Eduardo M Fagundes

Tech & Energy Insights

Análises independentes sobre energia, tecnologias emergentes e modelos de negócios

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Smart Cities Inclusivas e Inteligentes

Introdução

O conceito de “cidade inteligente” tem se consolidado nas últimas décadas como um eixo estruturante das agendas urbanas globais. Amplamente disseminado por organismos multilaterais, planos nacionais de desenvolvimento e iniciativas privadas, ele representa uma promessa de transformação profunda: cidades mais eficientes, seguras, sustentáveis e conectadas por meio de tecnologias digitais de ponta. No entanto, à medida que o termo se difunde, torna-se igualmente necessário submetê-lo à crítica e à ressignificação.

Este estudo parte da premissa de que a inteligência urbana não pode ser reduzida à capacidade de sensores, algoritmos e plataformas. Pelo contrário, propõe-se a investigar em que medida as tecnologias digitais podem — ou não — ser colocadas a serviço de uma cidade inclusiva, democrática e comprometida com o bem-estar coletivo. Para isso, assume como base analítica a noção de que a cidade é uma infraestrutura sociotécnica viva, onde inovação tecnológica e inovação social devem caminhar lado a lado.

Uma Agenda Ampliada: Justiça Urbana, Energia e Inteligência Distribuída

A partir dessa visão expandida, o presente artigo estrutura-se em torno de sete eixos principais:

  • Justiça urbana e inclusão digital, com base na crítica aos modelos top-down e na valorização da participação cidadã em escala territorial;
  • Energia renovável como direito, incluindo o papel da microgeração, da agricultura solar (agrivoltaica) e das moedas digitais como ferramentas redistributivas;
  • Governança ESG por meio de PPPs e modelos híbridos, com destaque para os fatores críticos de sucesso e as lições internacionais aplicáveis ao contexto brasileiro;
  • Infraestruturas digitais descentralizadas, como Edge Datacenters e sistemas de IA distribuída, voltados à soberania informacional e à autonomia regional;
  • Educação e cidadania ativa como alicerces da inteligência urbana, inclusive no enfrentamento das exclusões digitais e na formação de capacidades locais;
  • Saúde conectada como dimensão estrutural da cidade inteligente, ancorada em dados territoriais e na integração com outras políticas públicas;
  • Governança algorítmica e moedas sociais digitais, explorando novas formas de participação e accountability em ambientes urbanos cada vez mais orientados por dados.

Da Crítica à Proposição: Um Roteiro Estratégico

Mais do que um mapeamento teórico, este estudo visa oferecer um roteiro estratégico para a concepção de políticas públicas, programas de inovação e projetos urbanos orientados à equidade. Com isso, busca responder a uma questão central: quais são as condições técnicas, institucionais e sociais para que a cidade inteligente seja também uma cidade justa?

A resposta a essa pergunta exige a superação de visões tecnodeterministas e a construção de abordagens integradas, intersetoriais e ancoradas no território. Isso implica reconhecer que a inteligência urbana é antes de tudo uma construção coletiva, que depende tanto de redes de fibra ótica quanto de redes de solidariedade, tanto de algoritmos quanto de valores, tanto de datacenters quanto de centros comunitários.

Com isso, pretende-se contribuir para o debate contemporâneo sobre o futuro das cidades, oferecendo insumos técnicos, estratégicos e éticos para os que se dedicam a pensar e construir territórios verdadeiramente inteligentes.

Abstract

This paper explores the emerging paradigm of inclusive and intelligent smart cities, integrating advanced digital technologies with a deep commitment to social equity, sustainability, and participatory governance. Grounded in a socio-technical systems approach, the study critically examines the limitations of top-down urban digitalization and advocates for a people-centered model of innovation. Drawing from recent academic contributions, it highlights the relevance of renewable energy as a right, the strategic role of social digital currencies in redistributive policies, and the transformative potential of artificial intelligence and edge computing in decentralized urban infrastructures.

Special attention is given to the governance architectures that enable cross-sector collaboration, including new public-private-community partnerships (PPPPs) and ESG-aligned financing models. The research also addresses key domains such as digital education, health data platforms, and algorithmic accountability, framing them as essential pillars for digital citizenship and urban sovereignty.

The paper concludes by proposing a set of strategic initiatives — including agrivoltaic-energy networks, modular edge datacenters, and AI-based observatories — designed to guide future smart city projects in Latin America and beyond. By positioning the city as a laboratory of complex and contextualized solutions, this work contributes to rethinking urban intelligence not as a technological fetish, but as a collective social endeavor.

Da Cidade Conectada à Cidade Inclusiva

O conceito de smart city evoluiu significativamente nas últimas duas décadas, saindo de uma concepção predominantemente tecnológica e funcional — centrada na eficiência e na conectividade — para um campo de disputas sociais, éticas e políticas. Este capítulo propõe uma transição conceitual e estratégica: da cidade conectada, marcada por infraestrutura e sensores, à cidade inclusiva, que considera a diversidade de seus habitantes, a justiça territorial e a centralidade da participação cidadã. O ponto de partida é uma crítica fundamentada aos modelos de urbanismo digital top-down, com base em evidências da literatura recente.

A crítica aos modelos top-down de urbanismo digital

Boa parte dos projetos de cidades inteligentes implementados globalmente nos últimos anos tem adotado uma abordagem vertical, centrada em grandes players de tecnologia, com forte ênfase em controle, monitoramento e eficiência operacional. Esta lógica top-down privilegia uma racionalidade instrumental, muitas vezes distante das realidades sociais e territoriais das comunidades locais.

Colding, Nilsson e Sjöberg (2024), no artigo Smart Cities for All?, questionam a validade de estratégias que não levam em conta as “capacidades de conversão” de diferentes grupos sociais — conceito derivado da abordagem das capacidades de Amartya Sen. Segundo os autores, a desigualdade digital se manifesta não apenas no acesso, mas também na apropriação significativa das tecnologias. A cidade inteligente, portanto, corre o risco de reforçar desigualdades estruturais se não incorporar mecanismos explícitos de inclusão ativa.

A digitalização, em vez de ser uma alavanca de equidade, pode se tornar um vetor de exclusão — especialmente quando combinada a sistemas automatizados de decisões públicas que carecem de transparência, accountability e diversidade de dados. A gestão de algoritmos por autoridades públicas sem controle social é um risco real, e a literatura tem alertado para a reprodução de vieses no desenho de serviços urbanos, desde segurança até saúde e educação.

A cidade como infraestrutura sociotécnica viva

Diante dessa crítica, propõe-se uma visão alternativa: pensar a cidade não apenas como um território físico ou um sistema de redes técnicas, mas como uma infraestrutura sociotécnica viva. Isto significa entender a cidade como um organismo em constante retroalimentação entre pessoas, máquinas, dados, normas e culturas. Essa perspectiva exige abordagens integradas, sensíveis ao território e abertas à pluralidade de agentes e saberes.

