Sumário Executivo
O sistema elétrico brasileiro é um dos mais extensos e complexos do mundo. Sua integração nacional garante eficiência e estabilidade, mas também amplia a exposição a riscos climáticos, tecnológicos e institucionais. A intensificação dos eventos extremos, o avanço da digitalização e a crescente interdependência entre setores críticos tornam a resiliência energética uma prioridade estratégica para o país.
Este estudo, conduzido pelo engenheiro Eduardo Fagundes, reúne uma análise detalhada dos instrumentos técnicos, regulatórios e institucionais que sustentam a resiliência do Sistema Interligado Nacional (SIN). O trabalho se baseia em revisão normativa, benchmarking internacional, estudos de custo-benefício e na participação direta do autor em eventos setoriais estratégicos — Distributech 2025 (Dallas), SENDI 2025 (Belo Horizonte), CITEENEL 2025 (Manaus) e X Semana de la Energía (Santiago do Chile).
O artigo apresenta um diagnóstico abrangente das vulnerabilidades do sistema e propõe diretrizes para a criação de um Plano Nacional de Resiliência Energética (PNRE), associado à atualização dos contratos de concessão, à revisão dos indicadores de continuidade e à integração institucional entre energia, saneamento e telecomunicações.
Principais Achados
O estudo identifica que, embora o Brasil possua uma matriz predominantemente renovável e infraestrutura interligada robusta, as vulnerabilidades estruturais e climáticas ainda comprometem a estabilidade do sistema em situações extremas. As principais conclusões são apresentadas de forma sintética na Tabela 1.
Tabela 1 – Principais vulnerabilidades e oportunidades de aprimoramento
Dimensão | Fragilidade Identificada | Proposta de Solução |
Estrutural | Subestações críticas e falta de redundância | Reforço físico e revisão de planejamento de contingência |
Climática | Impacto de enchentes, ventos e queimadas | Integração de dados meteorológicos ao planejamento energético |
Tecnológica | Falhas de interoperabilidade entre sistemas | Adoção de arquitetura digital unificada e padrões de dados |
Cibernética | Crescente exposição a ataques digitais | Implementação de protocolos de ciber-resiliência e auditorias periódicas |
Regulatória | Falta de métricas de resiliência contratualizadas | Inclusão de indicadores de recuperação e robustez em concessões |
Institucional | Comunicação fragmentada entre agentes | Governança integrada entre ONS, ANEEL, MME e concessionárias |
A análise também demonstra que os custos da indisponibilidade energética — refletidos no Value of Lost Load Adjusted (VoLLa) — são significativamente superiores ao custo de investimentos preventivos em infraestrutura resiliente. Assim, investir em resiliência é economicamente mais vantajoso do que suportar as perdas decorrentes de apagões e eventos sistêmicos.
Recomendações Estratégicas
Com base nas melhores práticas internacionais e nas experiências debatidas nos fóruns técnicos de 2025, o trabalho propõe um conjunto de diretrizes estruturantes para fortalecer a segurança energética e a governança do setor:
1. Plano Nacional de Resiliência Energética (PNRE)
Criação de um programa coordenado pelo MME, em parceria com ANEEL, ONS e concessionárias, com metas regionais, monitoramento de riscos e financiamento específico para projetos de mitigação.
2. Contratualização da resiliência
Inclusão de métricas obrigatórias de resiliência — como o Tempo Médio de Recuperação (TMR) e o Índice de Robustez Operacional (IRO) — nos contratos de concessão, vinculando resultados técnicos à remuneração regulatória.
3. Modernização regulatória e tarifária
Introdução de incentivos econômicos para investimentos em automação, redundância e digitalização, por meio de resilience credits e reconhecimento tarifário de projetos preventivos.
4. Governança intersetorial
Criação de um fórum permanente de integração entre energia, saneamento, telecomunicações e transporte, para coordenação de respostas a crises sistêmicas e padronização de protocolos de operação conjunta.
5. Cultura institucional de aprendizado contínuo
Incorporação de auditorias pós-evento, compartilhamento de dados e uso de Digital Twins e inteligência artificial como ferramentas de melhoria constante do desempenho sistêmico.
Projeções e Impacto Esperado
O fortalecimento da resiliência permitirá que o Brasil:
- reduza em até 40% o tempo médio de recomposição em eventos severos;
- economize bilhões de reais por ano em custos evitados de interrupção;
- aumente a confiabilidade do SIN em cenários de risco climático crescente;
- consolide-se como referência regional em governança energética adaptativa.
A Tabela 2 sintetiza o modelo conceitual proposto, que integra as fases de prevenção, resposta, recuperação e adaptação em um ciclo contínuo de aprimoramento institucional e tecnológico.
Tabela 2 – Modelo conceitual do ciclo de resiliência do sistema elétrico brasileiro
Fase | Objetivo Central | Instrumentos-Chave | Atores Principais |
Prevenção | Antecipar e mitigar riscos | PNRE, CBA, incentivos regulatórios | MME, ANEEL, concessionárias |
Resposta | Atuar de forma coordenada durante crises | PCO, centros de comando unificado | ONS, distribuidoras, defesas civis |
Recuperação | Restabelecer o sistema com eficiência | TMR, planos de recomposição, indicadores pós-evento | ONS, transmissoras, órgãos públicos |
Adaptação | Incorporar aprendizado e atualizar práticas | Revisões regulatórias, inovação tecnológica | ANEEL, MME, universidades |
Conclusão Executiva
A resiliência é o novo paradigma do planejamento energético.
Ela redefine a engenharia, a regulação e a governança, transformando vulnerabilidades em oportunidades de aprendizado e crescimento institucional.
Ao incorporar tecnologia, transparência e integração entre setores, o Brasil pode assegurar um sistema elétrico preparado para o futuro — seguro, adaptável e capaz de sustentar o desenvolvimento econômico com estabilidade e sustentabilidade.
1. Introdução
O sistema elétrico brasileiro consolidou-se, ao longo das últimas décadas, como uma das maiores e mais complexas infraestruturas de energia interligada do mundo. A criação do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), em 1998, e a expansão do Sistema Interligado Nacional (SIN) foram marcos estruturantes que permitiram ganhos substanciais em eficiência, confiabilidade e coordenação entre geração, transmissão e distribuição.
Contudo, o amadurecimento desse modelo trouxe novos desafios: a crescente interdependência entre ativos críticos, a exposição a eventos climáticos extremos e a necessidade de respostas rápidas e coordenadas diante de perturbações severas.
Nos últimos anos, o país enfrentou episódios que evidenciaram a importância de fortalecer a resiliência do sistema elétrico. O apagão de 14 de outubro de 2025, originado por um incêndio em uma subestação da Eletrobrás em Campo Largo (PR), afetou consumidores em todas as regiões do Brasil. Apesar da atuação eficaz do ONS, que aplicou os procedimentos de contingência previstos e restabeleceu o fornecimento em poucas horas, o evento revelou vulnerabilidades estruturais que exigem revisão das práticas de planejamento, manutenção e regulação.
Tradicionalmente, a confiabilidade tem sido o eixo central da operação elétrica brasileira — expressa por indicadores como DEC e FEC, que medem a frequência e a duração das interrupções. No entanto, a resiliência vai além da confiabilidade: ela representa a capacidade adaptativa do sistema, englobando resistência ao impacto, absorção de perturbações, recuperação rápida e aprendizado pós-evento. Enquanto a confiabilidade busca prevenir falhas, a resiliência busca conviver com o inesperado e retornar a um estado operacional estável com o mínimo de perda social e econômica possível.
Esse debate não é exclusivo do Brasil. No cenário internacional, resiliência energética tornou-se palavra-chave nas políticas de infraestrutura crítica e transição energética. Organismos como a International Energy Agency (IEA), o Institute of Electrical and Electronics Engineers (IEEE) e a North American Electric Reliability Corporation (NERC) vêm desenvolvendo metodologias, indicadores e planos de ação voltados a sistemas elétricos capazes de suportar eventos climáticos severos, ataques cibernéticos e disrupções geopolíticas. Países como Estados Unidos, Reino Unido e Japão já incorporam políticas de grid hardening, integração de fontes distribuídas e automação inteligente como pilares de sua segurança energética de longo prazo.
O autor deste artigo, Eduardo Fagundes, participou ao longo de 2025 de alguns dos principais fóruns internacionais e nacionais do setor — entre eles, a Distributech 2025 (Dallas, EUA), o SENDI 2025 (Belo Horizonte), o CITEENEL 2025 (Manaus) e a X Semana de la Energía (Santiago do Chile). Em todos esses encontros, o tema resiliência dos sistemas elétricos se destacou como pauta recorrente, transversal a discussões sobre digitalização, sustentabilidade e regulação. As contribuições apresentadas por especialistas, reguladores e operadores confirmaram uma tendência inequívoca: a resiliência deixou de ser um conceito teórico e passou a integrar a agenda executiva das empresas e agências do setor.
Com base nesse contexto e nas experiências observadas em tais eventos, este artigo propõe uma estrutura integrada de resiliência para o sistema elétrico brasileiro, articulando três eixos complementares:
- Técnico-operacional – fortalecimento dos mecanismos de planejamento, monitoramento e resposta sob coordenação do ONS;
- Regulatório e institucional – aprimoramento das normas da ANEEL (como o PRODIST) e desenvolvimento de instrumentos de incentivo à resiliência;
- Tecnológico e inovador – adoção de redes inteligentes, automação avançada e análise preditiva para antecipar falhas e otimizar a recuperação.
A organização deste artigo reflete essa abordagem integrada:
- Capítulo 2 apresenta a fundamentação conceitual e revisão de literatura sobre resiliência no contexto internacional;
- Capítulo 3 analisa os marcos normativos e regulatórios do ONS e da ANEEL;
- Capítulo 4 aborda experiências e benchmarks globais;
- Capítulo 5 examina vulnerabilidades e desafios específicos do sistema elétrico brasileiro;
- Capítulo 6 propõe estratégias de resiliência tecnológica, operacional e regulatória;
- Capítulo 7 consolida diretrizes futuras e recomendações estratégicas;
- e, por fim, o Capítulo 8 apresenta as conclusões e perspectivas para o setor.
Assim, a resiliência é tratada neste trabalho não como custo, mas como investimento estratégico e habilitador da sustentabilidade e segurança energética do país, condição indispensável para o desenvolvimento econômico e a confiança da sociedade no sistema elétrico brasileiro
2. Fundamentação Conceitual e Revisão de Literatura
A transição do setor elétrico para um modelo mais digitalizado, descentralizado e exposto a variáveis climáticas tem provocado uma profunda revisão de conceitos clássicos de engenharia de sistemas de potência. Até recentemente, a confiabilidade era o eixo central das análises de planejamento e operação. Entretanto, o aumento da frequência e intensidade de eventos climáticos, as interdependências entre infraestruturas críticas e as novas ameaças cibernéticas ampliaram o escopo da preocupação técnica para incluir um conceito mais abrangente: a resiliência.
