Introdução – O nó da geração solar na dinâmica energética brasileira
O Estadão publicou em 6 de outubro de 2025 uma reportagem sobre a crescente complexidade da operação do sistema elétrico brasileiro, causada pelo avanço acelerado da geração distribuída, especialmente da energia solar.
O texto trouxe análises do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) e de especialistas que alertam para fluxos reversos, sobrecarga nas redes e desequilíbrios entre oferta e demanda.
Hoje, o Brasil ultrapassa 42 GW de potência instalada em geração solar distribuída, somando micro e minigeração conectadas à rede. Esse avanço coloca o país entre os líderes mundiais, mas também expõe desafios: quanto mais descentralizada se torna a matriz, mais difícil é coordenar fluxos, garantir estabilidade e manter previsibilidade regulatória.
Entre as soluções em debate está a criação dos Operadores de Sistema de Distribuição (DSO – Distribution System Operators), que teriam a função de coordenar fluxos regionais e integrar novas fontes renováveis de forma técnica e neutra.
Por trás desse debate técnico, há uma questão mais profunda: a necessidade de modernizar a governança do setor elétrico brasileiro, tornando-a mais técnica, digital e orientada por dados.
1. O paradoxo da transição energética
A transição energética brasileira é motivo de orgulho.
Com mais de 80% da matriz elétrica proveniente de fontes renováveis, o país está à frente de nações desenvolvidas na descarbonização da energia.
Mas o sucesso tem um custo.
A expansão da geração distribuída — especialmente solar — aconteceu mais rápido do que a capacidade do sistema de absorver essa energia de forma eficiente e previsível.
O modelo de compensação atual, que incentiva o investimento individual em painéis solares, não precifica adequadamente os custos sistêmicos de reforço das redes, reserva de capacidade e serviços de estabilidade.
Na prática, isso cria uma distorção: os benefícios da energia solar são amplos, mas parte do custo de integração é socializado entre todos os consumidores.
Esse é o paradoxo da transição: quanto mais limpa e descentralizada a matriz, maior a complexidade técnica e econômica para manter o sistema em equilíbrio.
O desafio é garantir que o avanço da inovação não comprometa a confiabilidade da rede — o verdadeiro ativo do setor elétrico brasileiro.
2. O papel das instituições e a importância da previsibilidade
Um sistema elétrico não se sustenta apenas em usinas, linhas e cabos.
Sua solidez depende de instituições técnicas fortes, com autonomia e previsibilidade.
O Brasil construiu uma base respeitável nesse campo. O ONS e a ANEEL são reconhecidos pela competência técnica e pela solidez dos processos regulatórios.
Mas o cenário atual — mais digital, distribuído e dinâmico — exige um novo modelo institucional.
A transição energética em curso pede instituições mais ágeis, interconectadas e orientadas por dados.
A previsibilidade das decisões regulatórias é o que garante confiança de longo prazo a investidores e operadores.
Sem ela, o risco aumenta, o capital encarece e o ritmo de inovação diminui.
A modernização do sistema elétrico brasileiro deve, portanto, colocar a governança institucional no centro da estratégia.
O país precisa de regras estáveis, transparentes e tecnicamente embasadas — e de agências que atuem com independência e mérito técnico, livres de pressões conjunturais.
3. O ponto cego: coordenação e inteligência sistêmica
O verdadeiro gargalo do sistema elétrico brasileiro não está na geração, mas na coordenação entre geração, transmissão, armazenamento e consumo.
O modelo atual foi concebido para fluxos unidirecionais — da usina para o consumidor.
Agora, o fluxo é bidirecional: cada casa, empresa ou fazenda pode ser também um ponto de geração.
Isso transforma a rede elétrica em um sistema vivo, que precisa ser monitorado e ajustado em tempo real.
A solução está na digitalização e automação da operação.
O uso de dados, inteligência artificial e sistemas preditivos pode evitar sobrecargas, antecipar falhas e otimizar o uso da infraestrutura existente.