O conceito de infraestrutura sociotécnica viva propõe que sensores, algoritmos e plataformas digitais devem ser concebidos como extensões das capacidades humanas e não substitutos. Ao invés de invisibilizar o papel das pessoas na produção da cidade, o projeto de uma cidade inteligente inclusiva deve tornar visíveis os fluxos de poder, as decisões automatizadas e os processos de exclusão implícitos.

Nesse sentido, Katmada, Katsavounidou e Kakderi (2023), ao explorarem o conceito de Platform Urbanism for Sustainability, argumentam que as plataformas digitais podem ser redesenhadas como instrumentos de escuta, deliberação e cocriação de políticas urbanas. A transição para plataformas inclusivas envolve, por exemplo, códigos abertos, participação deliberativa em tempo real e garantias de representatividade de grupos tradicionalmente marginalizados — como mulheres, idosos, pessoas com deficiência e populações racializadas.

Inclusão, territorialidade e justiça urbana digital

A construção de uma cidade realmente inteligente deve ser inseparável de três eixos: inclusão, territorialidade e justiça digital. Inclusão significa mais do que ofertar acesso técnico à internet; envolve reconhecer os diferentes modos de vida e traduzir a complexidade social em arquiteturas digitais acessíveis, compreensíveis e úteis. Territorialidade refere-se à valorização de saberes locais e de formas comunitárias de gestão dos bens comuns — desde a energia até os dados. Justiça digital é o princípio orientador: garantir que os processos algorítmicos, as decisões automatizadas e os sistemas digitais respeitem os direitos humanos, promovam a equidade e operem com ética.

Essa tríade exige um redesenho institucional. Não basta adaptar legislações para o digital. É preciso criar novos espaços institucionais e regulatórios que permitam o controle social sobre plataformas, a auditoria de algoritmos e o uso democrático dos dados públicos. Isso inclui desde mecanismos de escuta ativa (como consultas públicas digitais), até a criação de conselhos de governança digital com participação paritária da sociedade civil.

As experiências analisadas por Katmada et al. (2023) em cidades como Londres, Bengaluru e Kampala demonstram que iniciativas locais de cocriação — como laboratórios vivos (living labs), assembleias digitais e urbanismo tático com suporte digital — têm maior potencial de impacto quando construídas com mediação territorial. Esse tipo de mediação garante que a tecnologia se adapte ao lugar, e não o contrário.

Considerações parciais

O deslocamento da “cidade conectada” para a “cidade inclusiva” não é apenas semântico, mas político e estrutural. Supõe uma inflexão teórica e prática: da primazia da técnica para a centralidade das pessoas. As referências analisadas neste capítulo demonstram que a tecnologia, em si, não garante inclusão — mas pode ser uma poderosa aliada quando submetida a processos democráticos, territoriais e éticos.

Ao incorporar o conceito de cidade como infraestrutura sociotécnica viva, abrimos espaço para pensar projetos urbanos em que sensores e algoritmos estejam a serviço da equidade — e não apenas da eficiência. A seguir, veremos como a energia renovável, distribuída de forma inteligente e aliada a moedas sociais, pode se tornar uma dessas infraestruturas distributivas de justiça urbana.

Energia Renovável como Direito e Plataforma de Equidade

A transição energética não pode ser pensada apenas como substituição de fontes fósseis por renováveis. Ela deve ser compreendida como um projeto de reestruturação social e econômica das cidades, principalmente em contextos de vulnerabilidade. A energia, além de insumo técnico, é vetor de cidadania e dignidade. Quando distribuída de forma justa e inteligente, torna-se uma infraestrutura de equidade. Este capítulo explora como iniciativas de geração renovável descentralizada, associadas a moedas sociais e tecnologias digitais, podem transformar territórios marcados pela exclusão em plataformas de justiça energética.

Agrivoltaico e microgeração em zonas vulneráveis

A descentralização da matriz energética, impulsionada pela microgeração distribuída e pela queda dos custos de tecnologias fotovoltaicas, abre novas possibilidades para a inclusão energética de populações historicamente à margem do sistema. Entre essas possibilidades, destaca-se o modelo agrivoltaico, que combina produção de alimentos e geração de energia solar no mesmo espaço, com alta aplicabilidade em periferias urbanas, zonas periurbanas e assentamentos produtivos.

Mais do que otimizar o uso da terra, o agrivoltaico permite a criação de ecossistemas produtivos energizados, que reduzem a vulnerabilidade socioambiental, fortalecem a segurança alimentar e promovem renda local. Quando aliado a modelos cooperativos e circuitos curtos de comercialização, esse modelo se torna um instrumento eficaz de desenvolvimento sustentável. Em regiões de baixo IDH ou de alta instabilidade climática, a implantação de microusinas solares pode garantir resiliência elétrica para escolas, postos de saúde, centros comunitários e moradias.

O desafio, no entanto, está menos na viabilidade técnica e mais na engenharia institucional e financeira. A implementação de microgeração em zonas vulneráveis requer mecanismos de financiamento inclusivos, marcos regulatórios sensíveis ao território e participação ativa das comunidades. Aqui, entram em cena instrumentos inovadores como as moedas sociais digitais.

Moeda social como ferramenta de redistribuição energética

Inspirado no modelo do Greencoin Project (2023), o uso de moedas sociais atreladas à produção e ao consumo de energia limpa é uma estratégia promissora para reverter desigualdades energéticas e estimular comportamentos pró-ambientais. Essas moedas podem ser distribuídas com base em métricas de economia de energia, participação comunitária, produção agrícola associada à energia renovável ou mesmo pela adesão a práticas de consumo consciente.

Diferente de políticas compensatórias unidirecionais, a moeda social permite a construção de um circuito econômico local, no qual os ganhos gerados pela energia renovável permanecem no território. Ao serem utilizadas em comércios locais, transporte público, eventos culturais ou serviços públicos digitais, essas moedas estimulam a economia circular, promovem o pertencimento comunitário e fortalecem a autonomia cidadã.

No contexto brasileiro, onde há experiências consolidadas de moedas sociais como o Banco Palmas, associar esse instrumento à infraestrutura energética pode representar uma inflexão na lógica da pobreza energética. A energia, nesse modelo, deixa de ser um custo para o consumidor e passa a ser um ativo comunitário.