A literatura técnica internacional passou a tratar a resiliência como uma propriedade sistêmica que vai além da simples probabilidade de falha. Ela incorpora a capacidade do sistema de suportar perturbações, manter funcionalidades essenciais durante a crise e recuperar o desempenho nominal de forma eficiente e sustentável. Assim, a resiliência consolida-se como um atributo dinâmico, mensurável e adaptativo, que se soma à confiabilidade e à segurança como pilares da engenharia moderna de energia elétrica.
Autores e instituições de referência, como a North American Electric Reliability Corporation (NERC), o Institute of Electrical and Electronics Engineers (IEEE) e a International Energy Agency (IEA), vêm produzindo definições e metodologias que norteiam a padronização do tema. Esses organismos destacam que a resiliência deve ser compreendida de maneira multidimensional, abarcando aspectos técnicos, econômicos, regulatórios e sociais.
O debate internacional foi amplamente discutido em 2025 em conferências técnicas como a Distributech, nos Estados Unidos, e o SENDI, no Brasil, nas quais o autor deste trabalho esteve presente. Nesses fóruns, observou-se uma convergência conceitual: a resiliência é hoje reconhecida como o principal diferencial de maturidade operacional entre sistemas elétricos desenvolvidos e emergentes. Ela define o grau de preparação de uma rede não apenas para evitar falhas, mas, sobretudo, para reagir a elas com eficiência e aprendizado institucional.
2.1 Definição de Resiliência no Setor Elétrico
A North American Electric Reliability Corporation (NERC) define resiliência como a capacidade do sistema elétrico de preparar-se para eventos de grande impacto, absorver distúrbios e restaurar rapidamente suas funções críticas, minimizando danos físicos, sociais e econômicos. Essa definição integra os conceitos de prevenção, resposta e recuperação sob uma perspectiva operacional contínua.
O Institute of Electrical and Electronics Engineers (IEEE), em documentos de referência sobre sistemas de potência, conceitua a resiliência como a habilidade de um sistema elétrico em resistir, se adaptar e restaurar seu desempenho diante de eventos imprevistos, preservando sua integridade estrutural e funcional. O IEEE enfatiza o caráter cíclico do processo: a resiliência é aprimorada pela retroalimentação das experiências operacionais, por meio de dados, indicadores e práticas de melhoria contínua.
A International Energy Agency (IEA) aborda a resiliência sob uma ótica mais ampla, vinculada à segurança energética e à transição para fontes renováveis. Segundo a agência, sistemas resilientes são aqueles capazes de manter o fornecimento energético confiável mesmo sob condições de estresse climático, crises de abastecimento ou disrupções tecnológicas. A IEA insere a resiliência como elemento central de suas estratégias de segurança energética, destacando que redes modernas devem ser inteligentes, interconectadas e adaptáveis às mudanças ambientais.
Com base nessas referências, é possível sintetizar a resiliência do setor elétrico em quatro eixos complementares:
- Resistência: capacidade de suportar impactos iniciais sem perda total de funcionalidade. Refere-se ao fortalecimento físico e estrutural das redes, subestações e equipamentos.
- Absorção: habilidade de isolar falhas e reduzir a propagação de perturbações dentro do sistema. Envolve redundância, automação e resposta rápida de proteção.
- Recuperação: competência de restabelecer o serviço de forma eficiente após uma interrupção, por meio de planos de contingência e coordenação operacional entre agentes.
- Adaptação: aprendizado e evolução após o evento, incorporando novos procedimentos, tecnologias e políticas regulatórias para mitigar riscos futuros.
Esses quatro eixos formam um ciclo de aprimoramento contínuo que transcende a abordagem tradicional da confiabilidade. Enquanto esta mede a probabilidade de falha, a resiliência mede a capacidade do sistema de se transformar positivamente após a falha.
Em síntese, a resiliência no setor elétrico deve ser entendida como um atributo sistêmico, dinâmico e mensurável, que integra engenharia, governança e inovação. Sua adoção representa uma mudança de paradigma: de um setor voltado à prevenção de falhas para um setor orientado à resposta inteligente, adaptativa e sustentável.
2.2 Principais Abordagens Teóricas e Modelos Conceituais de Resiliência
A consolidação do conceito de resiliência no setor elétrico decorre da evolução das ciências de sistemas complexos e da incorporação progressiva de metodologias de engenharia de risco e de continuidade operacional. Originalmente empregada em áreas como ecologia e engenharia civil, a resiliência passou a ser aplicada à infraestrutura elétrica como resposta à crescente frequência de eventos climáticos severos e à necessidade de manutenção da continuidade de serviço em um ambiente operacional cada vez mais dinâmico e digitalizado.
Os estudos recentes convergem em torno de três abordagens conceituais complementares: a física e estrutural, a funcional-operacional e a socioeconômica e regulatória. Cada uma delas representa um nível distinto de análise, mas todas convergem para o objetivo de assegurar a capacidade do sistema de resistir, absorver, recuperar e adaptar-se após perturbações.
Abordagem física e estrutural
Essa abordagem concentra-se no fortalecimento dos elementos tangíveis do sistema elétrico. Busca garantir que equipamentos, linhas, subestações e centros de controle suportem impactos físicos sem comprometer a operação integral da rede. Envolve estratégias de reforço estrutural, redundância de ativos e aprimoramento de sistemas de proteção e controle. Também contempla o uso de tecnologias de automação e sensoriamento remoto para monitorar, em tempo real, o comportamento de componentes críticos e antecipar falhas.
Essa visão é fortemente aplicada em países que sofrem com desastres naturais recorrentes, onde o conceito de grid hardening se tornou prática consolidada. No contexto brasileiro, iniciativas dessa natureza ganham relevância diante do aumento de eventos climáticos intensos e da vulnerabilidade de subestações localizadas em áreas de risco de inundação.
Abordagem funcional-operacional
A resiliência funcional ou operacional está associada à capacidade do sistema de manter funções essenciais mesmo diante de falhas significativas. Diferentemente da abordagem estrutural, que prioriza a resistência física, a operacional foca na coordenação entre agentes, na automação de contingências e na eficiência dos planos de restauração.
Essa abordagem incorpora a lógica dos Procedimentos de Rede do ONS e das práticas de continuidade definidas pela ANEEL. Inclui o uso de sistemas automáticos de controle, esquemas de proteção especiais e planos de operação em tempo real que garantem resposta imediata a distúrbios. Também envolve a integração de tecnologias digitais, como redes inteligentes, armazenamento distribuído e algoritmos preditivos, que aumentam a capacidade de isolamento e recomposição da rede.
Abordagem socioeconômica e regulatória
A dimensão socioeconômica e regulatória amplia o conceito de resiliência para além dos aspectos técnicos, considerando o impacto das interrupções sobre a sociedade e a economia. Sob essa ótica, a resiliência é vista como um atributo estratégico que depende de políticas públicas, regulação eficiente e incentivos adequados para investimentos de longo prazo.
Normas, resoluções e programas conduzidos por agências reguladoras e operadores do sistema são instrumentos fundamentais para incorporar o tema ao planejamento setorial. O estabelecimento de indicadores de desempenho, metas de continuidade e mecanismos de compensação econômica ao consumidor contribui para transformar a resiliência em uma métrica mensurável e comparável.
Essa abordagem também reconhece o papel das instituições e da governança intersetorial. A cooperação entre energia, saneamento, telecomunicações e defesa civil é essencial para garantir resposta integrada em situações de crise. Dessa forma, a resiliência deixa de ser apenas um atributo técnico e passa a constituir um valor institucional e social.
Integração das abordagens
As três abordagens descritas formam um modelo sistêmico e complementar. Enquanto a física assegura robustez, a funcional garante continuidade e a socioeconômica provê sustentabilidade e legitimidade. A integração dessas dimensões cria um ciclo contínuo de melhoria, no qual o aprendizado obtido a partir de eventos críticos retroalimenta as práticas de planejamento, operação e regulação.
Esse modelo integrado é cada vez mais adotado como referência em diversos países e organismos internacionais, e sua aplicação no Brasil representa o caminho natural para evoluir de um sistema baseado em confiabilidade para um sistema baseado em resiliência.
2.3 Indicadores de Resiliência
A quantificação da resiliência é um desafio recorrente na engenharia de sistemas elétricos. Diferentemente da confiabilidade, tradicionalmente expressa por índices consolidados de continuidade como o DEC e o FEC, a resiliência envolve aspectos dinâmicos e intertemporais, que incluem a capacidade de recuperação e adaptação após um evento adverso. Assim, a medição da resiliência demanda métricas que capturem o desempenho do sistema não apenas antes ou durante uma falha, mas também no processo de restauração e aprendizado subsequente.
Diversos organismos técnicos e centros de pesquisa desenvolveram metodologias para mensurar a resiliência sob diferentes perspectivas — física, operacional e econômica. Entre os indicadores mais utilizados internacionalmente destacam-se o Resilience Index (RI), o Restoration Time Index (RTI) e o Value of Lost Load Adjusted (VoLLa). Cada um deles avalia dimensões complementares do desempenho do sistema diante de perturbações severas.
Resilience Index (RI)
O Resilience Index é uma métrica composta que busca representar o comportamento global do sistema frente a um distúrbio. O índice considera a perda de funcionalidade ao longo do tempo e a velocidade de recuperação após o evento. Na prática, o RI resulta da razão entre a área sob a curva de desempenho real do sistema durante o distúrbio e a área correspondente ao desempenho ideal em condições normais.
Valores mais próximos de 1 indicam alta resiliência, refletindo interrupções curtas e restauração eficiente. Já valores mais baixos sinalizam fragilidade estrutural ou operacional. Essa métrica é amplamente utilizada em avaliações comparativas de desempenho entre concessionárias e em análises de impacto de investimentos em automação e redundância de redes.
Restoration Time Index (RTI)
O Restoration Time Index mede o tempo médio necessário para restabelecer o sistema a níveis aceitáveis de operação após uma falha de grande escala. Diferentemente dos indicadores de confiabilidade tradicionais, o RTI avalia a eficiência da recuperação em eventos de baixa probabilidade e alto impacto, como tempestades severas, incêndios em subestações ou falhas múltiplas em redes de transmissão.
Esse índice permite quantificar a velocidade de recomposição e comparar a capacidade de resposta entre diferentes regiões ou operadores. Além disso, serve como parâmetro de avaliação de planos de contingência e políticas de priorização de cargas essenciais, como hospitais, sistemas de bombeamento de água e centros de dados.
Value of Lost Load Adjusted (VoLLa)
O Value of Lost Load Adjusted é um indicador econômico que estima o valor monetário associado à energia não suprida durante um evento crítico, ajustando-o de acordo com a duração e a severidade da interrupção. Trata-se de uma extensão do conceito tradicional de Value of Lost Load (VoLL), adaptado para incluir variáveis de resiliência.
O VoLLa permite dimensionar o custo social e econômico das interrupções e serve de base para análises de custo-benefício de investimentos em reforço de rede, digitalização ou fontes alternativas de suprimento. Em países com regulação orientada por desempenho, esse indicador também subsidia políticas tarifárias e mecanismos de incentivo à melhoria da continuidade.
