regional. Cada um trouxe visões complementares, formando um mosaico que ajuda a compreender para onde caminha a transição energética na América Latina e no Caribe.
Hidroenergia: pilar histórico e ponte para o futuro
A primeira sessão do dia, intitulada “Hidroenergía en evolución: retos y oportunidades en el siglo XXI”, foi dedicada a refletir sobre o papel da hidroenergia na transição energética . A mensagem foi clara: a hidroeletricidade continua a ser a espinha dorsal da matriz elétrica latino-americana, mas precisa ser modernizada para se tornar ainda mais resiliente diante das mudanças climáticas.
O debate destacou como a digitalização, os sistemas de bombeamento reversível e a integração com novas tecnologias de armazenamento podem redefinir a função dos reservatórios hídricos. A ideia recorrente foi que as hidrelétricas, mais do que geradoras, devem ser vistas como reservatórios naturais de flexibilidade, capazes de acomodar a crescente intermitência da solar e da eólica. Essa sessão funcionou como uma ponte conceitual para os painéis seguintes: sem flexibilidade, não haverá transição segura.
Claves geopolíticas: a transição como tema de política externa
Na sequência, o painel “Claves geopolíticas de la transición global” trouxe para o palco personalidades de peso, incluindo o chanceler chileno Alberto van Klaveren, a diretora Dorotea López Giral (Universidad de Chile), a especialista Astrid Yanet Aguilera Cazalbón e o professor Jaime Baeza (FLACSO) .
O tom da conversa foi geopolítico e diplomático. A transição energética deixou de ser apenas um desafio técnico ou ambiental: tornou-se um eixo central de política externa e de segurança internacional. Os painelistas ressaltaram que a América Latina, por dispor de uma matriz mais limpa que a média mundial e deter minerais críticos como lítio e cobre, ocupa um lugar privilegiado nas cadeias globais.
Van Klaveren reforçou que energia é hoje assunto de Estado, não de governo. Estabilidade regulatória, confiança entre países e diplomacia energética são peças-chave para que a região consiga não apenas exportar commodities, mas também influenciar os rumos globais. O papel da integração regional – seja por interconexões elétricas, coordenação regulatória ou protocolos de resiliência – foi reiterado como condição indispensável para que os países latino-americanos deixem de ser ilhas isoladas e passem a atuar como bloco.
Outro aspecto mencionado foi a inovação aplicada à infraestrutura crítica, incluindo inteligência artificial, e a necessidade de formar capital humano qualificado. Assim, o painel geopolítico preparou o terreno para os blocos seguintes, ao colocar a transição no patamar de estratégia internacional.
Keynote: a revolução do armazenamento e a visão chilena
A terceira sessão foi conduzida pelo Ministro de Energia do Chile, Diego Pardow, sob o título “La Revolución del Almacenamiento”. Sua fala teve o peso de um keynote, ao projetar a visão estratégica de um país que decidiu se posicionar na vanguarda do setor .
Logo na abertura, Pardow ressaltou que o armazenamento deixou de ser um complemento e se tornou um pilar central da política energética. As fotos exibidas durante a palestra reforçaram esse simbolismo: em uma delas, Pardow aparece projetando a curva diária de oferta e demanda, mostrando como baterias e sistemas de flexibilidade achatam o custo marginal e estabilizam preços. Em outra, apresenta o número que chamou a atenção de todos: mais de US$ 8 bilhões já mobilizados em projetos de armazenamento no pipeline chileno.
O ministro também fez uma referência incisiva à integração regional: lembrou que, no Brasil, a mera ameaça de importação de gás argentino já foi suficiente para derrubar preços no mercado. Esse exemplo concreto mostrou como os mecanismos de flexibilidade, incluindo o armazenamento, possuem efeitos diretos na segurança de suprimento e no equilíbrio de preços entre países.
Pardow destacou que a revolução do armazenamento exige não apenas tecnologia, mas inovação regulatória. O Chile tem avançado na criação de marcos que permitem remunerar os serviços de estabilidade que baterias e hidrelétricas reversíveis oferecem ao sistema. Ele citou medidas de simplificação de licenciamento e autorizações, que aceleram investimentos sem comprometer critérios ambientais e técnicos.
As metas nacionais foram reiteradas: alcançar 24 GWh de capacidade de armazenamento até 2030 e 46 GWh até 2050. Essa ambição, segundo Pardow, vai além do setor energético, pois gera empregos, aumenta a competitividade da indústria e garante inclusão social. A revolução do armazenamento é, portanto, um projeto de desenvolvimento.
O painel de armazenamento: desafios práticos e visões regionais
Logo após o keynote, iniciou-se o painel técnico com cinco participantes representando governos, instituições multilaterais e empresas. O debate girou em torno de quatro grandes temas: financiamento, efeitos de mercado, regulação/licenciamento e ordem de grandeza dos investimentos .
O consenso foi que o financiamento segue como principal obstáculo. A estrutura de receitas ainda não captura adequadamente todos os serviços prestados pelos sistemas de armazenamento – desde a arbitragem de preços até os serviços ancilares como controle de frequência e reserva de potência. Isso limita a escala dos projetos.
