A chamada Curva do Pato representa uma distorção no perfil de carga líquida dos sistemas elétricos com alta penetração solar. Ela ocorre quando, ao meio-dia, a geração solar ultrapassa a demanda local, obrigando o operador do sistema a reduzir a produção para evitar sobrecarga. No final da tarde, o oposto acontece: a geração solar desaparece rapidamente, ao mesmo tempo em que a demanda cresce com o retorno das pessoas para casa, exigindo rampas rápidas de geração térmica. O Brasil já vive esse fenômeno. Segundo a EPE (2024), o país registrou mais de 2 GW médios de curtailment solar — ou seja, energia gerada e não aproveitada — com destaque para o Nordeste. Isso é resultado de um conjunto de fatores: crescimento acelerado da geração distribuída sem planejamento integrado, atrasos na expansão da rede de transmissão e ausência de instrumentos de flexibilidade como baterias e resposta da demanda.
A Curva do Pato foi observada pela primeira vez em 2013, na Califórnia, pelo operador CAISO, e hoje é documentada em diversas regiões com forte presença de energia solar. No período da manhã, a carga sobe gradualmente e a geração solar entra aos poucos. Ao meio-dia, a produção atinge seu pico, reduzindo drasticamente a carga líquida — essa é a “barriga do pato”. Já no fim da tarde, a solar cai e a demanda sobe, formando o “pescoço do pato”, uma rampa que pressiona o sistema a responder rapidamente. Isso gera dois riscos principais: excesso de geração, que pode causar instabilidade e obrigar o desligamento de usinas, e a necessidade de rampas rápidas de potência firme, que elevam os custos operacionais e as emissões.

No Brasil, o curtailment está associado diretamente a falhas de planejamento e coordenação. A geração distribuída, especialmente a solar, avançou de forma descentralizada e descoordenada em relação à capacidade da rede, principalmente em áreas do semiárido nordestino. Paralelamente, grandes usinas contratadas em leilões aguardam conexão por conta de atrasos em obras de transmissão. Além disso, a flexibilidade operacional do sistema é limitada, uma vez que o Brasil ainda depende de hidrelétricas e térmicas que não conseguem responder com agilidade às variações bruscas de carga. Soma-se a isso a ausência de baterias e de um modelo de precificação horária, que permitiria deslocar o consumo para horários mais solares ou remunerar a geração conforme sua contribuição sistêmica.
O impacto é mensurável. A EPE estima perdas superiores a 2 GW médios nos momentos de pico solar. O ONS e a CCEE alertam para a saturação de pontos críticos na rede, comprometendo a confiabilidade e a expansão da geração renovável. Para enfrentar esse cenário, estão em curso algumas iniciativas: propostas de sinal locacional e tarifa horária, leilões com reserva de capacidade incluindo armazenamento, estudos para usinas reversíveis, projetos-piloto de resposta da demanda e o mapeamento de áreas congestionadas.
As implicações são estratégicas. A flexibilidade passa a ser um ativo central no novo modelo energético. O sucesso da matriz solar não depende apenas da geração, mas da capacidade do sistema de absorver e integrar essa energia com inteligência. Isso exige planejamento integrado, digitalização da rede e sinalização econômica adequada. Também abre espaço para novos modelos de negócio: baterias, gestão de carga, agregadores de demanda e ativos virtuais podem desempenhar papel relevante, desde que os sinais de mercado sejam compatíveis com essa nova realidade.
A Curva do Pato, portanto, já não é uma abstração no Brasil. O curtailment solar é uma realidade que compromete eficiência, competitividade e a própria transição energética. As soluções estão disponíveis, mas exigem coordenação entre planejamento, regulação e inovação. Armazenamento, redes preparadas e precificação correta são peças-chave para garantir um futuro energético limpo, resiliente e funcional.
Próximos passos: acompanhar a evolução dos estudos regulatórios da ANEEL, os pilotos do ONS com baterias como serviço ancilar e os leilões de capacidade com armazenamento.
Fontes: EPE (2024), ONS, CCEE, CAISO, REE, China NEA, IEA