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A nova fronteira estratégica: energia como core empresarial

Há movimentos empresariais que definem épocas. Alguns são sutis, silenciosos, mas transformam completamente a lógica de setores inteiros. A decisão da Motiva — antiga CCR — de criar sua própria comercializadora de energia elétrica não é um detalhe administrativo; é um marco. Representa a migração de um modelo industrial dependente para um modelo corporativo soberano.

Quando uma empresa decide gerir sua própria energia, ela não está apenas economizando. Está assumindo o controle do seu pulso vital. Está transformando energia em ativo estratégico, e não em passivo contratual.

Esse movimento, embora já percebido por grupos industriais mais maduros, está se acelerando. O contexto de transição energética, o avanço do Mercado Livre de Energia (ACL), e a chegada de tecnologias como BESS (Battery Energy Storage Systems) e hidrogênio verde tornam possível — e necessário — que as empresas eletrointensivas deixem de ser consumidoras e passem a ser arquitetas de seu próprio portfólio energético.

O caso Motiva: energia como eixo de soberania corporativa

A Motiva, holding que consolida os ativos de mobilidade, rodovias, aeroportos e transportes da antiga CCR, anunciou em 2025 a criação de sua comercializadora de energia. O objetivo: consolidar a demanda de todas as suas operações, migrar integralmente para o mercado livre e garantir uma matriz 100% renovável, com ganhos médios de 17% no custo do kWh contratado.

Essa decisão é mais do que financeira. É estratégica. Significa que a Motiva passa a operar com inteligência energética corporativa — comprando, negociando e certificando energia como faz com qualquer outro ativo de valor.

No comando da transformação está Miguel Setas, CEO com larga experiência no setor. À frente da EDP Brasil por sete anos (2014–2021), Setas consolidou a integração entre geração, comercialização e distribuição de energia no país. Sob sua gestão, a EDP foi uma das primeiras utilities privadas a estruturar um portfólio híbrido de renováveis e inovação.

Esse know-how foi transposto para a Motiva. O que era uma empresa de infraestrutura, dependente do fornecimento energético, agora se reposiciona como uma plataforma corporativa de energia e mobilidade — um modelo que alinha eficiência operacional, sustentabilidade e autonomia.

Em essência, a Motiva não está apenas gerindo o consumo; está reposicionando o ativo energia como núcleo estratégico de competitividade.

O precedente industrial: Votorantim e o poder da autoprodução

Esse tipo de visão não é novo no Brasil. A Votorantim Cimentos e a Votorantim Energia, há décadas, compreenderam que controlar a energia é controlar o custo, o risco e o futuro industrial.

Com hidrelétricas próprias, pequenas centrais geradoras e investimentos recentes em parques solares e eólicos, a Votorantim estruturou uma matriz híbrida capaz de suprir suas operações e comercializar excedentes. Na prática, criou um hedge energético natural — blindando-se da volatilidade tarifária e construindo um ativo financeiro adicional.

Mais do que economia, o grupo conquistou previsibilidade e reputação. Em um cenário onde sustentabilidade e eficiência são cada vez mais precificadas, a energia se tornou um diferencial competitivo tangível.

Motiva segue esse mesmo caminho — agora com um olhar mais tecnológico, integrando inteligência de mercado, trading, automação e dados. O movimento, porém, é o mesmo: energia como soberania corporativa.

A maturidade do Mercado Livre: a energia deixa de ser cativa, e o pensamento também

Durante anos, o acesso ao Ambiente de Contratação Livre (ACL) foi o divisor entre empresas reativas e visionárias. Hoje, a maioria das indústrias eletrointensivas já migrou. A questão não é mais se migrar, mas como estruturar a inteligência de compra, gestão e otimização energética.

O Mercado Livre deixou de ser um espaço apenas para redução de custos. Tornou-se o laboratório estratégico de integração tecnológica e financeira da matriz energética corporativa.

Nele, as empresas podem firmar contratos bilaterais (PPAs) com geradores, diversificar fontes (solar, eólica, hídrica, biomassa), acessar energia certificada (I-RECs) e, cada vez mais, integrar soluções de armazenamento e produção limpa.

O novo passo — e o que diferencia líderes como Motiva — é internalizar o conhecimento e o poder de decisão que antes eram terceirizados para comercializadoras e consultorias. Criar uma unidade própria, com governança corporativa e visão de portfólio, é o caminho natural para empresas que querem dominar seu próprio destino energético.

O novo portfólio energético corporativo: geração, armazenamento e hidrogênio

Com a democratização do ACL, a gestão energética corporativa evolui para um modelo modular e tecnológico. As empresas podem, agora, construir portfólios de geração próprios ou híbridos, combinando ativos tradicionais e emergentes.

Três vetores se destacam:

  1. Autoprodução e PPAs renováveis – contratos de longo prazo com parques solares e eólicos oferecem estabilidade e previsibilidade de preço. O custo de oportunidade de permanecer no mercado cativo se tornou proibitivo.
  2. Armazenamento (BESS) – a adoção de baterias corporativas de grande escala começa a se viabilizar economicamente. Elas permitem suavizar picos de demanda, armazenar excedentes e participar ativamente do mercado de serviços ancilares.
  3. Hidrogênio verde – embora ainda incipiente, o hidrogênio entra no horizonte de médio prazo como vetor de descarbonização profunda e nova forma de monetização da energia renovável excedente.

Essas três tecnologias, quando coordenadas dentro de uma estratégia corporativa, reduzem barreiras de entrada para inovação e criam uma matriz resiliente, flexível e com potencial de retorno financeiro.