Integração dos Indicadores
Esses três indicadores, quando aplicados de forma integrada, fornecem uma visão holística da resiliência. O RI capta a resposta sistêmica, o RTI mede a eficiência operacional e o VoLLa traduz o impacto econômico e social. Em conjunto, eles permitem que empresas e reguladores identifiquem vulnerabilidades, priorizem investimentos e definam metas objetivas de desempenho.
No contexto brasileiro, a adoção de métricas de resiliência ainda está em estágio inicial, mas vem ganhando relevância nas discussões conduzidas pelo ONS e pela ANEEL. O avanço na padronização desses indicadores é essencial para integrar a resiliência à regulação de qualidade e aos contratos de concessão.
Tabela 3 – Principais métricas de resiliência utilizadas internacionalmente
Indicador | Dimensão Avaliada | Unidade de Medida | Aplicação Principal | Interpretação |
Resilience Index (RI) | Desempenho sistêmico durante e após o evento | Adimensional (0 a 1) | Avaliação global de resiliência | Valores próximos de 1 indicam recuperação rápida e baixa perda funcional |
Restoration Time Index (RTI) | Tempo médio de restabelecimento | Horas ou dias | Monitoramento da eficiência de recomposição | Menores valores refletem resposta operacional mais ágil |
Value of Lost Load Adjusted (VoLLa) | Impacto econômico da energia não suprida | Unidades monetárias (R$/MWh) | Análise de custo-benefício e políticas de investimento | Valores mais baixos indicam menor custo econômico por interrupção |
Essas métricas, quando alinhadas às práticas operacionais do ONS e às exigências regulatórias da ANEEL, podem evoluir para um sistema nacional de avaliação de resiliência. Tal sistema permitiria mensurar não apenas a continuidade do fornecimento, mas também a capacidade adaptativa e a robustez do setor elétrico diante de cenários de incerteza crescente.
3. Marcos Regulatórios e Procedimentos no Brasil
O fortalecimento da resiliência do sistema elétrico brasileiro depende de uma estrutura regulatória capaz de traduzir diretrizes técnicas em práticas operacionais padronizadas. O país possui uma arquitetura institucional consolidada, formada por órgãos e entidades que atuam de forma complementar: o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), responsável pela coordenação e controle da operação do Sistema Interligado Nacional (SIN); a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), que regula e fiscaliza a prestação dos serviços; e o Ministério de Minas e Energia (MME), responsável pelas diretrizes de política energética.
Esses agentes constituem a espinha dorsal da governança setorial e desempenham papéis distintos, porém interdependentes, no fortalecimento da resiliência. O ONS assegura a estabilidade técnica e a continuidade operativa, a ANEEL define normas e incentivos regulatórios, e o MME orienta as políticas públicas de longo prazo. Em conjunto, formam o ambiente institucional que sustenta a confiabilidade e a capacidade adaptativa do sistema elétrico nacional.
Nos últimos anos, essa estrutura passou por um processo de amadurecimento significativo, com revisões dos Procedimentos de Rede, atualizações do PRODIST (Procedimentos de Distribuição de Energia Elétrica no Sistema Elétrico Nacional) e abertura de consultas públicas voltadas à integração de critérios de resiliência climática e operacional. A discussão sobre resiliência ganhou espaço formal na agenda da ANEEL e na atuação do ONS, especialmente após eventos críticos de grande escala, como o apagão nacional de 2025.
O presente capítulo analisa os principais instrumentos normativos e operacionais que estruturam a atuação dessas entidades. O item 3.1 trata do papel do ONS na padronização e aplicação de medidas de resiliência por meio dos Procedimentos de Rede e dos Manuais de Procedimentos da Operação (MPO). O item 3.2 abordará a atuação da ANEEL, com foco no PRODIST e nas iniciativas regulatórias recentes voltadas à continuidade e à mitigação de eventos extremos.
3.1 ONS – Procedimentos de Rede e Manuais de Operação
O Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) é o agente responsável pela coordenação centralizada da operação do Sistema Interligado Nacional (SIN), assegurando a integridade e a segurança do suprimento elétrico em todo o território brasileiro. Sua função é de natureza técnica, com base em normas aprovadas pela ANEEL e definidas no conjunto de documentos conhecidos como Procedimentos de Rede (PdR).
Esses procedimentos constituem o arcabouço normativo que estabelece regras, responsabilidades e parâmetros técnicos para o planejamento, a programação e a execução da operação elétrica. O ONS, por meio dos Manuais de Procedimentos da Operação (MPO), detalha as metodologias, os fluxos de comunicação e os protocolos de resposta que garantem a coerência entre agentes de geração, transmissão e distribuição.
No contexto da resiliência, os Procedimentos de Rede desempenham papel estratégico ao padronizar práticas de planejamento preventivo, monitoramento contínuo e resposta coordenada a eventos de perturbação. Entre os módulos mais relevantes, destacam-se:
- Módulo 10 – Planejamento da Operação: define critérios de confiabilidade, políticas de contingência e protocolos de comunicação entre centros de operação. É nesse módulo que se estruturam as ações de contingência em tempo real e a priorização de cargas essenciais durante eventos de grande porte.
- Submódulo 2.11 – Proteção, Registro de Perturbações e Teleproteção: estabelece requisitos mínimos de desempenho para os sistemas de proteção e define as diretrizes de registro de distúrbios, fundamentais para análises pós-evento. Esse submódulo é uma das principais referências para a retroalimentação do aprendizado operacional e para o aprimoramento contínuo dos mecanismos de resiliência.
- Esquemas de Controle de Segurança (ECS) e Sistemas Especiais de Proteção (SEP): mecanismos automáticos implementados para conter falhas em cascata e preservar a estabilidade do sistema durante distúrbios severos. Esses esquemas são projetados para operar em milissegundos e representam a primeira linha de defesa da resiliência sistêmica.
Além da proteção física e operacional, o ONS incorporou em suas diretrizes elementos de ciber-resiliência, estabelecendo planos de resposta a incidentes cibernéticos e exigindo testes periódicos de comunicação e integridade de sistemas críticos. Essa dimensão digital é hoje tão relevante quanto a infraestrutura física, considerando a crescente digitalização dos sistemas de controle e a dependência de redes de telecomunicações para o gerenciamento em tempo real.
Outro aspecto fundamental dos Procedimentos de Rede é o foco na coordenação interinstitucional. O ONS atua de forma integrada com transmissoras, distribuidoras e órgãos públicos de defesa civil, de modo a alinhar planos de contingência e fluxos de informação em emergências. Esse modelo colaborativo foi amplamente discutido em eventos técnicos de 2025, como o SENDI e o CITEENEL, nos quais o tema da interoperabilidade entre agentes e a governança da informação foi reconhecido como um dos pilares da resiliência moderna.
De maneira geral, a atuação do ONS representa o eixo técnico-operacional da resiliência nacional. Sua capacidade de antecipar riscos, responder a perturbações e promover aprendizado institucional a partir de eventos reais é o que garante a sustentação prática do conceito de resiliência no sistema elétrico brasileiro. O aprimoramento contínuo dos Procedimentos de Rede e a incorporação de tecnologias emergentes, como inteligência artificial para previsão de falhas e análise de vulnerabilidades, consolidam o ONS como o agente central dessa evolução.
3.2 ANEEL – PRODIST e Regulação da Continuidade
A Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) exerce papel central na incorporação do conceito de resiliência ao marco regulatório brasileiro. Sua atuação vai além da regulação tarifária e da fiscalização econômica, alcançando também a padronização da qualidade técnica e da continuidade do fornecimento de energia. Essa função se materializa, sobretudo, por meio do PRODIST – Procedimentos de Distribuição de Energia Elétrica no Sistema Elétrico Nacional – e das Resoluções Normativas que disciplinam os indicadores de desempenho, os direitos dos consumidores e as obrigações das distribuidoras.
A resiliência, embora ainda não figure formalmente como indicador regulatório autônomo, vem sendo gradualmente incorporada nas discussões e revisões normativas da agência, especialmente após eventos críticos de interrupção em larga escala e diante do avanço dos fenômenos climáticos extremos. A atuação da ANEEL vem evoluindo para uma abordagem que reconhece a resiliência como um atributo complementar à confiabilidade e à continuidade, inserindo a dimensão adaptativa e preventiva na regulação da qualidade do serviço público de energia elétrica.
Estrutura e escopo do PRODIST
O PRODIST é composto por oito módulos principais que padronizam as práticas de planejamento, operação, medição, qualidade do produto e desempenho das distribuidoras. Os módulos mais diretamente relacionados à resiliência são:
- Módulo 1 – Disposições Gerais, que define princípios e responsabilidades compartilhadas entre os agentes setoriais e estabelece o compromisso com a segurança e a continuidade do fornecimento;
- Módulo 2 – Planejamento da Expansão e da Operação, onde se destacam as diretrizes para dimensionamento de redes, priorização de investimentos e integração de critérios climáticos e ambientais na análise de risco;
- Módulo 8 – Qualidade da Energia Elétrica e Continuidade do Serviço, que consolida os indicadores DEC(Duração Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora) e FEC (Frequência Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora), utilizados como referências oficiais para a avaliação do desempenho das concessionárias.
Embora o PRODIST tenha sido concebido para assegurar padrões mínimos de continuidade e qualidade, a agenda contemporânea da ANEEL aponta para sua ampliação conceitual, de modo a incorporar indicadores de desempenho resiliente, capazes de mensurar não apenas a duração e frequência das falhas, mas também a capacidade de absorção, recuperação e adaptação das distribuidoras diante de eventos disruptivos.
Iniciativas regulatórias e modernização da abordagem
A ANEEL vem conduzindo consultas e tomadas de subsídios sobre temas diretamente relacionados à resiliência, como:
- Inserção de variáveis climáticas na definição de limites de continuidade;
- Incentivos regulatórios para investimentos em automação da distribuição, redes inteligentes e armazenamento de energia;
- Atualização dos critérios de planejamento de contingência;
- Inclusão de mecanismos de regulação responsiva, que reconheçam a necessidade de ajustes regionais em função de vulnerabilidades ambientais distintas.
Paralelamente, vem sendo discutida a criação de planos setoriais de resiliência, que funcionariam como instrumentos de coordenação entre distribuidoras, transmissoras e órgãos públicos. Tais planos poderiam ser exigidos como parte das obrigações contratuais das concessionárias, em linha com boas práticas internacionais já adotadas em mercados mais maduros.
Essas discussões ganharam relevância nas conferências e fóruns de 2025, como o SENDI, o CITEENEL e a X Semana de la Energía, dos quais o autor participou, evidenciando que a regulação brasileira caminha para alinhar-se aos debates globais sobre infraestruturas críticas adaptativas.
Desafios e perspectivas
O desafio da ANEEL consiste em transitar de um modelo baseado na reação às falhas para um modelo orientado pela prevenção e antecipação de riscos. Isso implica aprimorar a coleta de dados, integrar bases meteorológicas e hidrológicas aos sistemas de gestão e incorporar métricas dinâmicas de desempenho, como o Resilience Index (RI) e o Restoration Time Index (RTI), discutidos no capítulo anterior.
A evolução normativa deverá contemplar também a integração entre resiliência técnica e resiliência institucional, reforçando a articulação entre concessionárias, ONS, agências ambientais e defesas civis estaduais. Essa coordenação é essencial para garantir respostas eficazes e compatíveis com a dimensão territorial e a complexidade do sistema elétrico brasileiro.
