Introdução: um dia que mostrou o futuro energético da região
No terceiro dia da X Semana de la Energía, em Santiago do Chile, teve uma das jornadas mais densas e inspiradoras do evento. Foi um dia marcado pela diversidade de temas, desde a visão institucional internacional até os caminhos concretos para escalar eficiência energética, construir redes elétricas mais resilientes e integrar agricultura e energia solar por meio do AgroPV.
Este relato não é apenas uma descrição do que vi e ouvi, mas uma interpretação das mensagens e sinais que emergiram ao longo do dia. Compartilho aqui como percebi as discussões e de que maneira elas refletem os desafios e oportunidades que a América Latina enfrenta em sua transição energética .
Sessão aberta da reunião de ministros: compromissos além da retórica
A manhã começou com a sessão aberta da reunião de ministros de energia da América Latina. As intervenções, na parte pública que participei, foram feitas por representantes de organismos internacionais, que trouxeram uma perspectiva institucional.
O recado principal foi claro: não basta anunciar metas, é preciso manter compromissos constantes. A cada mudança de rumo ou atraso em cronogramas, a governança energética se fragiliza, e a região perde tempo precioso na corrida global pela descarbonização .
Outro ponto forte foi a ênfase na inclusão social. Estima-se que ainda existam cerca de 3 milhões de sistemas precários de acesso à energia em funcionamento na América Latina. Esse número foi apresentado como símbolo da urgência em conciliar expansão renovável com acesso universal.
A CEPAL reforçou a mensagem de que sem instituições sólidas e marcos regulatórios estáveis, não haverá estabilidade para sustentar a transição.
A sessão concluiu destacando três dimensões que devem guiar a região:
- Ambiental: acelerar a transição para fontes limpas;
- Social: garantir acesso a quem está excluído;
- Política: consolidar governança e continuidade .
O que incentiva o setor privado a investir em eficiência energética?
O segundo painel que acompanhei trouxe uma questão estratégica: como incentivar o setor privado a investir em eficiência energética na América Latina e no Caribe.
Diversidade de setores e instrumentos
Logo na abertura, ficou claro que eficiência energética não pode ser tratada como tema restrito a grandes indústrias. Ela se aplica a residências, comércio, pequenas e médias empresas, transporte e, claro, às grandes plantas industriais .
A especialista Stéphanie Nour, da Econoler, chamou atenção para o papel das tarifas reais, que reflitam os custos de produção e distribuição. Quando a tarifa é artificialmente baixa, a eficiência perde atratividade. Mas ela foi além: tarifa sozinha não basta. É preciso uma arquitetura em três pilares: regulação, capacitação/informação e incentivos .
Incentivos monetários e reputacionais
Andrea Heins, do UNEP Copenhagen Climate Center, lembrou que subsídios e linhas especiais existem, mas têm custo fiscal. Não há dinheiro mágico, e muitas vezes é preciso passar por aprovação parlamentar. Por isso, sugeriu também incentivos não monetários, como reconhecimento público e acordos voluntários — medidas de baixo custo e alto impacto reputacional .
Financiamento climático e inclusão
Gemma Bedia Bueno, da Alinnea, trouxe a dimensão social: o financiamento climático pode ser uma oportunidade, mas só se for bem direcionado. É necessário chegar até PMEs, cooperativas e atores locais. Microcréditos e garantias podem transformar acesso em realidade. O risco, segundo ela, é que eficiência energética seja vista como “negócio inseguro” por bancos, justamente pela falta de informação técnica .
Do piloto à escala
Rosa Riquelme, da Agência de Sustentabilidade Energética do Chile, destacou que pilotos provam viabilidade, mas não escalam sozinhos. É preciso dados robustos, continuidade regulatória e um mercado de serviços confiável. Falta ainda um registro regional de provedores qualificados e certificações reconhecidas .
Mensagem final
A conclusão coletiva: a eficiência energética deve ser sempre a primeira opção. Antes de pensar em novas usinas, devemos otimizar o consumo. É mais barato, competitivo e sustentável .