O papel da inteligência artificial na gestão da geração e do consumo

A complexidade da gestão descentralizada da energia, especialmente em comunidades com múltiplos perfis de consumo, torna o uso da inteligência artificial (IA) um fator estratégico. Algoritmos de aprendizado de máquina podem ser empregados para prever padrões de demanda, otimizar o uso dos sistemas fotovoltaicos, ajustar a distribuição dos créditos em moeda social e alertar famílias sobre picos de consumo ou riscos de interrupção.

Além disso, a IA pode ser utilizada para criar modelos preditivos de impacto social, associando dados de consumo energético com indicadores educacionais, de saúde e de renda. Isso permite uma gestão integrada, na qual a energia não é apenas um insumo técnico, mas um indicador da dinâmica socioeconômica local.

A IA também facilita a governança do sistema, permitindo que os próprios moradores visualizem seus dados de consumo, tomem decisões informadas e participem ativamente da gestão energética. Sistemas amigáveis de visualização, integrados a aplicativos simples, reforçam a transparência e o empoderamento comunitário.

Considerações parciais

A energia, quando pensada como direito e não como mercadoria, abre caminhos para a transformação profunda das cidades. Modelos como o agrivoltaico, combinados a moedas sociais e suportados por inteligência artificial, permitem a criação de plataformas locais de equidade. O caso de São Sebastião é um exemplo concreto de como inovação tecnológica e justiça social podem caminhar juntas, desde que ancoradas em desenho institucional participativo, sensibilidade territorial e compromisso ético com o futuro urbano.

Na próxima seção, exploraremos como a lógica ESG pode ser expandida para além das métricas corporativas, tornando-se um verdadeiro eixo de governança compartilhada entre governos, empresas e comunidades.

ESG e PPP: Novas Arquiteturas de Governança para Cidades Inteligentes

À medida que o paradigma das cidades inteligentes se consolida como vetor central das políticas urbanas contemporâneas, torna-se inevitável o enfrentamento de um desafio estrutural: como financiar, operacionalizar e sustentar soluções urbanas complexas em um ambiente marcado por restrições fiscais, desigualdades territoriais e pressões ambientais? Este capítulo analisa o papel das Parcerias Público-Privadas (PPPs) — e sua evolução para arranjos mais amplos, como as Parcerias Público-Privadas-Populares (PPPPs) — como instrumento de governança e viabilização financeira de projetos urbanos integrados ao conceito de ESG (ambiental, social e governança).

Inspirando-se na literatura internacional recente (Mirzaee et al., 2022; Quan & Solheim, 2023), discutiremos como a articulação entre diferentes atores — Estado, mercado e sociedade civil — pode permitir uma arquitetura institucional mais resiliente, inclusiva e estratégica para a implementação de soluções de cidade inteligente no contexto brasileiro.

PPP e PPPP como modelo de financiamento urbano inteligente

As PPPs têm sido amplamente utilizadas em infraestrutura tradicional — como saneamento, transporte e iluminação pública — e agora se expandem para soluções mais sofisticadas, como redes de sensores, datacenters de borda (edge computing), plataformas de mobilidade integrada, projetos de eficiência energética e sistemas de segurança baseados em inteligência artificial.

No contexto das smart cities, essa forma contratual apresenta vantagens importantes: viabiliza a introdução de capital privado em projetos de alta complexidade técnica e longa maturação, permite a gestão de riscos compartilhados e induz a modernização dos serviços públicos. No entanto, a transposição pura e simples dos modelos tradicionais de PPP para o campo das tecnologias urbanas tem se mostrado insuficiente. Isso ocorre porque os projetos de cidade inteligente demandam mais do que infraestrutura física: requerem interoperabilidade digital, sensibilidade social, engajamento comunitário e capacidade de adaptação contínua.

É nesse ponto que ganha relevância o conceito de PPPP – Parceria Público-Privada-Popular, que amplia o escopo da parceria para incluir a sociedade civil organizada como ator legítimo na concepção, implementação e monitoramento dos projetos. Quan & Solheim (2023) defendem que as PPPPs podem ser a chave para compatibilizar inovação tecnológica com justiça territorial, promovendo uma cidade digital inclusiva e responsiva às necessidades reais da população.

Fatores críticos de sucesso: contrato, colaboração e sustentabilidade

O sucesso das parcerias em projetos de cidades inteligentes está diretamente relacionado a três pilares: estrutura contratual clara, mecanismos colaborativos robustos e compromissos explícitos com a sustentabilidade.

  1. Contrato: A literatura destaca que contratos de PPP voltados para soluções urbanas digitais devem incorporar cláusulas específicas sobre segurança de dados, atualização tecnológica, governança algorítmica e continuidade dos serviços digitais em caso de encerramento da parceria. Conforme Almarri & Boussabaine (2023), o desenho contratual deve ser suficientemente flexível para acomodar inovações emergentes, mas também suficientemente robusto para garantir responsabilidade, transparência e performance.
  2. Colaboração: A lógica adversarial tradicional de contratos público-privados deve dar lugar a arranjos colaborativos baseados em metas compartilhadas, fluxos de informação contínuos e instâncias de governança conjunta. A literatura recente sugere que fóruns de co-gestão com representantes do setor público, empresas operadoras e organizações da sociedade civil melhoram a governança dos projetos e reduzem os riscos políticos e técnicos.
  3. Sustentabilidade: Projetos urbanos inovadores só serão legítimos se incorporarem indicadores ESG desde sua concepção. Isso significa que os impactos ambientais devem ser monitorados em tempo real; os benefícios sociais, mensurados por indicadores de equidade e inclusão; e a governança, auditada por órgãos independentes com participação multissetorial. A integração entre plataformas tecnológicas e instrumentos de ESG dinâmico é uma fronteira importante do novo urbanismo digital.

Experiência internacional e implicações para o Brasil

Diversas cidades no mundo têm experimentado modelos híbridos de governança para estruturar soluções de cidade inteligente com base em PPPs ou PPPPs. A cidade de Barcelona, por exemplo, adotou uma abordagem centrada na soberania digital, criando uma política pública para limitar o poder das grandes plataformas e garantir que os dados coletados em serviços urbanos sejam de propriedade pública. Já Copenhague tem integrado PPPs com metas ambientais estritas, vinculando a concessão de serviços urbanos inteligentes à redução de emissões e à melhoria da qualidade de vida em bairros vulneráveis.

Singapura, por sua vez, aposta em PPPs fortemente ancoradas em metas de eficiência e inovação, com uso intensivo de IA, sensores e plataformas de predição urbana. Em todos os casos, nota-se a crescente institucionalização de métricas ESG como condição de elegibilidade e monitoramento das parcerias.

No Brasil, o desafio é duplo: além de criar condições legais e operacionais para que PPPs avancem em áreas tecnológicas, é preciso assegurar que essas parcerias estejam conectadas a objetivos públicos legítimos e socialmente pactuados. A ausência de uma política nacional de cidades inteligentes com foco em equidade dificulta a replicação de modelos internacionais. No entanto, há oportunidades concretas em programas como o Pró-Cidades, os editais de P&D regulados pela ANEEL, e os acordos de cooperação entre municípios e empresas de tecnologia.