No entanto, os efeitos de mercado já são visíveis. No Chile, por exemplo, a entrada de baterias em grande escala reduziu os custos marginais intradiários, achatando a curva de preços e criando ganhos sistêmicos. A simplificação regulatória e de licenciamento foi apontada como acelerador essencial, capaz de destravar bilhões em investimentos.
A OLADE complementou com informações institucionais: anunciou a transformação de uma nota técnica em livro sobre armazenamento, reunindo estado da arte tecnológico, estudos de caso e desafios regulatórios. Estimou que a região já possui cerca de 2,7 GW de capacidade de armazenamento, sendo 1,7 GW em baterias e 1,0 GW em hidrelétricas reversíveis. Citou também a projeção da IEA: para triplicar as renováveis até 2030, será preciso multiplicar por seis o armazenamento, chegando a um patamar de 18% de capacidade de armazenamento sobre a nova energia renovável instalada.
Casos nacionais e empresariais
Entre os casos nacionais discutidos, o Chile reafirmou sua liderança, com 21 projetos em diferentes fases e metas de 2 GW até 2030 e 6 GW até 2050. O Brasil destacou sua matriz de 88% renovável, fortemente hidrelétrica, mas ressaltou a necessidade de usar armazenamento para integrar a expansão solar e eólica. O México foi lembrado pelo código de rede que exige até 30% de armazenamento em novos projetos. Já a Argentina reportou o sucesso do leilão de 500 MW em Buenos Aires, com ofertas superiores a 600 MW.
Casos menores, mas igualmente relevantes, vieram de Honduras, que realizou um leilão de 75 MW considerado inovador, e da República Dominicana, onde sistemas insulares vulneráveis a apagões veem no BESS a possibilidade de fornecer potência firme, desde que haja uma regulação clara para remunerar arbitragem e serviços ancilares.
Do lado empresarial, a EDF Power Solutions apresentou um pipeline robusto no Chile, incluindo um projeto de 500 MW/4h em zona desértica, voltado a atender tanto contratos regulados quanto PPAs corporativos do setor minerador. A empresa destacou sua estratégia global de oferecer energia 100% renovável combinada a armazenamento, com projetos também na Europa, Estados Unidos e África do Sul.
O painel encerrou enfatizando aspectos técnicos de operação do sistema: inversores grid-forming e máquinas síncronas virtuais, que simulam inércia e oferecem estabilidade às redes, foram apontados como tecnologias críticas. O consenso foi de que o armazenamento deve ser tratado não como “megawatts-hora armazenados”, mas como infraestrutura de confiabilidade sistêmica.
Perspectiva energética regional: diversidade de realidades, convergência de desafios
O último painel, “Perspectiva Energética Regional”, reuniu Lucía Spinelli (Banco Mundial, moderadora), Leandro Pereira (MME, Brasil), Erik Tejeda (Honduras), Ryan Cobb (Belize) e Mauricio Bejarano (Paraguai) .
Spinelli abriu destacando a singularidade da região: matrizes elétricas limpas, porém pressionadas pelo crescimento da demanda e pela vulnerabilidade climática.
Leandro Pereira ressaltou que o Brasil já possui 88% de sua matriz renovável e vê no armazenamento um instrumento indispensável para integrar solar e eólica. O grande gargalo, segundo ele, é a transmissão: conectar o Norte e o Nordeste, ricos em recursos, ao Sudeste, centro de consumo.
De Honduras, Erik Tejeda trouxe a realidade de um país ainda sujeito a apagões e dependente de combustíveis fósseis importados. O armazenamento, disse ele, é vital para dar estabilidade, mas só avançará com apoio multilateral e financiamento externo.
Ryan Cobb descreveu os desafios de Belize, onde setores como turismo e call centers impulsionam a demanda. Defendeu soluções descentralizadas e microrredes, ressaltando o peso do custo elevado da energia sobre a competitividade econômica.
Por fim, Mauricio Bejarano, do Paraguai, destacou a oportunidade de transformar o excedente hidrelétrico em vetor de industrialização. O desafio, no entanto, é não se limitar à exportação, mas criar cadeias de valor internas.
Apesar das diferenças de escala, todos concordaram em quatro pontos: a integração regional é inevitável; o gás naturalcontinua sendo combustível de transição; o armazenamento é um pilar emergente; e o financiamento/regulaçãopermanecem como gargalos.
Conclusão: um fio condutor comum
O segundo dia da X Semana de la Energía deixou claro que a América Latina vive um paradoxo: é a região com maior potencial de renováveis do mundo, mas ainda precisa superar barreiras institucionais, financeiras e técnicas para transformar esse potencial em realidade.
A narrativa mostrou que hidroeletricidade, geopolítica, armazenamento e perspectivas regionais não são capítulos isolados, mas peças de um mesmo quebra-cabeça. O futuro energético latino-americano dependerá da capacidade de construir pontes — entre países, entre setores e entre tecnologias.
Se a transição é global, a América Latina e o Caribe têm a chance de liderá-la, desde que alinhem visão de longo prazo, estabilidade regulatória e cooperação regional. O Chile mostrou sua ambição, o Brasil reforçou sua escala, e os demais países trouxeram desafios que precisam de soluções conjuntas. Mais do que um debate técnico, o que se viu foi um debate sobre futuro, soberania e integração.