Por fim, é esperado que a ANEEL avance no reconhecimento da resiliência como um atributo regulatório mensurável, associado a incentivos de desempenho e a mecanismos de compensação tarifária. Tal movimento permitirá que a resiliência deixe de ser apenas um conceito técnico e passe a constituir um parâmetro estruturante da política de qualidade e continuidade do serviço público de energia elétrica no Brasil.
3.3 Integração Institucional
A resiliência do sistema elétrico brasileiro depende tanto da robustez técnica dos ativos quanto da solidez das relações institucionais entre os diversos agentes que compõem a estrutura setorial. Em um sistema interligado de grande porte como o brasileiro, a eficiência da resposta a eventos críticos está diretamente associada ao grau de coordenação entre as entidades responsáveis pela operação, regulação e formulação de políticas públicas, além das concessionárias de transmissão e distribuição.
A integração institucional no setor elétrico pode ser compreendida como a capacidade coletiva de planejamento, comunicação e ação coordenada entre os principais atores: o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), o Ministério de Minas e Energia (MME), as empresas transmissoras e distribuidoras, e, em situações específicas, os órgãos de defesa civil e ambientais. Cada um desses agentes possui atribuições distintas, mas todos compartilham responsabilidades na preservação da estabilidade do Sistema Interligado Nacional (SIN) e na garantia da continuidade do fornecimento.
O MME exerce o papel estratégico de formulador das políticas energéticas e de coordenador das ações interministeriais, especialmente em situações de crise de grande abrangência. A ANEEL atua como agente regulador e fiscalizador, assegurando que as práticas das concessionárias estejam alinhadas aos padrões técnicos e contratuais de desempenho. O ONS, por sua vez, desempenha a função operacional de comando e controle, sendo o ponto focal das decisões em tempo real e da execução dos planos de contingência.
As transmissoras e distribuidoras constituem os elos práticos de implementação das ações de campo, responsáveis por restabelecer o fornecimento e realizar a recomposição física da rede. A integração efetiva entre esses agentes requer interoperabilidade técnica, fluxo contínuo de informações e mecanismos de comunicação redundantes, capazes de operar mesmo em cenários de degradação da infraestrutura de telecomunicações.
Durante eventos sistêmicos, como apagões generalizados, tempestades severas ou incidentes cibernéticos, o ONS assume a função de centro de comando técnico, enquanto o MME e a ANEEL coordenam as ações estratégicas e institucionais, garantindo que as medidas de recuperação estejam em conformidade com os protocolos normativos e com o interesse público. A interoperabilidade entre centros de controle e a comunicação tempestiva com as autoridades setoriais são elementos fundamentais para reduzir o tempo de resposta e evitar a propagação de falhas.
Os Procedimentos de Rede e o PRODIST já preveem mecanismos de troca de dados e comunicação de eventos, mas a crescente complexidade do sistema demanda aprimoramentos contínuos. A digitalização e a automação dos processos operacionais permitem, por exemplo, que informações sobre distúrbios, cargas prioritárias e disponibilidade de ativos sejam compartilhadas de forma quase imediata entre operadores, concessionárias e órgãos públicos. Essa integração tecnológica é um componente essencial da resiliência institucional.
Outro aspecto relevante da coordenação interinstitucional é o aprendizado coletivo após eventos críticos. A consolidação de relatórios conjuntos entre ONS, ANEEL e agentes setoriais permite identificar fragilidades e promover melhorias estruturais nos planos de contingência. Esse processo de retroalimentação, quando sistematizado, transforma cada crise em uma oportunidade de aperfeiçoamento da governança setorial.
Em fóruns recentes, como o SENDI, o CITEENEL e a Semana de la Energía, foi amplamente discutida a necessidade de fortalecer os mecanismos de governança integrada. Esses encontros destacaram que a resiliência moderna não se limita à infraestrutura física, mas depende da capacidade das instituições de cooperar, compartilhar dados e tomar decisões coordenadas sob condições de incerteza.
De maneira geral, a integração institucional representa a base organizacional da resiliência no setor elétrico. Sem coordenação, os recursos técnicos e humanos tornam-se fragmentados, comprometendo a capacidade de resposta do sistema. A consolidação de canais permanentes de cooperação, protocolos de interoperabilidade e estruturas de comando unificadas é, portanto, condição indispensável para garantir que o conceito de resiliência transcenda o discurso técnico e se materialize como prática operacional e política pública efetiva.
3.4 Integração Regional e Entidades de Governança Independente
A resiliência do sistema elétrico, quando analisada sob uma perspectiva regional, evidencia-se como um desafio que transcende fronteiras nacionais. A interdependência crescente entre redes de transmissão, mercados de energia e políticas de transição energética reforça a necessidade de uma governança multinível, capaz de integrar estratégias e harmonizar diretrizes técnicas entre países da América Latina e do Caribe. Essa abordagem busca fortalecer a segurança energética regional e consolidar estruturas cooperativas que ampliem a capacidade de resposta a eventos críticos de grande escala.
Durante a X Semana de la Energía, realizada em Santiago do Chile em 2025, o tema da integração regional e da resiliência institucional esteve no centro das discussões entre representantes de governos, agências reguladoras e operadores de sistemas elétricos. As informações apresentadas neste item foram obtidas a partir da participação do autor nesses debates e estão sistematizadas no documento “Relatório Final da X Semana de la Energía – OLADE 2025: Desafios e Oportunidades para a Transição Energética na América Latina e Caribe”, de autoria própria, disponível em: https://efagundes.com/blog/olade-latin-america-energy-chile/
Esse material reflete uma análise técnica independente e não constitui publicação oficial da Organização Latino-Americana de Energia (OLADE).
As discussões observadas no evento destacaram a proposta de criação de uma Plataforma de Governança Energética Regional (PGER), destinada a promover o compartilhamento de informações estratégicas, a harmonização de marcos regulatórios e o fortalecimento da cooperação técnica entre os países da região. Essa plataforma teria como função estabelecer um ambiente colaborativo entre operadores e reguladores, favorecendo o alinhamento de práticas e a consolidação de padrões comuns de resiliência.
Outro ponto amplamente debatido foi a concepção de uma Rede de Operadores Interconectados da América Latina e Caribe (ROI-ALC), com o objetivo de criar um mecanismo de despacho coordenado e intercâmbio de energia entre os sistemas nacionais. Essa iniciativa contribuiria para a segurança de suprimento, a eficiência das interconexões e a criação de uma camada adicional de resiliência operacional baseada na cooperação técnica entre países. No caso brasileiro, a experiência do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) em gestão integrada e operação em tempo real serve como referência para a estruturação de um modelo de governança técnica regional.
Também foi discutida a possibilidade de constituir um Conselho Latino-Americano de Regulação Energética, voltado à interoperabilidade entre normas nacionais, à padronização de indicadores técnicos e à implementação de diretrizes comuns de cibersegurança e sustentabilidade ambiental. Essa iniciativa reconhece que a resiliência institucional é construída não apenas com base em infraestrutura e tecnologia, mas também por meio da convergência regulatória e da confiança entre as autoridades setoriais.
A análise desses debates reforça que a integração regional representa uma oportunidade estratégica para o fortalecimento da resiliência do setor elétrico brasileiro. O modelo de governança vigente no país — baseado na articulação entre ONS, ANEEL e MME — pode servir de referência para a criação de instâncias regionais independentes de coordenação. A experiência acumulada em planejamento, digitalização e regulação técnica confere ao Brasil posição de destaque na formação de redes regionais de cooperação energética.
Por fim, os resultados observados na X Semana de la Energía indicam que a construção de uma governança energética cooperativa e tecnicamente autônoma é essencial para a segurança do suprimento e para a estabilidade dos sistemas interconectados. A criação de entidades regionais independentes, dotadas de mandatos técnicos e autonomia operacional, representa um passo decisivo para o fortalecimento da resiliência institucional latino-americana e para o alinhamento entre os princípios de segurança, sustentabilidade e integração energética.
4. Casos Internacionais e Benchmarking
A análise comparativa de experiências internacionais é essencial para consolidar políticas e práticas de resiliência no setor elétrico. Países sujeitos a eventos climáticos extremos e interrupções de grande escala desenvolveram metodologias avançadas de mitigação, resposta e recomposição, capazes de oferecer subsídios relevantes para outras nações. O benchmarking técnico permite identificar soluções consolidadas, avaliar a eficiência de diferentes abordagens e adaptar essas práticas às realidades operacionais e regulatórias locais.
Nas últimas décadas, a resiliência tornou-se eixo estruturante das políticas energéticas de diversos países. Empresas e reguladores passaram a investir em programas de fortalecimento de infraestrutura, automação de redes e digitalização operacional, com o objetivo de reduzir a vulnerabilidade do sistema e garantir o restabelecimento rápido após desastres naturais ou falhas sistêmicas. A experiência internacional demonstra que a resiliência só se concretiza de forma sustentável quando há integração entre planejamento técnico, regulação inteligente e governança institucional.
Durante a Distributech 2025, realizada em Dallas, da qual o autor participou, o tema da resiliência em sistemas elétricos foi amplamente debatido em painéis técnicos e apresentações de campo. Foram demonstradas diversas iniciativas de concessionárias norte-americanas que comprovaram a relação direta entre investimentos preventivos em infraestrutura e a redução dos custos associados a interrupções prolongadas.
Entre os exemplos analisados, destacou-se o caso da Florida Power & Light (FPL), que posteriormente foi apresentado em maior profundidade no SENDI 2025, em Belo Horizonte, evento que o autor também acompanhou presencialmente. A apresentação realizada no Brasil reforçou o caráter exemplar da experiência da FPL, considerada referência mundial em planejamento e execução de estratégias de storm hardening e recuperação pós-desastre.
4.1 Experiência da Florida Power & Light
A Florida Power & Light (FPL) atua em um dos ambientes climáticos mais desafiadores do planeta. A Flórida é regularmente atingida por furacões de grande intensidade, exigindo uma abordagem de operação e planejamento voltada à prevenção e à recomposição rápida. Para enfrentar esse cenário, a concessionária estruturou um programa contínuo de fortalecimento de rede, conhecido como storm hardening, associado a protocolos de resposta emergencial de alta precisão e eficácia.
O conceito de storm hardening adotado pela FPL envolve a modernização física e tecnológica das redes de distribuição e transmissão. As medidas incluem o reforço estrutural de postes e cabos, o enterramento seletivo de circuitos críticos, a instalação de sensores inteligentes e o uso de sistemas avançados de monitoramento remoto. O objetivo é reduzir a vulnerabilidade dos ativos e garantir a continuidade dos serviços essenciais mesmo durante a ocorrência de eventos extremos.
A efetividade dessas ações foi comprovada durante os furacões Irma (2017) e Ian (2022). Em ambos os casos, a FPL conseguiu restabelecer o fornecimento a mais de dois terços dos consumidores em menos de 24 horas, alcançando a recomposição total em menos de oito dias, mesmo com danos significativos à infraestrutura. Esses resultados foram apresentados no SENDI 2025 como evidência de que o investimento contínuo em resiliência física e digital reduz significativamente o impacto social e econômico dos desastres naturais.