Considerações parciais

As parcerias para cidades inteligentes precisam ir além da lógica instrumental da delegação de serviços. Devem ser concebidas como instrumentos de transformação urbana orientados por valores públicos, onde a tecnologia é um meio — e não o fim. A maturidade contratual, a capacidade de gestão compartilhada e o enraizamento territorial são os elementos que definem o sucesso ou o fracasso dessas iniciativas. Incorporar os princípios ESG e valorizar a participação da sociedade civil não é apenas uma boa prática — é um imperativo ético e estratégico para que o projeto de cidade inteligente não seja excludente, opaco ou frágil.

No próximo capítulo, analisaremos como a inteligência artificial e os edge datacenters moldam a infraestrutura invisível das cidades digitais, seus riscos e potencial transformador.

Edge Computing, Inteligência Artificial e Soberania Urbana

À medida que as cidades evoluem para estruturas cada vez mais conectadas e orientadas por dados, a capacidade de tomar decisões em tempo real, de forma segura e autônoma, tornou-se um dos pilares da nova governança urbana. Este capítulo explora como a combinação entre edge computing e inteligência artificial distribuída está moldando uma nova infraestrutura técnica e institucional para as cidades inteligentes — uma infraestrutura que não apenas processa dados, mas reforça a soberania digital e o desenvolvimento regional.

Com base nas contribuições recentes de Henderson (2024) e Biswas (2024), discutiremos o papel estratégico dos edge datacenters na redução da latência, no controle local dos dados e na operação de sistemas urbanos críticos. Mais do que uma opção tecnológica, o edge computing representa uma decisão política e territorial sobre onde, como e por quem os dados urbanos serão processados e convertidos em ação.

A importância dos Edge Datacenters e da IA distribuída

Tradicionalmente, as cidades que implementaram sistemas inteligentes basearam-se em arquiteturas centralizadas de computação em nuvem. Contudo, essa abordagem mostra-se limitada quando se trata de aplicações que exigem respostas imediatas, resiliência em contextos adversos ou governança territorializada dos dados.

É nesse contexto que os edge datacenters emergem como solução técnica e estratégica. Eles são centros de processamento de dados localizados fisicamente mais próximos dos dispositivos e sensores — como câmeras, medidores inteligentes, semáforos e estações ambientais — permitindo uma redução significativa na latência e maior confiabilidade dos sistemas urbanos.

Segundo Henderson (2024), o edge computing, ao ser combinado com algoritmos de IA embarcados, permite que a própria borda da rede tome decisões rápidas e contextuais, sem a necessidade de comunicação constante com centros de dados distantes. Isso é especialmente relevante para sistemas que operam em situações críticas, como controle de tráfego, resposta a emergências, monitoramento ambiental e gestão de cargas energéticas.

Além disso, Biswas (2024) argumenta que a inteligência artificial distribuída — operando em dispositivos ou clusters locais — amplia a eficiência energética dos sistemas, reduz custos operacionais e permite o treinamento de modelos com dados locais sensíveis, respeitando requisitos de privacidade e conformidade regulatória.

Redução de latência, segurança de dados e autonomia local

Três benefícios centrais decorrem da adoção do edge computing e da IA distribuída em ambientes urbanos:

  1. Redução de latência: Sistemas de mobilidade autônoma, iluminação adaptativa e controle de saneamento inteligente dependem de respostas em milissegundos. A latência causada por infraestruturas centralizadas compromete a eficácia desses sistemas. Edge datacenters reduzem drasticamente o tempo entre a coleta do dado e a ação correspondente.
  2. Segurança e privacidade de dados: Processar dados no próprio território da cidade — ou mesmo dentro de bairros ou equipamentos públicos — minimiza os riscos de interceptação, espionagem e vazamentos. Além disso, facilita o cumprimento de legislações locais de proteção de dados, fortalecendo a confiança institucional dos cidadãos.
  3. Autonomia e soberania digital local: Ao descentralizar o poder computacional, o edge computing empodera governos locais, comunidades e empresas regionais, criando um ecossistema urbano menos dependente de infraestruturas externas ou concentradas em poucos provedores globais. Isso favorece a governança territorial dos dados e incentiva cadeias produtivas locais de inovação.

Aplicações concretas: mobilidade, energia, saneamento e iluminação pública

A tecnologia de borda não é apenas uma promessa — já está sendo aplicada em diversas frentes de política urbana inteligente:

  • Mobilidade urbana: Semáforos inteligentes conectados a sensores de fluxo e algoritmos de IA permitem o ajuste dinâmico da malha viária. Em cidades com edge computing, esse ajuste ocorre em tempo real, mesmo sem conexão com a nuvem central.
  • Energia e geração distribuída: Sistemas de microgeração solar, como os estudados em São Sebastião, podem utilizar IA local para prever geração, modular o consumo e redirecionar excedentes. Edge datacenters integrados à rede elétrica contribuem para a operação segura e eficiente de microgrids.
  • Saneamento básico: Em locais com infraestrutura precária, sensores conectados a plataformas locais permitem alertas imediatos sobre vazamentos, entupimentos ou contaminações. Isso acelera a resposta e reduz desperdícios.
  • Iluminação pública adaptativa: A integração entre sensores de presença, luminárias LED e edge computing permite que a cidade ilumine de forma responsiva, reduzindo o consumo energético sem comprometer a segurança.

Soberania digital e desenvolvimento regional

O debate sobre edge computing e IA distribuída não se limita à engenharia ou à ciência da computação. Ele nos obriga a pensar sobre quem detém o poder sobre os dados, onde as decisões são tomadas e quem se beneficia da digitalização do urbano.

Ao implantar datacenters locais, formar profissionais regionais e criar protocolos próprios de uso e compartilhamento de dados, as cidades passam a construir sua soberania digital. Isso significa que podem decidir, de forma autônoma e transparente, como a inteligência territorial será empregada para gerar bem-estar, inclusão e desenvolvimento sustentável.

A presença de edge datacenters em regiões periféricas ou cidades médias também cria novas oportunidades de desenvolvimento regional, estimulando a descentralização da infraestrutura digital, atraindo investimentos e fortalecendo os ecossistemas locais de inovação. O Brasil, com sua imensa diversidade territorial, pode se beneficiar enormemente dessa abordagem se articular incentivos públicos, regulação clara e alianças estratégicas com universidades e setor produtivo.

