O setor elétrico brasileiro atravessa, em 2025, uma inflexão histórica. Com uma matriz predominantemente renovável — 88,2% da geração elétrica em 2024 — o Brasil ocupa posição de destaque global na transição energética. No entanto, sob essa superfície virtuosa, emergem desequilíbrios estruturais que colocam em xeque a sustentabilidade técnica, econômica e regulatória do modelo vigente. A recente intensificação do fenômeno conhecido como curtailment (desperdício de energia renovável por restrições operacionais) escancara uma contradição cada vez mais evidente: o país avança na oferta de energia limpa, mas sem o correspondente preparo em infraestrutura de transmissão, armazenamento e planejamento sistêmico.
Esse descompasso entre crescimento acelerado da geração intermitente — notadamente solar e eólica — e a ausência de coordenação com a rede elétrica nacional tem gerado gargalos e riscos que afetam consumidores, investidores e formuladores de política pública. A expansão não coordenada da geração distribuída, os impactos climáticos cada vez mais frequentes e a crescente demanda de datacenters e eletromobilidade impõem novos desafios ao Sistema Interligado Nacional (SIN), cuja resiliência depende de ajustes profundos e urgentes.
A história econômica mundial oferece paralelos valiosos. Momentos de euforia tecnológica e de expansão acelerada — como a Tulipomania (1637), a Crise do Encilhamento (1890), a Bolha da Internet (2000) e a Crise Energética de 2001 — evidenciam que a ausência de fundamentos sólidos, regulação eficiente e sinalizações de longo prazo tende a culminar em ciclos de frustração, desperdício e retrocesso. Ao lançar luz sobre essas lições históricas e aplicar uma lente técnica aos dados recentes do ONS, EPE, ANEEL e AIE, este artigo propõe uma leitura fundamentada do presente e, principalmente, a construção de cenários prospectivos para o setor elétrico brasileiro até 2035.
A seguir, serão analisadas em quatro partes: (1) as lições históricas aplicáveis; (2) a situação atual com base nos dados de 2024 e 2025; (3) cenários futuros possíveis; e (4) recomendações estratégicas específicas para empresas, reguladores, investidores e startups. O objetivo é oferecer um diagnóstico robusto e isento, que contribua para decisões estruturantes em um momento crítico da transição energética nacional.
Parte 1: Revisão Didática de Crises Históricas Relevantes
A história econômica global está marcada por ciclos de euforia e colapso, nos quais o descolamento entre expectativa e realidade acaba revelando desequilíbrios estruturais. O primeiro grande episódio desse tipo foi a Tulipomania, ocorrida na Holanda em 1637. Durante esse período, o mercado de bulbos de tulipa — então uma novidade exótica — foi inflacionado por uma onda de especulação irracional. Os preços dispararam sem qualquer relação com valor produtivo ou utilitário, baseados apenas na expectativa de revenda futura com lucro. Quando a confiança evaporou, o colapso foi abrupto, deixando investidores arruinados. Foi a primeira “bolha” registrada da história moderna e serve até hoje como metáfora para ativos sem lastro real.
No Brasil, pouco mais de dois séculos depois, vivenciamos uma crise de natureza similar: a Crise do Encilhamento (1889–1892). Durante a transição do Império para a República, o governo adotou uma política agressiva de expansão monetária para fomentar a industrialização. Estimulados por crédito farto e regulação frouxa, surgiram inúmeras empresas e bancos — muitos sem viabilidade econômica. O resultado foi inflação, perda de confiança no sistema financeiro e colapso de empreendimentos artificiais. A lição foi clara: políticas expansionistas descoordenadas, sem critério técnico, criam bolhas artificiais e instabilidade duradoura.
A Crise de 1929 aprofundou globalmente essa lição. Nos anos que antecederam a quebra da Bolsa de Nova York, os mercados financeiros viviam uma euforia especulativa alimentada por crédito fácil, ausência de regulação e valorização irreal de ativos. O estouro da bolha levou a uma depressão econômica mundial, com falências em massa, desemprego e retração de investimentos. O episódio consolidou a percepção de que mercados livres precisam de marcos regulatórios sólidos, especialmente em setores estratégicos como infraestrutura e energia.