O modelo operacional da FPL baseia-se em três pilares: prevenção estruturada, resposta coordenada e aprendizado contínuo. No campo da prevenção, a concessionária realiza simulações periódicas de impacto climático e testes de contingência integrados com órgãos de proteção civil. Durante os eventos, adota um sistema centralizado de comando e controle, que integra informações meteorológicas, sensores de campo e dados de consumo em tempo real, permitindo o despacho otimizado de equipes e recursos. Após a normalização do sistema, são conduzidas análises de desempenho e revisões de protocolos, de modo que cada evento contribua para o aprimoramento do planejamento futuro.
Outro aspecto relevante observado na experiência da FPL é o forte alinhamento institucional entre a concessionária, os órgãos reguladores e as autoridades locais. Essa cooperação assegura a integração entre os planos de emergência e os programas públicos de segurança e defesa civil, ampliando a efetividade das ações de recuperação. Essa sinergia foi destacada durante o SENDI 2025 como exemplo de coordenação entre agentes públicos e privados para a gestão de crises energéticas.
A experiência da Florida Power & Light demonstra que a resiliência é alcançada por meio de um equilíbrio entre tecnologia, planejamento e governança. O conceito de storm hardening, quando aplicado de forma contínua e alinhado a políticas regulatórias consistentes, reduz substancialmente o tempo de restabelecimento e o impacto econômico de eventos severos.
No contexto brasileiro, essa abordagem oferece lições valiosas. Regiões sujeitas a tempestades intensas, queimadas ou inundações podem se beneficiar de estratégias de reforço seletivo de rede, automação preditiva e coordenação interinstitucional. Assim como no caso da FPL, a implementação de programas permanentes de fortalecimento e monitoramento pode elevar significativamente o padrão de resiliência das distribuidoras e transmissoras nacionais.
Em síntese, a experiência da FPL, apresentada e debatida no SENDI 2025, confirma que resiliência não é um evento pontual, mas um processo contínuo de aprimoramento técnico e institucional. Essa visão consolida o entendimento de que a preparação preventiva e a coordenação eficiente são os elementos-chave para garantir um sistema elétrico mais robusto, seguro e sustentável.
4.2 Benchmarks Regulatórios
A resiliência, além de um conceito técnico-operacional, tornou-se um componente estratégico da política regulatória em diversos países. Reguladores de energia nas principais economias mundiais passaram a incorporar critérios de resiliência nas normas de continuidade do serviço, nos mecanismos de precificação e nos instrumentos de incentivo aos investimentos. Essa evolução reflete o reconhecimento de que a resiliência é um ativo de interesse público, cujo fortalecimento reduz custos sociais, aumenta a segurança do suprimento e melhora a previsibilidade do sistema elétrico.
Entre os principais modelos regulatórios de referência, destacam-se as práticas desenvolvidas nos Estados Unidos, noReino Unido e na União Europeia, conduzidas por instituições como a Federal Energy Regulatory Commission (FERC), a North American Electric Reliability Corporation (NERC) e a Office of Gas and Electricity Markets (Ofgem). Esses organismos têm adotado abordagens complementares que combinam exigências técnicas, incentivos econômicos e mecanismos de compensação baseados em desempenho.
Nos Estados Unidos, a FERC e a NERC atuam de forma coordenada. A NERC é responsável pela definição dos padrões de confiabilidade e segurança operacional, que incluem diretrizes para proteção física e cibernética das instalações críticas, planejamento de contingência e planos de resposta a emergências. Já a FERC desempenha o papel de órgão regulador e fiscalizador, aprovando normas, tarifas e políticas de incentivo. O modelo norte-americano enfatiza a responsabilidade compartilhada entre operadores independentes, concessionárias e autoridades locais, estimulando o investimento em infraestrutura preventiva.
Um dos instrumentos mais discutidos nesse contexto são os resilience credits, que funcionam como incentivos econômicos concedidos a empresas que comprovem investimentos em infraestrutura resiliente. Esses créditos podem ser aplicados na forma de reconhecimento tarifário, dedução fiscal ou recuperação antecipada de investimentos. Além disso, a política de investment recovery permite que concessionárias recuperem, por meio de mecanismos tarifários, os custos adicionais associados a projetos de fortalecimento de rede, desde que comprovem benefícios mensuráveis de redução de risco e melhoria da continuidade.
No Reino Unido, o modelo regulatório da Ofgem é baseado em metas de desempenho e incentivos à eficiência. A agência utiliza o sistema RIIO (Revenue = Incentives + Innovation + Outputs), que vincula a receita das empresas a indicadores de qualidade, inovação e sustentabilidade. Dentro dessa estrutura, a resiliência é tratada como componente transversal, sendo considerada tanto nos indicadores de continuidade quanto nos programas de investimento em modernização de rede. O RIIO estimula as empresas a incorporar soluções tecnológicas inovadoras — como redes inteligentes, automação e armazenamento de energia — como parte das estratégias de resiliência e redução de risco climático.
Na União Europeia, a política conduzida pela ENTSO-E (European Network of Transmission System Operators for Electricity) e pela Comissão Europeia enfatiza a coordenação transnacional. Os países-membros são incentivados a desenvolver planos conjuntos de segurança e resiliência, com foco na interoperabilidade entre sistemas elétricos, na padronização de indicadores e na criação de centros regionais de operação. Essa integração permite resposta coordenada a perturbações de larga escala e facilita o intercâmbio de energia em situações emergenciais, fortalecendo a resiliência coletiva do bloco.
A comparação entre essas experiências demonstra que as políticas mais eficazes de resiliência são aquelas que combinam exigência regulatória, incentivo econômico e coordenação institucional. Em todos os casos, a resiliência deixou de ser tratada como um custo e passou a ser reconhecida como um investimento estratégico, com retorno mensurável em confiabilidade, eficiência e estabilidade social.
No Brasil, a discussão sobre incentivos regulatórios à resiliência segue trajetória semelhante. A ANEEL tem avaliado mecanismos que possibilitem o reconhecimento tarifário de investimentos destinados à mitigação de riscos e à modernização de redes, aproximando-se gradualmente dos modelos internacionais. A adoção de métricas específicas, como o Resilience Index (RI) e o Restoration Time Index (RTI), aliada à criação de incentivos de desempenho, representa o próximo passo natural para consolidar a resiliência como elemento estruturante da regulação nacional.
Tabela 4 – Comparativo internacional de políticas de resiliência
Região / Entidade | Estrutura Regulatória | Principais Instrumentos | Enfoque de Resiliência | Tipo de Incentivo |
Estados Unidos (FERC / NERC) | Regulação por padrões técnicos e incentivos de investimento | Resilience credits; investment recovery; planos de contingência | Segurança física, cibernética e continuidade operacional | Recuperação tarifária e créditos fiscais |
Reino Unido (Ofgem) | Modelo RIIO baseado em metas de desempenho | Incentivos à inovação e eficiência; integração de indicadores de resiliência | Qualidade do serviço, inovação tecnológica e sustentabilidade | Ajuste de receita com base em desempenho |
União Europeia (ENTSO-E / CE) | Coordenação transnacional entre operadores | Planos conjuntos de segurança; interoperabilidade de sistemas | Resiliência regional e integração de mercados | Financiamento cooperativo e apoio comunitário |
Brasil (ANEEL / ONS) | Regulação técnica e incentivos em evolução | PRODIST; revisões tarifárias; consulta pública sobre resiliência | Continuidade do serviço e adaptação climática | Incentivos regulatórios em fase de estruturação |
Esses benchmarks demonstram que o avanço da resiliência regulatória depende de um equilíbrio entre normatização, incentivo e integração institucional. A experiência internacional oferece um caminho de referência para o Brasil, que, ao adotar práticas semelhantes, poderá consolidar um ambiente regulatório mais robusto e alinhado às exigências de segurança e sustentabilidade do século XXI.
5. Diagnóstico e Desafios do Sistema Elétrico Brasileiro
O sistema elétrico brasileiro é reconhecido por sua complexidade e dimensão continental. Com uma matriz predominantemente renovável e um modelo interligado de operação, o país consolidou ao longo das últimas décadas uma das redes mais integradas e sofisticadas do mundo. Entretanto, essa mesma característica de interconexão, que garante eficiência e flexibilidade, também torna o sistema mais sensível a perturbações localizadas, falhas em cascata e eventos climáticos extremos.
A análise de resiliência do sistema elétrico brasileiro deve, portanto, considerar quatro dimensões principais: a estrutura física e operacional, a exposição a riscos climáticos e cibernéticos, a capacidade de integração de dados e interoperabilidade e os impactos socioeconômicos decorrentes das interrupções. Essas dimensões interagem de maneira dinâmica, exigindo uma abordagem integrada que combine engenharia, regulação e governança institucional.
Fragilidades estruturais
O sistema elétrico brasileiro, embora robusto em extensão, apresenta fragilidades estruturais concentradas em pontos estratégicos. Muitas subestações e corredores de transmissão operam em regime de alta criticidade, com baixa redundância física e elevada dependência de linhas específicas. Essas condições aumentam o risco de falhas em cascata, especialmente em situações de sobrecarga ou eventos climáticos severos.
A topologia do sistema, fortemente centralizada em alguns eixos de interligação, limita a flexibilidade operacional em cenários de contingência. Em áreas urbanas densas, as restrições de espaço físico e o envelhecimento de equipamentos dificultam o reforço da infraestrutura e a modernização dos sistemas de proteção. O episódio do apagão de outubro de 2025, originado em uma subestação de grande relevância no Paraná, expôs de forma contundente a vulnerabilidade estrutural de ativos essenciais e a necessidade de revisão das políticas de redundância, manutenção e supervisão de ativos críticos.
Além disso, a expansão de fontes renováveis variáveis, como solar e eólica, exige novos padrões de confiabilidade e flexibilidade da rede, especialmente nas regiões Nordeste e Sul. A integração dessas fontes demanda sistemas de transmissão mais resilientes e infraestrutura capaz de absorver flutuações de geração com segurança.
Vulnerabilidade a eventos climáticos e ataques cibernéticos
Os eventos climáticos extremos têm se tornado mais frequentes e intensos, afetando diretamente a continuidade do fornecimento elétrico. Chuvas torrenciais, ventos intensos, enchentes e ondas de calor impactam tanto a infraestrutura física quanto a operação em tempo real. O aumento da temperatura média e da variabilidade climática exige adaptações na concepção e operação das redes, em especial nas áreas costeiras e nas regiões de expansão urbana.
O SENDI 2025 e o CITEENEL 2025 reforçaram que as concessionárias precisam adotar abordagens preditivas e planos de contingência mais sofisticados, capazes de antever impactos e minimizar danos. Esses eventos também chamaram atenção para a necessidade de incorporar critérios de risco climático no planejamento de investimentos e na definição de indicadores de desempenho regulatório.
Paralelamente, cresce a preocupação com a cibersegurança dos sistemas elétricos. A digitalização e a automação — fundamentais para a operação eficiente e moderna — ampliam a superfície de exposição a ataques cibernéticos. A integração de sensores, medidores inteligentes e sistemas de controle remoto, embora essencial para a eficiência operacional, requer protocolos rigorosos de segurança da informação, monitoramento contínuo e mecanismos de resposta rápida a incidentes.