Considerações parciais

A consolidação do edge computing e da IA distribuída como parte da infraestrutura urbana representa um salto qualitativo na gestão das cidades. Mais do que otimizar sistemas, essas tecnologias inauguram uma nova lógica territorial: dados e decisões no lugar onde as vidas acontecem. Essa descentralização técnica precisa vir acompanhada de descentralização política, garantindo que os avanços tecnológicos sirvam à equidade urbana, à participação cidadã e à construção de um projeto coletivo de cidade inteligente.

No próximo capítulo, aprofundaremos o papel da educação e da inclusão digital como base estruturante de qualquer projeto de cidade inteligente comprometido com o bem comum.

Educação, Inclusão Digital e Cidadania Ativa

A consolidação de cidades inteligentes depende, de forma decisiva, do papel da educação como vetor estruturante de cidadania, inclusão digital e justiça urbana. Em um contexto marcado por automação, plataformas e algoritmos, a capacidade de compreender e interagir criticamente com sistemas digitais passa a ser um requisito central da vida urbana. Não se trata apenas de garantir conectividade, mas de construir sujeitos urbanos ativos, capazes de participar, deliberar e transformar.

Este capítulo investiga como a educação pode ser mobilizada como infraestrutura estratégica da inteligência urbana, articulando-se a políticas de inclusão digital e participação cidadã. Discutem-se ainda os modelos de engajamento público nas smart cities, com base em estudos recentes, e propõe-se o referencial de Amartya Sen como matriz teórica para repensar a equidade em cidades digitalizadas.

Educação como infraestrutura da cidade inteligente

Ao se reconhecer a cidade como uma infraestrutura sociotécnica viva, é necessário expandir o conceito de educação: ela deixa de ser um serviço isolado e passa a ser fundamento da inteligência coletiva urbana. Em vez de apenas formar mão de obra para a economia digital, a educação deve capacitar os cidadãos para:

  • Decifrar sistemas algorítmicos: compreender o funcionamento de dispositivos inteligentes, aplicativos urbanos e plataformas de decisão automatizada.
  • Interagir com dados e indicadores urbanos: desenvolver letramento em dados, interpretação de dashboards e engajamento em plataformas participativas.
  • Reivindicar direitos digitais e urbanísticos: atuar de forma crítica frente a decisões públicas mediadas por tecnologia.

Essa perspectiva exige uma alfabetização digital crítica e contínua, associada a práticas pedagógicas que conectem o cotidiano urbano aos conteúdos educacionais — superando o modelo meramente técnico-instrumental de formação digital.

Modelos de participação cidadã nas cidades inteligentes

Segundo pesquisa de Jang (Jang Seok-Gil, 2025), há ao menos três níveis de participação cidadã nas cidades inteligentes, cada um exigindo competências educacionais distintas:

  1. Participação funcional: uso de canais digitais para acessar serviços urbanos (como aplicativos de transporte ou iluminação pública). É a forma mais básica de envolvimento.
  2. Participação deliberativa: envolve cidadãos em consultas, plataformas de governança ou fóruns urbanos. Exige habilidades argumentativas, compreensão de políticas públicas e leitura crítica de dados.
  3. Participação co-criativa: ocorre quando cidadãos, coletivos e instituições colaboram ativamente no design e implementação de soluções urbanas digitais — por exemplo, em hackathons, laboratórios urbanos, observatórios de dados ou projetos de ciência cidadã.

À medida que as cidades inteligentes adotam arquiteturas mais distribuídas e orientadas a dados, a participação co-criativa ganha relevância estratégica. Porém, ela só é viável se houver base educacional robusta, territorializada e sensível às múltiplas realidades sociais.

A abordagem de Amartya Sen: capacidades para a cidadania digital

A teoria das capacidades, desenvolvida por Amartya Sen, oferece um referencial valioso para avaliar o grau de inclusão efetiva nas cidades inteligentes. Ao invés de mensurar apenas a posse de bens (como acesso à internet ou dispositivos), essa abordagem considera as liberdades reais que os indivíduos têm para viver a vida que valorizam.

Aplicada ao contexto urbano digital, essa teoria leva a reflexões como:

  • Um cidadão que tem acesso à tecnologia, mas não a compreende ou não se sente seguro para usá-la, não está efetivamente incluído.
  • Uma cidade com alto índice de cobertura de Wi-Fi público não será justa se os grupos vulneráveis não conseguirem se apropriar dessa rede para fins educacionais, profissionais ou cívicos.
  • A diversidade de capacidades urbanas deve ser reconhecida — pessoas em situação de rua, idosos, migrantes, pessoas com deficiência e jovens têm diferentes necessidades e formas de relação com a cidade digital.

No artigo Smart Cities for All? (Colding et al., 2024), os autores apontam que muitas iniciativas de smart cities reproduzem injustiças estruturais ao presumirem um sujeito urbano padrão — hiperconectado, alfabetizado digitalmente, economicamente ativo. Ao fazer isso, deixam à margem amplas camadas da população.

A aplicação da teoria de Sen, nesse contexto, exige políticas públicas orientadas não apenas à provisão de infraestrutura, mas também à formação de capacidades distribuídas e emancipatórias. Educação e inclusão digital tornam-se, portanto, dimensões interdependentes de justiça urbana digital.

Considerações parciais

O avanço das cidades inteligentes impõe uma reconfiguração profunda das políticas educacionais. Em vez de adaptar escolas a novas tecnologias, trata-se de posicionar a educação como infraestrutura de cidadania digital, capaz de sustentar a participação crítica e criativa dos sujeitos na vida urbana.

Modelos de participação mais sofisticados exigem investimento constante em alfabetização digital crítica, letramento em dados e formação para o engajamento público. Nesse cenário, a teoria das capacidades oferece um norte ético: cidades são inteligentes quando ampliam as possibilidades reais de vida digna, participação e liberdade.

Saúde Urbana Conectada: Bem-Estar como Pilar de Planejamento

Historicamente, o planejamento urbano relegou o bem-estar populacional a uma função secundária, muitas vezes limitada à oferta reativa de serviços de saúde. Com o avanço das cidades inteligentes, no entanto, consolida-se uma mudança de paradigma: a saúde passa a ser concebida como infraestrutura estratégica, integrada a sistemas urbanos de dados, mobilidade, energia e educação.

Este capítulo analisa como tecnologias de monitoramento, inteligência artificial (IA) e plataformas integradas estão transformando o conceito de saúde urbana. Com base em experiências internacionais e novas arquiteturas digitais, discute-se o papel da prevenção, da personalização dos cuidados e da intersetorialidade como pilares de uma cidade saudável e inclusiva.