Tabela 1 – Arquitetura do portfólio energético corporativo

ComponenteFunção EstratégicaHorizonte de RetornoValor Agregado
Geração Renovável (PPA / Autoprodução)Estabilidade de custo e previsibilidade contratualCurto / Médio prazoRedução direta de custo e certificação ESG
BESS (Battery Energy Storage System)Armazenamento e otimização da curva de demandaCurto / Médio prazoRedução de picos, participação no mercado de capacidade
Hidrogênio VerdeVetor de descarbonização e exportação de energiaMédio / Longo prazoNovo produto energético e potencial de receita futura
Comercializadora InternaGestão integrada e trading corporativoCurto prazoGovernança, margem e eficiência de portfólio
Certificados de Energia (I-RECs / Créditos de Carbono)Monetização e reputação ESGCurto prazoAcesso a capital verde e melhoria de valuation

Da eficiência à soberania energética

Quando a Motiva cria uma comercializadora, ela inaugura uma nova lógica empresarial: a da soberania energética corporativa.

Não se trata mais de buscar eficiência marginal, mas de construir autonomia.

As empresas que dominam sua energia não dependem de políticas tarifárias, não estão à mercê de bandeiras vermelhas, e podem planejar sua expansão industrial com previsibilidade.

O ponto mais relevante é que o controle energético cria uma ponte entre eficiência operacional e estratégia financeira.

Uma comercializadora interna é também um centro de arbitragem de valor — capaz de negociar excedentes, gerenciar certificados e operar de forma dinâmica conforme o mercado.

O resultado é um modelo de negócios onde energia deixa de ser custo e se torna plataforma de valor.

O fator tecnológico: energia como software corporativo

O avanço da digitalização do setor elétrico — com medidores inteligentes, automação, inteligência artificial e blockchain — transforma energia em sistema informacional.

Empresas que internalizam a gestão energética começam a tratá-la como tratam seus sistemas de TI: com dados, dashboards e decisões baseadas em inteligência.

A próxima fronteira está na integração de dados energéticos à governança corporativa.

Conselhos de administração começam a acompanhar indicadores como “ROI energético”, “custo marginal evitado” e “pegada de carbono evitada”.

A energia, portanto, deixa de ser uma variável técnica para tornar-se um indicador de performance estratégica.

Tabela 2 – Indicadores-chave da nova governança energética

IndicadorDescriçãoBenefício Estratégico
Custo Total de Energia (R$/MWh)Valor consolidado de geração, compra e gestãoControle de margem e previsibilidade
ROI EnergéticoRetorno sobre investimentos em energia própriaAlinhamento financeiro com metas ESG
% Matriz RenovávelProporção de consumo de fontes limpasAcesso a capital verde e reputação
Energia Armazenada / DisponívelCapacidade de resiliência operacionalEstabilidade e otimização de demanda
CO₂ Evitado (t/ano)Indicador de impacto ambiental diretoCompliance regulatório e imagem institucional

Os novos dilemas dos conselhos

O desafio agora é cultural e institucional.

A energia precisa sair das planilhas de suprimentos e entrar nas pautas de conselho.

Discutir energia, hoje, é discutir competitividade, valuation e perenidade.

Conselhos que enxergam a energia apenas como despesa estão, de fato, ignorando um ativo estratégico que define o custo de capital, o rating ESG e a atratividade para investidores institucionais.

O dilema dos conselheiros contemporâneos é compreender que a descarbonização não é apenas uma meta ambiental, mas um modelo de governança de valor.

De consumidores a players: a transformação do papel corporativo

As empresas do futuro não comprarão energia — elas operarão energia.

O modelo de negócio se torna híbrido: parte produtora, parte gestora, parte comercializadora.

Essa tríade redefine o conceito de “empresa eletrointensiva”, que passa a ser também empresa energeticamente inteligente.

A fronteira entre indústria e utility está se dissolvendo.

Motiva e Votorantim são apenas as primeiras expressões de um novo tipo de corporação:

a que entende que seu poder competitivo nasce do controle do fluxo energético que sustenta suas operações.

O papel do hidrogênio verde: o médio prazo já começou

O hidrogênio verde ainda é visto por muitos como promessa distante, mas já está no planejamento energético das corporações que pensam em 2030–2040.

Seu valor não está apenas na substituição do gás natural ou em exportação futura, mas na integração com o portfólio renovável: ele atua como forma de armazenamento químico, permitindo monetizar excedentes e ampliar a flexibilidade da matriz.

Empresas que dominam energia renovável e comercialização estarão naturalmente posicionadas para capturar esse mercado.

O investimento em aprendizado e estrutura agora é o ingresso para o futuro energético do país.

Conclusão: energia é poder corporativo

O que estamos presenciando é uma transformação silenciosa, mas radical.

A energia deixou de ser commodity e tornou-se instrumento de poder corporativo.

A Motiva é o caso mais visível dessa virada — um símbolo de que o eixo estratégico das empresas está se deslocando do produto para o insumo.

O mesmo caminho está aberto para todas as indústrias eletrointensivas do país.

Quem internalizar energia agora não apenas reduzirá custos — criará vantagem estrutural.

Quem esperar, se verá dependente de estruturas tarifárias e tecnologias que não domina.

A história corporativa é cíclica: os que primeiro compreenderam o papel transformador da tecnologia lideraram o século XX.

Os que primeiro compreenderem o papel transformador da energia liderarão o XXI.

A questão, portanto, não é mais se as empresas devem internalizar energia, mas se terão coragem de fazê-lo antes que o mercado as obrigue.

Chamada à ação

O Tech & Energy Think Tank  assessora conselhos e alta gestão em diagnósticos estratégicos sobre autonomia energética corporativa, estruturação de comercializadoras internas, integração de BESS e hidrogênio verde, e valuation de portfólios renováveis.

Empresas que dominam sua energia dominam seu futuro.

A hora de agir é agora.