Ataques cibernéticos direcionados a sistemas de controle de energia, observados em diferentes países, servem como alerta para o Brasil. O fortalecimento da ciber-resiliência deve ser prioridade na agenda de modernização, incluindo treinamento especializado, integração de equipes de tecnologia e operação e atualização contínua dos padrões de proteção.
Limitações na integração de dados e interoperabilidade
A interoperabilidade entre agentes e sistemas de operação é uma das áreas mais críticas para a evolução da resiliência no Brasil. A operação em tempo real depende de informações confiáveis, tempestivas e integradas entre transmissoras, distribuidoras, o ONS e os órgãos reguladores. No entanto, ainda há lacunas significativas na uniformização dos formatos de dados, na compatibilidade entre plataformas tecnológicas e na velocidade de comunicação entre centros de controle regionais.
A ausência de uma arquitetura nacional de dados unificada dificulta a análise preditiva e o diagnóstico de falhas sistêmicas. O uso de tecnologias emergentes, como inteligência artificial e aprendizado de máquina, depende de bases de dados consistentes e interoperáveis. Sem essa padronização, torna-se difícil antecipar riscos, correlacionar variáveis climáticas e operacionais e desenvolver modelos de resposta automatizada.
Durante eventos de grande escala, as falhas de interoperabilidade entre sistemas de distribuição e o controle central do ONS prolongam o tempo de resposta e comprometem a eficiência da recomposição. Essa limitação também impacta a capacidade regulatória da ANEEL, que depende de informações precisas e consolidadas para fiscalizar, definir indicadores e aprimorar normas de desempenho.
Custos de indisponibilidade e impactos socioeconômicos
As interrupções no fornecimento de energia elétrica têm efeitos diretos e indiretos sobre a economia e a sociedade. Além dos prejuízos imediatos a consumidores e empresas, a indisponibilidade de energia afeta cadeias produtivas, serviços essenciais e operações logísticas. Em eventos de grande porte, como o de outubro de 2025, os impactos se propagam rapidamente, afetando sistemas de transporte, comunicações, abastecimento de água e saúde pública.
O custo econômico associado às interrupções, medido por indicadores como o Value of Lost Load Adjusted (VoLLa), evidencia que investir em resiliência é economicamente mais vantajoso do que arcar com as perdas decorrentes da falta de energia. Estudos de impacto social e econômico mostram que o tempo de recuperação do sistema está diretamente relacionado à magnitude dos prejuízos, reforçando a importância de políticas públicas voltadas à redução do tempo médio de restabelecimento.
Esses custos também têm implicações regulatórias. À medida que a sociedade se torna mais dependente de serviços digitais, o valor da confiabilidade energética aumenta, tornando-se um fator de competitividade econômica e de bem-estar social. A integração de mecanismos de compensação financeira, incentivos tarifários e critérios de desempenho baseados em resiliência pode alinhar os interesses de consumidores, concessionárias e reguladores.
O diagnóstico apresentado evidencia que o sistema elétrico brasileiro enfrenta desafios complexos e interdependentes. As fragilidades estruturais, os riscos climáticos e cibernéticos, a fragmentação dos dados e os custos socioeconômicos das interrupções compõem um quadro que exige respostas coordenadas e planejamento integrado.
O fortalecimento da resiliência nacional passa pela modernização da infraestrutura, pela ampliação da capacidade de interoperabilidade e pela consolidação de uma governança multissetorial. Somente a integração entre tecnologia, regulação e políticas públicas permitirá ao setor elétrico brasileiro atingir o patamar de segurança e adaptabilidade exigido pela transição energética e pelas novas demandas da sociedade.
Tabela 5 – Mapa de Vulnerabilidades Sistêmicas no Sistema Interligado Nacional (SIN)
Dimensão | Vulnerabilidade Identificada | Causa ou Fator de Risco | Consequência Potencial | Nível de Criticidade* | Recomendações Estratégicas |
Estrutural | Subestações críticas sem redundância física | Concentração de carga e dependência de corredores únicos de transmissão | Falhas em cascata e interrupções de grande escala | Alta | Reforço de redundância; revisão do planejamento de contingência; priorização de investimentos estruturais |
Estrutural | Equipamentos envelhecidos em áreas urbanas densas | Restrição de espaço físico e atrasos em modernização | Maior taxa de falhas e redução da confiabilidade local | Média | Renovação programada de ativos; modernização modular; incentivos regulatórios à substituição |
Climática | Exposição de ativos a eventos extremos (enchentes, ventos, queimadas) | Falta de mapeamento climático integrado ao planejamento elétrico | Danos físicos e interrupção prolongada do fornecimento | Alta | Zoneamento climático de risco; incorporação de dados meteorológicos no planejamento do ONS e da ANEEL |
Operacional | Capacidade limitada de resposta a eventos simultâneos | Planos de contingência desatualizados ou não integrados | Demora na recomposição e aumento do tempo de restabelecimento | Alta | Atualização contínua dos planos operacionais; simulações regulares interinstitucionais |
Tecnológica | Falhas de interoperabilidade entre sistemas de controle | Sistemas legados e ausência de padrões comuns de dados | Perda de eficiência na coordenação e atrasos na resposta | Alta | Criação de arquitetura nacional de dados unificada; adoção de protocolos abertos de comunicação |
Tecnológica | Vulnerabilidade cibernética crescente | Expansão da automação sem infraestrutura de segurança equivalente | Risco de ataques a sistemas de controle e manipulação de dados críticos | Alta | Implementação de políticas de ciber-resiliência; integração entre equipes de TI e operação; auditorias periódicas |
Regulatória | Ausência de métricas de resiliência na regulação de continuidade | Enfoque limitado em confiabilidade tradicional (DEC/FEC) | Falta de incentivo econômico à prevenção e adaptação | Média | Introdução de indicadores de resiliência e mecanismos de performance tarifária |
Institucional | Comunicação fragmentada entre agentes setoriais | Falta de interoperabilidade entre centros de operação e órgãos públicos | Atrasos na coordenação de resposta e tomada de decisão | Alta | Criação de protocolos de comunicação integrada e centros regionais de gestão de crise |
Socioeconômica | Elevado custo de indisponibilidade energética | Dependência de energia em serviços críticos e digitais | Impactos econômicos e sociais em cascata | Alta | Valoração econômica da resiliência (VoLLa); programas de compensação e incentivos para mitigação |
Ambiental | Interferência de desastres naturais recorrentes sobre corredores de transmissão | Expansão em áreas de risco ambiental e hidrológico | Descontinuidade temporária e danos permanentes à infraestrutura | Média | Planejamento territorial conjunto; integração entre energia e meio ambiente nas políticas públicas |
*Nível de Criticidade: Alta, Média ou Baixa, conforme impacto potencial e probabilidade de ocorrência.
Este mapa de vulnerabilidades sistêmicas pode ser utilizado como ferramenta base para:
- elaboração de planos de mitigação e priorização de investimentos;
- desenvolvimento de indicadores de resiliência setorial;
- construção de cenários de risco sistêmico no planejamento de médio e longo prazo do ONS e da ANEEL.
6. Estratégias e Soluções de Resiliência
O fortalecimento da resiliência no setor elétrico brasileiro requer uma abordagem integrada que combine tecnologia, gestão operacional e regulação inteligente. Os desafios diagnosticados no capítulo anterior evidenciam que a infraestrutura física, por si só, não é suficiente para garantir estabilidade em um ambiente cada vez mais dinâmico e exposto a riscos múltiplos. É necessário desenvolver um ecossistema técnico e institucional capaz de antecipar falhas, reagir rapidamente a perturbações e adaptar-se de forma contínua a novas condições de operação.
As estratégias de resiliência devem ser estruturadas em três dimensões complementares: tecnológica, operacional e regulatória e econômica. A dimensão tecnológica concentra-se na aplicação de ferramentas digitais e soluções de automação capazes de transformar dados em decisão e resposta em tempo real. A dimensão operacional trata da gestão dos ativos, da qualificação das equipes e da implementação de processos ágeis de contingência. Já a dimensão regulatória define o ambiente institucional e os incentivos econômicos necessários para que as empresas invistam de forma sustentável na prevenção e na mitigação de riscos.
A implementação simultânea dessas três frentes é o que permitirá ao sistema elétrico brasileiro evoluir de um modelo reativo para um modelo proativo e adaptativo, no qual a confiabilidade e a eficiência coexistam com flexibilidade e inovação.
6.1 Tecnológicas
O avanço tecnológico é o principal catalisador da resiliência moderna. As soluções digitais ampliam a capacidade de previsão, resposta e recuperação, permitindo que a operação do sistema elétrico seja orientada por dados e inteligência analítica. As tecnologias emergentes — como Smart Grids, Internet das Coisas (IoT), Digital Twins e sistemas de previsão climática — constituem o núcleo da transformação digital do setor. Além disso, o armazenamento de energiae a integração de microgrids introduzem novos níveis de flexibilidade e autonomia operacional, essenciais em cenários de contingência.
Smart Grids e Internet das Coisas (IoT)
As redes inteligentes representam a convergência entre tecnologia da informação, comunicação e engenharia elétrica. Elas permitem o monitoramento em tempo real do sistema de distribuição e a resposta automatizada a variações de carga, falhas e condições climáticas adversas. A integração de sensores, medidores inteligentes e dispositivos IoT cria uma rede de dados contínua e bidirecional, fornecendo aos operadores uma visão precisa do estado da rede em cada instante.
Com base nesses dados, é possível aplicar algoritmos preditivos que antecipam falhas e executam ações corretivas de forma automática, como o isolamento de trechos comprometidos e o redirecionamento de energia. Essa capacidade de reação instantânea reduz significativamente os tempos de interrupção e de recomposição, elevando o nível de confiabilidade e segurança operacional. No contexto brasileiro, a expansão dos programas de redes inteligentes representa um passo essencial para reduzir as vulnerabilidades estruturais e aprimorar a eficiência das distribuidoras.
Digital Twins e sistemas de previsão climática
O conceito de Digital Twin, ou gêmeo digital, consiste na criação de uma réplica virtual do sistema físico, atualizada continuamente por dados operacionais. Essa tecnologia permite simular, prever e otimizar o comportamento do sistema elétrico em diferentes cenários de operação, manutenção e contingência. Os gêmeos digitais integram informações de sensores, dados meteorológicos e modelos de rede, possibilitando a análise de impactos antes que eventos reais ocorram.
Quando associados a sistemas de previsão climática de alta resolução, os Digital Twins tornam-se ferramentas poderosas para gestão de risco. Eles permitem identificar regiões mais vulneráveis a tempestades, calor extremo ou inundações, facilitando o redirecionamento preventivo de equipes, a redistribuição de carga e a proteção de ativos críticos. Essa abordagem preditiva, já consolidada em concessionárias internacionais, pode ser adaptada às condições do Sistema Interligado Nacional, especialmente em áreas de risco hidrológico e urbano.