Dados de saúde e IA para triagem e prevenção

O uso de tecnologias de sensoriamento e análise preditiva está reformulando a forma como os territórios gerenciam riscos sanitários, epidemias e o próprio cotidiano do cuidado. A captação de dados em tempo real — oriundos de dispositivos vestíveis, prontuários eletrônicos, sensores ambientais e dados de mobilidade — permite identificar padrões e antecipar demandas antes que se tornem crises.

A inteligência artificial (IA), aplicada à saúde urbana, atua principalmente em três eixos:

  • Triagem inteligente: algoritmos identificam sintomas precoces e padrões de risco, priorizando atendimentos com base em urgência, histórico clínico e dados georreferenciados.
  • Prevenção personalizada: modelos preditivos recomendam ações preventivas individualizadas, levando em conta condições ambientais locais e perfis biomédicos.
  • Gestão territorial da saúde: mapas de calor, dashboards interativos e plataformas integradas facilitam o planejamento de campanhas de vacinação, gestão de insumos e distribuição de recursos.

Essa abordagem permite uma mudança do modelo curativo para o modelo preventivo, mais eficiente, menos oneroso e socialmente justo. A coleta ética, segura e anonimizada dos dados, no entanto, permanece como um dos principais desafios normativos e operacionais.

URBANAGE e o urbanismo do envelhecimento

Um exemplo paradigmático da articulação entre tecnologia e bem-estar é o projeto europeu URBANAGE, destacado por Tupasela et al. (2023). A iniciativa visa tornar as cidades mais amigáveis ao envelhecimento, reconhecendo que a longevidade é um vetor central da urbanização contemporânea.

As principais estratégias do URBANAGE incluem:

  • Mapeamento de barreiras urbanas por meio de crowdsourcing e sensores geoespaciais, identificando obstáculos à mobilidade de idosos.
  • Análise preditiva de acessibilidade, cruzando dados de saúde, mobilidade e infraestrutura para orientar intervenções urbanas.
  • Modelagem de cenários de envelhecimento saudável, usando simulações digitais para avaliar os impactos de decisões urbanísticas em populações idosas.

O projeto amplia o conceito de “cidade inteligente” ao substituir a lógica da eficiência pela lógica do cuidado, valorizando a escuta dos usuários e a adaptação territorial às demandas do ciclo de vida.

Ao articular tecnologias com sensibilidade social, o URBANAGE propõe um urbanismo do envelhecimento — uma abordagem que deve inspirar políticas urbanas em países de rápido envelhecimento populacional como o Brasil.

Plataformas intersetoriais: saúde, educação e energia

Cidades verdadeiramente inteligentes são aquelas que integram seus sistemas em plataformas transversais, rompendo os silos tradicionais das políticas públicas. A saúde urbana, nesse contexto, não se isola: ela se interconecta com a educação, a habitação, a energia e a mobilidade.

Alguns exemplos dessa integração:

  • Educação e saúde: programas de educação em saúde mediados por IA e plataformas digitais, com foco em prevenção, saúde mental e nutrição escolar.
  • Energia e saúde: uso de dados de consumo energético domiciliar como proxy para monitoramento de bem-estar — por exemplo, identificação de quedas de energia em residências de idosos, o que pode sinalizar risco de isolamento ou vulnerabilidade.
  • Ambientes urbanos responsivos: sistemas de iluminação e ventilação automatizados em escolas e hospitais, programados para reduzir doenças respiratórias e melhorar o conforto térmico.

Essa intersetorialidade digital exige interoperabilidade técnica, segurança de dados e governança compartilhada. Mais do que apenas integrar sistemas, é necessário repensar os próprios modos de produção das políticas urbanas, com foco na experiência do cidadão e na qualidade de vida como critério central de planejamento.

Considerações parciais

A saúde urbana conectada inaugura um novo horizonte de planejamento, no qual o bem-estar da população se torna princípio organizador da infraestrutura digital e territorial. A combinação de dados, IA e plataformas colaborativas permite decisões mais precisas, políticas mais justas e cidades mais humanas.

Para que essa transformação se consolide, é necessário adotar abordagens que valorizem a diversidade das experiências urbanas, priorizem os grupos vulneráveis e reconheçam a saúde não apenas como ausência de doença, mas como condição plena de dignidade, mobilidade e pertencimento.

Moeda Social, Dados e Governança Digital Participativa

As cidades do século XXI enfrentam um desafio duplo: ampliar a participação cidadã nos processos decisórios e, simultaneamente, garantir que os benefícios das inovações tecnológicas não aprofundem desigualdades preexistentes. Neste contexto, moedas sociais digitais e governança algorítmica ética despontam como caminhos promissores para uma urbanização mais justa, inclusiva e transparente.

Este capítulo analisa o papel das moedas digitais locais como instrumentos de redistribuição territorializada de valor e catalisadores de engajamento social. Ao lado disso, discute-se o uso ético dos dados e dos algoritmos em plataformas de decisão urbana, com ênfase na autonomia comunitária, soberania informacional e justiça digital.

Moedas sociais digitais e redistribuição urbana

As moedas sociais digitais, concebidas para circular dentro de territórios delimitados — bairros, cidades ou regiões —, não apenas promovem economias locais resilientes como podem ser integradas a estratégias públicas de eficiência energética, alimentação, educação e saúde preventiva.

Diferentemente das criptomoedas tradicionais, cujo foco é a descentralização financeira global, as moedas sociais digitais operam dentro de arquiteturas comunitárias e em sintonia com objetivos sociais pactuados, tais como:

  • Fomento ao comércio de bairro e cadeias curtas de produção;
  • Valorização de comportamentos sustentáveis, como reciclagem ou economia de energia;
  • Estímulo à participação cidadã por meio de gamificação e recompensas digitais;
  • Apoio à circulação de saberes, serviços e competências entre vizinhos.

Neste modelo, a infraestrutura digital torna-se um mecanismo de política pública redistributiva, promovendo vínculos, pertencimento e autonomia local. A governança da moeda — inclusive seus critérios de emissão e conversão — deve ser co-criada com a comunidade, evitando verticalizações tecnocráticas.

Algoritmos e dados como bens comuns urbanos

A integração entre moedas sociais digitais e plataformas inteligentes de gestão requer transparência algorítmica, proteção de dados pessoais e responsabilidade sobre os impactos das decisões automatizadas.

Inspirando-se em Morozov e Bria (2023), defende-se a reapropriação dos dados urbanos como bem comum, uma vez que são fruto da interação coletiva entre cidadãos e suas infraestruturas. A opacidade algorítmica não apenas ameaça a privacidade individual, mas compromete a soberania decisória local, ao transferir controle a plataformas proprietárias ou interesses comerciais alheios ao território.