Já nos anos 1970, a Crise do Petróleo de 1973 mostrou que não apenas as bolhas especulativas, mas também a dependência geopolítica podem gerar disrupções severas. O embargo imposto pela OPEP contra países ocidentais causou escassez de petróleo e uma escalada nos preços internacionais. O Brasil, à época fortemente dependente da importação de petróleo, respondeu com uma política industrial arrojada: criou o Programa Nacional do Álcool (Proálcool) em 1975, incentivando o uso de etanol como alternativa à gasolina. Esse programa estruturou uma cadeia de biocombustíveis ainda hoje relevante, colocando o país em posição de liderança mundial no setor. A lição: crises podem ser catalisadoras de inovação e autossuficiência quando enfrentadas com visão estratégica.
Entrando no século XXI, a Crise Energética da Califórnia (2000–2001) expôs os riscos da liberalização mal planejada do setor elétrico. Após a desregulamentação do mercado, surgiram falhas nos mecanismos de leilão e empresas manipularam a oferta, gerando artificialmente escassez e aumento de tarifas. O resultado foram blecautes, judicializações e reformas emergenciais. A experiência californiana serve de alerta para o Brasil, que caminha para a abertura total do mercado livre de energia em 2026: sem coordenação institucional e governança robusta, liberalizações podem comprometer a confiabilidade do sistema.
Na mesma época, a euforia com o avanço da tecnologia digital resultou na chamada Bolha da Internet (1995–2000). Milhares de startups surgiram com valuations bilionários, baseados em projeções otimistas, sem que muitas sequer gerassem receita. Quando a realidade se impôs, o estouro da bolha levou à falência da maioria das “dot-coms”, consolidando apenas as empresas com modelo de negócios sólido. A lição fundamental: disrupção tecnológica exige ancoragem econômica — algo que se aplica à transição energética atual, onde várias integradoras de energia solar e startups verdes correm risco semelhante caso não construam bases financeiras e operacionais sustentáveis.
Mais recentemente, a Crise Imobiliária Global de 2008 foi um marco da financeirização sem controle. Derivativos de hipotecas subprime foram vendidos globalmente sem transparência ou garantias reais, com lastros frágeis em ativos inflados. Quando os inadimplentes começaram a aumentar, o sistema inteiro colapsou, levando à falência de grandes instituições e a uma crise global. Esse episódio destacou como a ausência de regulação adequada, especialmente em mercados complexos, pode transformar desequilíbrios locais em colapsos sistêmicos.
A lição comum a todos esses eventos é clara: a combinação entre descompasso regulatório, euforia de mercado e ausência de fundamentos técnicos sólidos resulta invariavelmente em crises profundas. A história mostra que crescimento saudável requer planejamento, integração sistêmica e visão de longo prazo. No contexto do setor elétrico brasileiro, essa revisão histórica serve como um alerta: a transição energética deve ser conduzida com responsabilidade, evitando repetir padrões de desorganização, descolamento entre oferta e demanda e expansão sem infraestrutura. A oportunidade está posta — mas o risco de retrocesso também.
Parte 2: A Situação Atual do Setor Elétrico Brasileiro
O setor elétrico brasileiro apresenta, neste momento, um paradoxo estrutural: ostenta uma das matrizes elétricas mais limpas do mundo — com 88,2% da geração oriunda de fontes renováveis em 2024 —, mas enfrenta crescentes desafios operacionais, econômicos e regulatórios que comprometem sua eficiência e confiabilidade. A combinação entre expansão acelerada da geração intermitente, ausência de infraestrutura adequada e atrasos regulatórios tem gerado desequilíbrios críticos no Sistema Interligado Nacional (SIN).
O indicador mais visível dessa disfunção é o curtailment — ou seja, o desperdício de energia por impossibilidade de escoamento ou consumo. Em 2024, o volume de energia renovável “desligada” chegou a 4.330 GWh, segundo dados do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). Esse montante representa energia limpa, já gerada, mas que precisou ser descartada por falta de capacidade de transmissão ou baixa demanda no momento de produção. O fenômeno é particularmente acentuado no Nordeste, onde há forte incidência solar e eólica, mas infraestrutura de escoamento limitada e demanda industrial ainda concentrada no Sudeste.