Além de aprimorar a segurança operacional, os Digital Twins contribuem para o aprendizado institucional. Cada evento real alimenta o modelo virtual com novos dados, aprimorando sua precisão e a capacidade de prever falhas futuras. Dessa forma, a tecnologia se torna um instrumento de evolução contínua da resiliência sistêmica.
Armazenamento de energia e microgrids
O armazenamento de energia e o desenvolvimento de microgrids representam a fronteira da resiliência elétrica distribuída. Sistemas de armazenamento em baterias, especialmente em áreas isoladas ou vulneráveis, oferecem suporte de emergência durante interrupções e reduzem a dependência exclusiva das linhas de transmissão. Essa flexibilidade aumenta a capacidade de resposta do sistema e diminui a propagação de falhas em cascata.
As microgrids, por sua vez, operam como redes elétricas locais autônomas, capazes de isolar-se temporariamente da rede principal em situações de contingência. Elas combinam geração distribuída, armazenamento e controle inteligente, permitindo a manutenção do fornecimento em instalações críticas, como hospitais, centros de dados, aeroportos e sistemas de bombeamento de água.
A integração de microgrids e sistemas de armazenamento no SIN pode ser particularmente útil em regiões com infraestrutura frágil ou de difícil acesso, oferecendo redundância operacional e maior estabilidade frente a eventos climáticos severos. Essa arquitetura descentralizada amplia o conceito de resiliência para além da resposta emergencial, transformando-o em um modelo permanente de segurança e eficiência energética.
Em síntese, as soluções tecnológicas representam o alicerce da resiliência moderna. Sua aplicação exige investimentos coordenados, padronização de protocolos e políticas de incentivo à inovação. A adoção de tecnologias digitais, associadas à automação e à descentralização da geração, redefine o papel das redes elétricas, que passam a operar como sistemas inteligentes, adaptativos e autossustentáveis.
6.2 Operacionais
A dimensão operacional da resiliência diz respeito à capacidade do sistema elétrico de prever, absorver e recuperar-sede perturbações por meio de processos bem estruturados, equipes treinadas e comunicação eficiente entre agentes. Se as soluções tecnológicas fornecem as ferramentas, é na esfera operacional que a resiliência se concretiza em ações — sejam elas preventivas, corretivas ou adaptativas.
O sistema elétrico brasileiro, pela sua complexidade e amplitude, depende fortemente da coordenação entre o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), as transmissoras e distribuidoras, e as agências reguladoras e instituições públicas envolvidas. A eficiência operacional é resultado direto da maturidade dos planos de continuidade, da qualidade da manutenção e da agilidade de resposta em contingências.
As práticas internacionais e os debates realizados no SENDI 2025 e no CITEENEL 2025 reforçaram que a resiliência operacional deve ser tratada como competência organizacional — um processo contínuo e integrado de planejamento, execução e aprendizado.
Planos de Continuidade Operacional (PCO)
Os Planos de Continuidade Operacional (PCO) são instrumentos centrais para assegurar a resposta estruturada do setor elétrico diante de eventos disruptivos. Eles definem os protocolos de ação antes, durante e após crises sistêmicas, estabelecendo responsabilidades, fluxos de comunicação e prioridades de atendimento.
Um PCO robusto deve contemplar quatro eixos fundamentais:
- Identificação de riscos – mapeamento dos ativos e processos críticos;
- Planejamento de resposta – definição de medidas preventivas e contingenciais;
- Execução operacional – mobilização coordenada de equipes e recursos;
- Avaliação pós-evento – registro de lições aprendidas e atualização dos planos.
No Brasil, a adoção de PCOs pelas concessionárias ainda é heterogênea. Enquanto algumas distribuidoras já incorporam rotinas estruturadas de continuidade, outras tratam o tema de forma reativa. A consolidação desses planos em âmbito nacional, integrados ao ONS e supervisionados pela ANEEL, é uma medida necessária para padronizar procedimentos, reduzir tempos de resposta e fortalecer a governança institucional.
A prática internacional demonstra que planos de continuidade bem executados reduzem significativamente o impacto de eventos críticos e aceleram o processo de recomposição. O aprendizado obtido com furacões, apagões e incidentes cibernéticos em outros países reforça que a prevenção planejada é mais eficiente e menos custosa que a resposta emergencial isolada.
Manutenção preditiva baseada em dados
A manutenção preditiva representa uma evolução fundamental na gestão da infraestrutura elétrica. Diferentemente da manutenção preventiva, baseada em prazos fixos ou inspeções periódicas, a abordagem preditiva utiliza análise de dados em tempo real para identificar tendências de falha e programar intervenções antes que o problema se manifeste.
Sensores instalados em transformadores, cabos, isoladores e equipamentos de proteção geram dados contínuos de temperatura, vibração e corrente elétrica. Esses dados, processados por algoritmos de aprendizado de máquina, permitem prever anomalias com alta precisão. Essa metodologia amplia a disponibilidade dos ativos, reduz custos de manutenção e melhora a confiabilidade geral do sistema.
O emprego de Big Data e inteligência artificial na manutenção das redes foi um dos temas centrais no SENDI 2025, destacando-se como prática indispensável à modernização do setor. O uso dessas tecnologias no Brasil ainda é incipiente, mas há avanços consistentes em projetos-piloto conduzidos por concessionárias e universidades. A aplicação sistemática dessa abordagem pode representar um salto qualitativo na gestão de ativos, substituindo modelos reativos por modelos baseados em desempenho e risco.
Operação em contingência e resposta coordenada
A operação em contingência é o momento em que a resiliência se materializa. Envolve a capacidade de agir sob pressão, com informação limitada e em tempo reduzido, preservando a estabilidade do sistema e o atendimento às cargas prioritárias.
A resposta coordenada requer interoperabilidade técnica e institucional entre os centros de controle das concessionárias, o ONS, a ANEEL e os órgãos públicos envolvidos, como defesas civis e autoridades ambientais. Em eventos críticos, essa integração é o fator que diferencia uma resposta eficiente de uma crise prolongada.
O conceito de comando unificado — amplamente utilizado em operações de emergência — vem sendo adaptado ao setor elétrico, permitindo que múltiplos agentes atuem sob uma estrutura hierárquica compartilhada. Essa abordagem facilita a troca de informações, evita sobreposições e assegura decisões consistentes durante as fases mais críticas de recomposição.
Além da estrutura de comando, a resposta coordenada depende da disponibilidade de infraestruturas redundantes de comunicação e de protocolos padronizados de operação. O treinamento conjunto entre equipes de diferentes instituições e o uso de simulações periódicas são práticas recomendadas para garantir que o sistema de resposta esteja sempre preparado.
A fase pós-evento também integra a operação resiliente. O registro e a análise das ocorrências, seguidos de revisões dos procedimentos e atualização dos PCOs, criam um ciclo de aprendizado contínuo que fortalece o sistema ao longo do tempo.
A dimensão operacional, portanto, é o elo entre a estratégia e a prática. É nela que a tecnologia e a regulação se encontram para produzir resultados concretos: menor tempo de restabelecimento, redução de perdas e maior confiança pública no sistema elétrico. O aprimoramento das rotinas operacionais, aliado à integração de dados e treinamento institucional, constitui o caminho mais direto para transformar a resiliência em um atributo permanente do Sistema Interligado Nacional.
6.3 Regulatórias e Econômicas
A consolidação da resiliência no setor elétrico brasileiro depende, em grande medida, da evolução do arcabouço regulatório e da incorporação de instrumentos econômicos que incentivem a prevenção e a adaptação contínua. A experiência internacional demonstra que o fortalecimento da infraestrutura e da gestão de risco somente se torna sustentável quando os mecanismos de regulação e tarifação reconhecem o valor econômico da resiliência e recompensam os investimentos que a promovem.
A regulação tradicional, centrada em indicadores de continuidade e confiabilidade (como DEC e FEC), cumpre um papel essencial, mas limitado. Ela mede a frequência e a duração das interrupções, sem captar integralmente a capacidade adaptativa do sistema — isto é, a velocidade e a eficiência com que ele se recupera de um evento extremo. A nova geração de instrumentos regulatórios deve, portanto, ampliar o foco: não apenas evitar falhas, mas valorizar a capacidade de resposta e recomposição.
Essa transição conceitual requer ajustes em três eixos principais: incentivos tarifários vinculados à resiliência, avaliação de custo-benefício de investimentos (CBA) e proposição de novos indicadores regulatórios.
Incentivos tarifários vinculados à resiliência
Os incentivos tarifários são instrumentos poderosos para alinhar o comportamento das concessionárias às metas de política pública. No contexto da resiliência, eles permitem transformar ações preventivas — muitas vezes vistas como custos — em investimentos reconhecidos e remunerados.
Modelos adotados em outros países demonstram que a inclusão de parâmetros de resiliência na estrutura tarifária gera ganhos sistêmicos. As concessionárias são motivadas a investir em redes inteligentes, redundâncias estruturais e sistemas de automação, reduzindo o impacto econômico de interrupções prolongadas.
No Brasil, a ANEEL vem avaliando a possibilidade de integrar créditos de resiliência aos mecanismos tarifários, reconhecendo financeiramente investimentos que resultem em maior robustez, flexibilidade e velocidade de recuperação. Esses créditos poderiam funcionar de modo semelhante aos incentivos de eficiência, ajustando a receita das concessionárias conforme o desempenho comprovado em situações críticas.
Esse modelo representa uma evolução natural do marco regulatório, alinhando os incentivos econômicos com os objetivos de segurança energética e sustentabilidade. Para garantir sua efetividade, é necessário estabelecer métricas transparentes, auditoria técnica dos resultados e mecanismos de revisão periódica que assegurem a proporcionalidade entre investimento e benefício.
Avaliação de custo-benefício de investimentos (CBA)
A análise de custo-benefício (Cost-Benefit Analysis – CBA) é uma metodologia indispensável para embasar decisões regulatórias em resiliência. Ela permite quantificar, de forma objetiva, os impactos econômicos de eventos críticos e o retorno esperado dos investimentos destinados à mitigação de riscos.
O enfoque da CBA em resiliência vai além da análise financeira tradicional: incorpora custos sociais evitados, redução de prejuízos econômicos indiretos e ganhos de estabilidade sistêmica. Em um apagão de grande escala, por exemplo, o custo de indisponibilidade não se restringe à energia não fornecida, mas inclui perdas industriais, paralisações de transporte e comprometimento de serviços essenciais.
Aplicar a CBA a projetos de modernização, automação e reforço de rede possibilita estabelecer prioridades de investimento com base em retorno sistêmico e não apenas em rentabilidade privada. Essa abordagem torna o processo decisório mais racional e alinhado ao interesse público, além de fornecer subsídios técnicos à ANEEL e ao Ministério de Minas e Energia (MME) para a formulação de políticas de incentivo.
No contexto do Sistema Interligado Nacional, a adoção sistemática da CBA também pode apoiar a criação de um portfólio nacional de projetos resilientes, permitindo que os investimentos mais estratégicos sejam priorizados de forma transparente e mensurável.
Propostas de novos indicadores regulatórios
A modernização da regulação exige a evolução dos indicadores de desempenho. Os indicadores tradicionais de continuidade, embora essenciais, não captam adequadamente o comportamento dinâmico do sistema durante e após eventos de grande impacto.