Nesse contexto, a proposta de criação de Operadores de Sistema de Distribuição (DSO) faz sentido técnico.
Esses operadores regionais atuariam como “mini-ONS”, coordenando a inserção das novas fontes e garantindo a estabilidade local.
Mas, para que isso funcione, é fundamental que a estrutura seja neutra, tecnicamente qualificada e baseada em interoperabilidade digital.
Modernizar o sistema elétrico brasileiro significa integrar inteligência, dados e governança técnica — não apenas adicionar megawatts à matriz.
4. Quatro pilares para a próxima década
A transformação do setor elétrico brasileiro deve se apoiar em quatro pilares estratégicos que combinem tecnologia, governança e formação técnica.
1️⃣ Planejamento energético baseado em dados
O planejamento deve se tornar cada vez mais analítico.
Modelagens preditivas, simulações de fluxo e integração de dados em tempo real precisam ser parte do processo decisório.
Planejar com base em dados é o primeiro passo para equilibrar inovação e confiabilidade.
2️⃣ Revisão regulatória adaptativa e transparente
A regulação precisa acompanhar o ritmo da tecnologia.
Revisões periódicas, consultas públicas efetivas e regras adaptativas são essenciais para que o sistema evolua sem rupturas.
A transparência é o que transforma ajustes regulatórios em confiança institucional.
3️⃣ Autonomia técnica e meritocracia institucional
As decisões do setor elétrico devem continuar sendo técnicas, não políticas.
A autonomia das agências e operadores é a base da estabilidade do sistema.
Instituições que decidem com base em mérito e dados são as que atraem investimentos e garantem equilíbrio de longo prazo.
4️⃣ Formação executiva e tecnológica contínua
O novo sistema elétrico exige profissionais preparados para lidar com automação, armazenamento, inteligência artificial e redes inteligentes.
Investir na formação técnica e executiva é investir na sustentabilidade institucional do setor.
Esses quatro pilares formam a espinha dorsal da modernização do sistema elétrico brasileiro, equilibrando eficiência econômica, inovação e segurança operacional.
5. Inovação com equilíbrio: o desafio da maturidade
O sistema elétrico brasileiro é reconhecido pela sua diversidade e robustez.
Mas, na era digital, manter a confiabilidade exigirá maturidade institucional e inteligência regulatória.
O país precisa avançar de um modelo de controle centralizado para uma governança distribuída e baseada em dados.
A inovação tecnológica é importante, mas a verdadeira transformação ocorrerá quando dados, instituições e decisões técnicas estiverem plenamente integrados.
O Brasil reúne todas as condições para liderar a transição energética global:
recursos naturais abundantes, uma base técnica sólida e um histórico de excelência em engenharia e regulação.
O próximo passo é garantir que esses ativos estejam alinhados sob uma visão estratégica única, com foco em eficiência, neutralidade e transparência.
A governança energética deve ser tratada como infraestrutura nacional.
Sem decisões previsíveis e baseadas em evidências, o país corre o risco de comprometer a segurança e a modicidade tarifária — dois pilares históricos do setor.
Conclusão – Governar a energia com dados e confiança
O Brasil vive um momento decisivo.
A modernização do sistema elétrico é mais do que uma pauta técnica: é uma questão de competitividade e segurança nacional.
Cada decisão regulatória e cada inovação tecnológica impactam diretamente milhões de consumidores e bilhões em investimentos.
A nova era da energia será digital, descentralizada e inteligente.
Mas para que também seja sustentável, precisa ser governada por instituições fortes, decisões previsíveis e regulação baseada em evidências.
O desafio não é apenas modernizar o setor elétrico — é reformular a governança para um mundo movido a dados.
Mais do que subsídios, o setor precisa de inteligência, integridade e visão de longo prazo.
O futuro do sistema elétrico brasileiro será definido não apenas pela energia que produz, mas pela qualidade técnica e ética de suas decisões.