Construindo resiliência energética em ALC
O terceiro painel do dia foi um dos mais instigantes: Construyendo resiliencia energética en ALC.
O presidente da Enel Chile, Gianluca Palumbo, abriu lembrando que a frequência e a intensidade de eventos extremos vêm aumentando. Enchentes, ondas de calor e tempestades são hoje fatores que pressionam diretamente os sistemas elétricos .
O modelo das 4R
Palumbo apresentou o modelo das 4R:
- Risk prevention: fortalecimento da rede, manutenção e práticas operativas;
- Readiness: sistemas de alerta, simulações e convenios com instituições;
- Response: telecontrole, automação e comunicação constante;
- Recovery: intervenções rápidas, reparações e melhoria contínua .
Sua mensagem foi clara: resiliência não é apenas tecnológica, mas também institucional e regulatória.
Um novo marco regulatório
A resiliência exige métrica, coordenação e estabilidade regulatória. Sem isso, a resposta é fragmentada. Com isso, a resposta é sistêmica, envolvendo distribuidoras, transmissoras, governos locais e até defesa civil .
O painel, que reuniu também Alessandra Amaral (ADELAT), Arturo Alarcón (BID), Maria Medard (CARILEC) e Marina Dockweiler (FONPLATA), reforçou a necessidade de tratar a resiliência como investimento econômico. Não se trata apenas de proteger redes, mas de garantir continuidade de serviços essenciais para toda a economia .
AgroPV: unindo agricultura e energia solar
Encerrando o dia, participei do painel sobre AgroPV: energía solar y agricultura resiliente para la transición energética y climática. Esse foi, sem dúvida, um dos mais inspiradores.
Uso compartilhado do solo
Logo na abertura, ouvi que o AgroPV representa um uso inteligente e compartilhado do solo. Não se trata de escolher entre agricultura e energia solar: é possível fazer os dois juntos. A prova são os sistemas já instalados no sul do Chile, que mostram que é viável produzir energia e, ao mesmo tempo, proteger cultivos contra estresses climáticos .
O guia prático do Fraunhofer
Frederik Schönberger, do Fraunhofer Chile, apresentou um manual para projetos AgroPV. Ele propõe um processo em cinco etapas:
- Identificar requisitos do cultivo (luz, água, fenologia).
- Checar compatibilidade com operações agrícolas.
- Dimensionar requisitos elétricos.
- Planejar aspectos estruturais e normativos.
- Usar uma matriz de parâmetros para tomar decisões equilibradas .
Esse guia busca traduzir ciência em prática, simplificando dados técnicos para agricultores e desenvolvedores.
O papel da ISA
Hugo Morales, da International Solar Alliance, trouxe a visão global. A ISA atua em quatro pilares: políticas, participação privada, capacitação e mobilização de capital. O programa “Farm first” foi desenhado para colocar o agricultor no centro, garantindo que AgroPV seja uma resposta às necessidades locais .
Ele defendeu também a criação de uma facility regional de financiamento, capaz de escalar pilotos em uma carteira de projetos maior, com garantias e seguros que atraiam bancos locais.
O que falta
O painel apontou três pontos críticos para avançar:
- Normativas claras para uso dual do solo;
- Modelos de negócio adaptados (PPAs agrícolas, cooperativas, GD com armazenamento);
- Dados comparáveis sobre produtividade agrícola e geração solar .
Conclusão: o fio condutor do dia
Ao final do terceiro dia da X Semana de la Energía, saí com a sensação de que há um fio condutor entre eficiência energética, resiliência e AgroPV. O que une todos esses temas é a necessidade de transformar potencial em realidade, com:
- Instituições fortes;
- Dados confiáveis;
- Modelos de negócio inovadores;
- Compromissos sustentados no tempo.
A América Latina tem recursos, conhecimento e vontade. O desafio é alinhar tudo isso para que a transição energética seja, ao mesmo tempo, limpa, resiliente e inclusiva.