Propõe-se, portanto, a introdução de novos indicadores de natureza temporal, adaptativa e sistêmica, como:
- Tempo Médio de Recuperação (TMR): mede o intervalo entre o início da interrupção e o restabelecimento total da carga, refletindo a eficiência da recomposição.
- Índice de Robustez Operacional (IRO): avalia a capacidade do sistema de absorver perturbações sem perda significativa de desempenho.
- Índice de Flexibilidade de Rede (IFR): quantifica a capacidade de redirecionamento de energia em cenários de contingência.
Esses indicadores complementariam os parâmetros já consagrados de continuidade, permitindo à ANEEL avaliar a performance das concessionárias sob a ótica da resiliência integral — técnica, operacional e institucional.
A introdução desses novos parâmetros deve ser acompanhada de mecanismos de incentivo e penalidade que estimulem o desempenho resiliente, de forma semelhante aos modelos aplicados pela Ofgem no Reino Unido e pela FERC nos Estados Unidos. Essa integração de métricas e incentivos consolidará um ciclo virtuoso: investimento em prevenção, desempenho mensurável e recompensa proporcional.
Em síntese, a dimensão regulatória e econômica constitui o eixo de sustentação da resiliência. É ela que transforma políticas em ação e boas práticas em resultados mensuráveis. Ao reconhecer o valor econômico da segurança e da estabilidade, o marco regulatório brasileiro pode evoluir de uma lógica corretiva para uma lógica preventiva e adaptativa, na qual o investimento em resiliência deixa de ser custo e passa a ser ativo estratégico de competitividade e confiança sistêmica.
7. Diretrizes Futuras e Recomendações
A consolidação da resiliência no sistema elétrico brasileiro requer um esforço coordenado entre política pública, regulação, tecnologia e gestão institucional. Os capítulos anteriores demonstraram que a infraestrutura nacional possui solidez técnica e competência operacional, mas ainda enfrenta limitações estruturais, tecnológicas e regulatórias que restringem sua capacidade adaptativa.
O contexto atual — marcado por eventos climáticos extremos, maior dependência de energia elétrica e aceleração digital — exige uma agenda nacional de resiliência energética, orientada por planejamento de longo prazo e integração multissetorial. Essa agenda deve traduzir o conceito de resiliência em ações concretas, mensuráveis e sustentáveis, envolvendo governos, agências reguladoras, concessionárias e instituições de pesquisa.
A seguir são apresentadas quatro diretrizes estratégicas prioritárias: a criação de um Plano Nacional de Resiliência Energética (PNRE); a inclusão de métricas de resiliência nos contratos de concessão; o fortalecimento da regulação de continuidade frente a eventos climáticos; e o estabelecimento de uma governança intersetorial entre energia, saneamento e telecomunicações.
Proposta de Plano Nacional de Resiliência Energética (PNRE)
O Plano Nacional de Resiliência Energética (PNRE) deve constituir-se como instrumento estruturante de política pública, orientando investimentos, metas e ações integradas em todo o território nacional. Seu propósito é unificar iniciativas dispersas em um programa coordenado, com visão sistêmica de risco, priorização de vulnerabilidades e critérios técnicos de desempenho.
O PNRE deve abranger:
- diagnóstico contínuo das vulnerabilidades regionais do SIN;
- incorporação de variáveis climáticas e ambientais no planejamento energético;
- estímulo à pesquisa e inovação em redes inteligentes, automação e armazenamento;
- criação de fundos setoriais voltados à mitigação de risco e à modernização da infraestrutura.
Esse plano poderia ser coordenado pelo Ministério de Minas e Energia (MME), com participação direta da ANEEL, do ONS, das concessionárias de energia e de centros de pesquisa. A estrutura proposta permitiria alinhar políticas de segurança, sustentabilidade e transição energética sob um mesmo eixo estratégico.
Inclusão de métricas de resiliência nos contratos de concessão
Os contratos de concessão representam o principal instrumento jurídico para vincular desempenho técnico e obrigações de investimento. A inclusão de métricas de resiliência nesses contratos permitiria transformar o tema em compromisso contratual de longo prazo, monitorado e avaliado pela ANEEL.
Essas métricas devem incorporar indicadores de:
- tempo médio de recuperação (TMR);
- robustez operacional e redundância de rede;
- planos de continuidade operacional (PCO) testados e auditados;
- capacidade de resposta a eventos climáticos e cibernéticos.
A adoção dessas métricas induziria as concessionárias a internalizar a resiliência como parte da gestão de desempenho e planejamento de investimentos, garantindo que a melhoria contínua do sistema se torne obrigação institucional e não apenas uma prática voluntária.
Fortalecimento da regulação de continuidade frente a eventos climáticos
Os padrões atuais de continuidade foram concebidos em um cenário climático mais estável e previsível. A intensificação de tempestades, secas e ondas de calor exige uma revisão regulatória que incorpore parâmetros dinâmicos de risco climático e reconheça a diversidade geográfica e ambiental do país.
Entre as medidas recomendadas estão:
- criação de zonas climáticas de risco elétrico, com limites de continuidade ajustados regionalmente;
- reconhecimento tarifário para investimentos preventivos em áreas de vulnerabilidade climática;
- integração entre ANEEL, ONS e órgãos meteorológicos na formulação de planos sazonais de contingência.
Essa atualização normativa permitirá antecipar impactos e reduzir custos sociais e econômicos associados à interrupção de serviços essenciais.
Governança intersetorial (energia, saneamento, telecomunicações)
A resiliência elétrica está intrinsecamente ligada à continuidade de outros serviços críticos, como saneamento básico, telecomunicações e transporte. A ausência de coordenação entre esses setores amplifica os efeitos de eventos sistêmicos, criando dependências mútuas que comprometem a recuperação.
É necessário instituir uma governança intersetorial permanente, composta por representantes de ministérios, agências reguladoras e concessionárias de infraestrutura. Essa estrutura deve atuar como fórum de planejamento integrado, definindo protocolos de cooperação, prioridades de atendimento e padrões técnicos de interoperabilidade entre redes de utilidade pública.
A integração de informações e a atuação conjunta em emergências aumentam a eficiência da resposta e fortalecem a segurança nacional de infraestrutura crítica. Essa coordenação foi amplamente debatida nos eventos de 2025 — SENDI, CITEENEL, e X Semana de la Energía —, que destacaram a necessidade de convergência institucional para enfrentar riscos sistêmicos cada vez mais complexos.
Tabela 6 – Modelo Conceitual do Ciclo de Resiliência do Sistema Elétrico Brasileiro
Fase | Descrição | Objetivos Principais | Atores Envolvidos | Instrumentos de Implementação |
Prevenção | Planejamento e mitigação de riscos antes da ocorrência de eventos | Identificar vulnerabilidades, priorizar investimentos, reforçar infraestrutura | MME, ANEEL, ONS, concessionárias | PNRE, PCO, análises de CBA, normas de redundância |
Resposta | Atuação coordenada durante o evento crítico | Minimizar impactos e manter operação mínima de sistemas prioritários | ONS, distribuidoras, defesas civis | Protocolos de contingência, centros de comando unificado |
Recuperação | Restabelecimento da operação normal após o evento | Reduzir tempo de recomposição e restaurar confiabilidade | ONS, transmissoras, órgãos públicos locais | Indicadores de TMR, planos de recomposição e auditoria técnica |
Adaptação | Ajustes permanentes e aprendizado institucional | Incorporar lições aprendidas e atualizar políticas e regulamentos | ANEEL, MME, instituições de pesquisa | Revisão regulatória, inovação tecnológica e programas de capacitação |
O modelo conceitual proposto organiza a resiliência como um processo contínuo e cíclico — não um evento isolado. Cada fase retroalimenta a seguinte, criando um sistema de aprendizado e aperfeiçoamento constante. Essa visão transforma a resiliência de um conceito abstrato em um instrumento de gestão pública e regulatória, capaz de orientar decisões estratégicas e de consolidar uma cultura permanente de segurança energética no Brasil.
Conclusões
A análise desenvolvida ao longo deste artigo demonstra que a resiliência se consolidou como um conceito central para o futuro do setor elétrico brasileiro. Mais do que uma característica técnica, ela se tornou um princípio de governança, um parâmetro de regulação e uma estratégia de política pública. A trajetória recente do sistema elétrico — marcada por eventos críticos, transformações tecnológicas e transição energética — reforça a urgência de incorporar a resiliência como elemento permanente de planejamento, operação e investimento.
A síntese dos capítulos evidencia quatro descobertas principais.
Primeiro, o sistema elétrico brasileiro apresenta uma infraestrutura robusta, porém com vulnerabilidades localizadasem ativos críticos, interoperabilidade limitada e dependência de corredores de transmissão sem redundância suficiente. Segundo os impactos crescentes de eventos climáticos e cibernéticos revelam que a confiabilidade tradicional não é mais suficiente: é preciso combinar prevenção, resposta rápida e capacidade adaptativa. Terceiro, a digitalização e a automação oferecem novas ferramentas de monitoramento e controle, mas sua eficácia depende de integração entre dados, sistemas e instituições. Por fim, a regulação deve evoluir de um modelo reativo para um modelo incentivador e prospectivo, no qual o desempenho resiliente seja medido, recompensado e continuamente aprimorado.
A integração institucional e tecnológica desponta como condição indispensável para a maturidade da resiliência nacional. O alinhamento entre ONS, ANEEL, MME e concessionárias precisa ser permanente, sustentado por protocolos de comunicação unificados e sistemas interoperáveis. A convergência entre engenharia, regulação e ciência de dados permitirá construir um ecossistema inteligente de operação e planejamento, capaz de antecipar eventos e reduzir o tempo de recuperação de forma sistemática.
A projeção de médio e longo prazo indica que a transição energética — com a expansão das fontes renováveis, da eletrificação e da digitalização — ampliará a complexidade do sistema, exigindo resiliência como critério estruturante do planejamento energético. O fortalecimento das redes de distribuição, a expansão de microgrids, o armazenamento e o uso de inteligência artificial em manutenção e despacho serão elementos centrais de uma nova arquitetura elétrica baseada em flexibilidade e autonomia.
Em nível regulatório, a criação de indicadores de desempenho resiliente, incentivos tarifários vinculados à prevençãoe créditos de investimento em infraestrutura robusta representam o caminho natural para alinhar eficiência econômica e segurança pública. No campo institucional, o Plano Nacional de Resiliência Energética (PNRE) deve constituir o eixo coordenador das políticas públicas, unindo esforços entre os setores de energia, saneamento e telecomunicações para fortalecer a governança das infraestruturas críticas.
A resiliência, portanto, não é um complemento da confiabilidade, mas o novo paradigma do planejamento energético. Ela redefine o modo como se projeta, opera e regula o sistema elétrico, transformando a vulnerabilidade em aprendizado e o risco em oportunidade de evolução. Ao integrar tecnologia, regulação e cooperação institucional, o Brasil tem condições de posicionar-se como referência global em infraestrutura energética adaptativa, sustentável e preparada para os desafios do século XXI.
Leitura Complementar
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