Assim, políticas públicas que envolvem moedas sociais e dados devem observar os seguintes princípios:

  • Algoritmos auditáveis: códigos e modelos de decisão devem ser verificáveis por pares e avaliados quanto a vieses discriminatórios;
  • Participação ampliada: comunidades devem ter voz nas decisões sobre coleta, uso e finalidades dos dados;
  • Finalidade pública explícita: os sistemas devem ter objetivos alinhados a agendas sociais pactuadas e verificáveis;
  • Dados interoperáveis e abertos: respeitados os critérios de anonimização, os dados devem circular entre setores e plataformas para gerar valor público.

A ética algorítmica territorializada requer que as tecnologias sirvam aos projetos coletivos das comunidades, e não apenas aos objetivos de eficiência ou inovação por si só.

Potencial de replicação e desafios institucionais

A experiência de integração entre moedas sociais digitais, metas de sustentabilidade e políticas educativas, já documentada em contextos diversos, revela potencial de escalabilidade e replicabilidade em múltiplas cidades brasileiras, especialmente aquelas que enfrentam déficits simultâneos de inclusão econômica, digital e energética.

Contudo, a replicação bem-sucedida exige:

  • Infraestrutura digital acessível e descentralizada, com conectividade adequada e dispositivos inclusivos;
  • Capacitação comunitária e apoio técnico, para que os cidadãos compreendam os mecanismos digitais e se apropriem da moeda como ferramenta;
  • Ambiente normativo seguro, que reconheça juridicamente essas moedas e seus usos, evitando inseguranças regulatórias;
  • Modelos de governança colaborativa, que integrem atores públicos, universidades, empresas locais e organizações comunitárias.

É nesse sentido que a moeda digital, em sua versão social, deixa de ser apenas um meio de troca e passa a ser uma linguagem de confiança territorial. Sua função pedagógica, simbólica e participativa reconfigura as relações entre cidadãos e governo, entre dados e decisões, entre inovação e equidade.

Considerações parciais

A construção de uma cidade inteligente verdadeiramente inclusiva passa pela democratização de seus circuitos econômicos e decisórios. Moedas sociais digitais, aliadas a uma governança ética dos dados, podem materializar essa ambição, desde que ancoradas em práticas participativas, tecnologias abertas e compromissos públicos claros.

Ao invés de apenas medirem comportamentos, essas ferramentas devem cultivar vínculos, fortalecer direitos e ampliar capacidades. O desafio, portanto, é traduzir o potencial técnico em pactos políticos locais, que devolvam à cidade sua vocação essencial: ser um projeto coletivo de futuro.

Perspectivas Estratégicas: Projetos Futuros e Diretrizes para Ação

Ao final de uma análise ampla sobre cidades inteligentes, emerge a necessidade de traduzir conceitos em projetos concretos que respondam simultaneamente aos desafios da desigualdade, da transição energética e da transformação digital. Este capítulo apresenta propostas integradas de ação — articulando tecnologias emergentes, modelos de governança e mecanismos de financiamento — e delineia o papel da nMentors como articuladora estratégica para implementação, apoio técnico e formação de consórcios.

Projeto de Rede Agrivoltaica com Inteligência Artificial e Moeda Digital

As periferias urbanas concentram uma parcela expressiva da vulnerabilidade social e energética das cidades brasileiras. Uma resposta inovadora reside na criação de redes agrivoltaicas urbanas, que combinam produção de alimentos e geração de energia solar em espaços subutilizados — telhados públicos, terrenos baldios ou áreas de risco requalificadas.

A proposta consiste em:

  • Implantar microusinas agrivoltaicas urbanas com dupla finalidade: alimentar hortas comunitárias e gerar excedente energético para redistribuição via moeda social digital;
  • Integrar plataformas de IA para gestão automatizada da geração, consumo e distribuição dos créditos energéticos entre beneficiários locais;
  • Usar a moeda digital como instrumento de compensação e engajamento, recompensando práticas sustentáveis (redução de consumo, reciclagem, educação ambiental) com saldo energético convertido em acesso a bens e serviços.

Esse modelo visa não apenas democratizar o acesso à energia e alimentação, mas gerar novas capacidades econômicas nos territórios, com protagonismo comunitário e governança colaborativa.

Infraestrutura Modular de Edge Datacenters com Gestão Público-Comunitária

A crescente demanda por processamento de dados em tempo real e autonomia local requer soluções de infraestrutura computacional distribuída. Propõe-se, nesse sentido, o desenvolvimento de Edge Datacenters modulares, de baixo custo, energia limpa e operados sob modelos híbridos de gestão público-comunitária.

Esses datacenters:

  • Suportariam aplicações de mobilidade, saúde, saneamento, segurança e iluminação pública inteligente;
  • Garantiriam soberania digital territorial, ao manter dados sensíveis dentro dos limites da cidade ou do bairro;
  • Serviriam como nó estratégico de conectividade e inteligência urbana, permitindo inclusive a operação de moedas sociais, sistemas educacionais e redes energéticas locais.

A governança da infraestrutura pode seguir o modelo de consórcios, envolvendo entes públicos, universidades, empresas de tecnologia e lideranças comunitárias, com apoio técnico de consultorias especializadas.

Observatórios de Políticas Públicas com IA e Metas ESG

A ausência de instrumentos sistemáticos de monitoramento e avaliação de políticas públicas urbanas compromete a accountability e dificulta o aprendizado institucional. Como resposta, propõe-se a criação de Observatórios Urbanos de Políticas Públicas com IA, operando de forma independente ou em parceria com órgãos públicos.

Esses observatórios atuariam em três frentes:

  • Coleta contínua de dados estruturados e não estruturados, a partir de sensores urbanos, sistemas públicos e participação cidadã;
  • Análise preditiva e identificação de correlações, com apoio de algoritmos auditáveis orientados por metas ESG (ambientais, sociais e de governança);
  • Produção de relatórios públicos e recomendações táticas, com dashboards acessíveis para gestores e comunidades.

Ao associar transparência, inteligência e engajamento, os observatórios se tornariam ferramentas críticas para pactuar, monitorar e adaptar as metas de cidades sustentáveis.

Mecanismos de Financiamento para Cidades Inteligentes Inclusivas

A viabilidade dos projetos propostos depende da ativação de mecanismos diversificados de financiamento, que combinem recursos públicos, privados e multilaterais. Algumas possibilidades concretas incluem:

  • Chamada de P&D ANEEL, especialmente voltadas à eficiência energética, cidades sustentáveis e inclusão digital;
  • Projetos estruturantes via Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), com potencial de concessão ou PPP (Parceria Público-Privada) para infraestrutura urbana;
  • Bancos multilaterais e fundos climáticos (BID, BNDES Fundo Clima, Climate Investment Funds), com foco em cidades resilientes, redução de carbono e inclusão social;
  • Fundos filantrópicos e venture philanthropy, que priorizam projetos com impacto mensurável em justiça climática e equidade digital.

Para capturar esses recursos, é fundamental apresentar propostas maduras, sustentadas por evidências, com plano de negócios robusto e metas sociais verificáveis.

Conclusão

As reflexões apresentadas ao longo deste estudo apontam para uma compreensão ampliada do conceito de cidades inteligentes. Mais do que territórios tecnificados por sensores e algoritmos, as smart cities devem ser concebidas como ambientes vivos de produção coletiva de soluções complexas — onde inovação tecnológica e justiça social caminham juntas. Nesta conclusão, retomamos os principais aprendizados e reforçamos os compromissos estratégicos que se impõem aos atores que protagonizam essa transformação.

A Cidade como Infraestrutura Sociotécnica de Inovação Social

A cidade contemporânea configura-se como um laboratório distribuído de experimentações sociais, tecnológicas e políticas. Essa condição exige o abandono da visão reducionista que enxerga a cidade apenas como espaço físico a ser gerenciado por softwares e big data. Pelo contrário, é preciso reconhecer a cidade como uma infraestrutura sociotécnica viva, capaz de gerar conhecimento, promover inclusão e catalisar mudanças estruturais quando tecnologias são colocadas a serviço do bem comum.

Ao considerar os diversos temas analisados — energia, saúde, educação, moedas sociais, IA, governança e infraestrutura — fica evidente que as soluções verdadeiramente transformadoras são aquelas enraizadas no território, participativas em sua concepção e transparentes em sua operação.

Necessidade de superar o enfoque reducionista e tecnodeterminista com inteligência social aplicada.

Necessidade de transcender o deslumbramento com soluções puramente tecnológicas e avançar para abordagens centradas nas pessoas e no território. Este estudo reitera que inteligência urbana não é apenas digital, mas socialmente situada. Dados, algoritmos e plataformas precisam ser moldados por valores como equidade, solidariedade, sustentabilidade e pluralismo cultural.

Nesse sentido, o verdadeiro diferencial de uma cidade inteligente reside na capacidade de aplicar inteligência social — sensível ao território, co-criada com seus habitantes e ancorada em propósitos coletivos. A inteligência das cidades é, antes de tudo, a inteligência dos seus cidadãos, conectada por estruturas abertas e inclusivas.

Ação Intersetorial como Fundamento da Nova Arquitetura Urbana

A concretização de projetos transformadores exige a articulação permanente entre Estado, setor privado, universidades e sociedade civil organizada. Nenhum dos desafios analisados — da pobreza energética ao envelhecimento populacional, da exclusão digital à soberania informacional — poderá ser enfrentado por um único setor isoladamente.

Assim, este estudo reforça a necessidade de modelos de governança intersetoriais, adaptativos e baseados na confiança. As experiências internacionais com Parcerias Público-Privadas e os arranjos emergentes no Brasil indicam o caminho: co-responsabilização, transparência e inovação institucional como pilares de uma nova era do urbanismo digital inclusivo.

Chamado à Responsabilidade Técnica e Ética

Por fim, este trabalho é também um chamado à responsabilidade técnica e ética dos engenheiros, gestores públicos, conselheiros e líderes empresariais. Em um momento em que o desenho de algoritmos, contratos e infraestruturas definirá os contornos das próximas décadas, não é mais possível atuar de forma neutra ou apenas reativa.

É preciso assumir um papel ativo na construção de uma cidade inteligente que não seja apenas eficiente, mas justa; não apenas conectada, mas plural; não apenas resiliente, mas inspiradora. O compromisso com a inovação deve caminhar lado a lado com o compromisso com as pessoas e o planeta.

Como afirmado ao longo desta análise, o futuro das cidades não está dado: ele será fruto das escolhas técnicas, políticas e humanas que fizermos hoje. E é neste horizonte que se inscrevem as responsabilidades e oportunidades que cabem à geração atual de profissionais públicos e privados.

Glossário

TermoDefiniçãoTema Principal
AgrivoltaicoCombinação de geração solar fotovoltaica com produção agrícola no mesmo terreno.Energia e Sustentabilidade
Cidades InteligentesCentros urbanos que usam tecnologias e dados para melhorar a gestão urbana e o bem-estar da população.Planejamento Urbano
Cidade como Infraestrutura SociotécnicaVisão da cidade como sistema vivo de interações técnicas, sociais e políticas.Teoria Urbana
Cidadania AtivaParticipação direta dos cidadãos na formulação e fiscalização de políticas públicas.Inclusão e Governança
Desigualdade EnergéticaAcesso desigual à energia limpa e acessível entre diferentes grupos sociais.Justiça Energética
Edge ComputingProcessamento de dados próximo à fonte, reduzindo latência e aumentando autonomia local.Tecnologia da Informação
ESGCritérios ambientais, sociais e de governança aplicados à gestão pública e privada.Sustentabilidade
Fatores Críticos de Sucesso (PPP)Elementos como clareza contratual, colaboração e alinhamento com objetivos sociais em parcerias público-privadas.Governança
Governança AlgorítmicaDecisões mediadas por sistemas automatizados com implicações éticas e sociais.Ética Digital
Governança Digital ParticipativaArranjos tecnológicos e institucionais que permitem a participação cidadã via plataformas.Democracia Digital
IA DistribuídaInteligência artificial embarcada em dispositivos periféricos urbanos.Inteligência Artificial
Inclusão DigitalAcesso equitativo a tecnologias, conectividade e letramento digital.Educação e Cidadania
Infraestruturas ModularesSoluções técnicas escaláveis, adaptáveis e de baixo custo para contextos locais.Tecnologia Urbana
Justiça DigitalUso ético e equitativo da tecnologia para reduzir desigualdades sociais.Direitos e Inclusão
Microgeração DistribuídaProdução local de energia renovável, próxima ao ponto de consumo.Energia
Moeda Social DigitalMoeda alternativa com circulação local e foco em inclusão, economia solidária e participação.Economia e Governança
PPP / PPPPModelos de parceria entre Estado, empresas e sociedade para financiamento e operação de infraestruturas.Financiamento Urbano
Plataformas UrbanasSistemas digitais que organizam fluxos urbanos como transporte, energia e serviços.Urbanismo Digital
Soberania DigitalCapacidade local de controlar dados e infraestrutura digital crítica.Autonomia Tecnológica
Tecnologia com PropósitoInovação tecnológica orientada a finalidades sociais e ambientais claras.Ética Tecnológica
Urbanismo de PlataformaModelo urbano mediado por plataformas digitais privadas ou públicas, exigindo nova regulação.Economia de Plataforma
Urbanismo InclusivoPlanejamento que prioriza equidade territorial, justiça social e inovação cidadã.Inclusão Social

Referências Bibliográficas

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