A principal origem desse excesso está na expansão exponencial da micro e minigeração distribuída (MMGD), especialmente de sistemas solares fotovoltaicos instalados por consumidores residenciais, comerciais e rurais. Em 2024, a capacidade instalada de MMGD atingiu 38 GW, com previsão de crescimento para 58 GW até 2029, de acordo com projeções da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). Embora essa expansão represente um avanço em termos de democratização energética e transição para fontes limpas, ela tem ocorrido sem planejamento coordenado com a rede de distribuição e transmissão, gerando efeitos sistêmicos adversos, como distorções tarifárias, sobrecarga em transformadores locais e perda de estabilidade de frequência e tensão.
Para mitigar esses efeitos, uma das soluções mais debatidas é a adoção de sistemas de armazenamento de energia (BESS – Battery Energy Storage Systems), capazes de armazenar o excedente gerado nos horários de pico solar e disponibilizá-lo quando há maior demanda. A ANEEL já iniciou estudos regulatórios e há previsão de leilões de contratação de baterias para os próximos anos. No entanto, até o momento, não há um cronograma regular ou uma política nacional estruturada para integração em larga escala de BESS, o que mantém o setor em estado de inércia diante de um problema crescente.
Paralelamente, a pressão sobre a rede tende a se intensificar. Dois vetores adicionais se consolidam como forças estruturantes da próxima década: o crescimento da infraestrutura de datacenters e a eletrificação do transporte e da indústria. Datacenters, por serem ativos altamente eletrointensivos e com exigência de confiabilidade 24/7, ampliam a demanda contínua por energia firme e estável, muitas vezes concentrada em áreas urbanas. Já a eletrificação de frotas públicas, transporte de carga e processos industriais traz uma nova lógica de consumo que desafia os padrões tradicionais de carga, ao deslocar picos e criar novas exigências de balanceamento na rede.
Por fim, um fator que persiste como fragilidade estrutural do sistema brasileiro é a dependência da geração hidrelétrica, que ainda representa cerca de 60% da matriz elétrica. Embora seja uma fonte renovável e de baixo custo marginal, a hidroeletricidade é altamente vulnerável a eventos climáticos extremos, como secas prolongadas, agravadas por fenômenos como El Niño e La Niña. O início do período seco em junho de 2025 já acende alertas sobre a resiliência do SIN, que continua sem uma rede de backup suficientemente estruturada para enfrentar anos hidrológicos críticos.
A combinação desses elementos aponta para um diagnóstico claro: o Brasil vive uma expansão desarticulada da oferta, ancorada em fontes intermitentes e impulsionada por subsídios, sem o correspondente investimento em transmissão, armazenamento e digitalização da rede. A ausência de um sinal locacional que valorize a geração próxima à carga e a falta de instrumentos robustos de resposta à demanda agravam ainda mais esse quadro. Em síntese, o setor elétrico brasileiro necessita urgentemente de uma reconfiguração sistêmica, sob pena de repetir ciclos históricos de colapso após períodos de euforia tecnológica mal administrada.
Parte 3: Cenários Prospectivos para o Setor Elétrico Brasileiro (2025–2035)
Diante da complexidade estrutural do setor elétrico brasileiro e da sobreposição de fatores tecnológicos, climáticos, regulatórios e econômicos, é fundamental construir visões de futuro que ajudem empresas, formuladores de políticas públicas e investidores a se prepararem estrategicamente. Para isso, propõe-se aqui a construção de três cenários prospectivos baseados na análise de tendências atuais, inércias institucionais e possíveis decisões de política energética. Cada cenário apresenta uma narrativa plausível, não como previsão determinística, mas como instrumento de reflexão estratégica. São eles: A Travessia, O Engasgo e O Retorno do Fóssil.
Cenário 1: Ajuste Construtivo (“A Travessia”)
Este é o cenário mais virtuoso — e também o mais exigente em termos de coordenação institucional. Ele parte da premissa de que o Brasil reconhece os sinais de alerta do presente e responde com políticas públicas tecnicamente fundamentadas, baseadas em planejamento integrado, modernização regulatória e investimentos em infraestrutura crítica.
Nesse horizonte, a modernização regulatória se materializa com a definição clara de marcos legais para o uso de baterias, hidrogênio verde e firmabilidade de fontes intermitentes. A abertura do mercado livre de energia, prevista para 2026, é acompanhada por regras robustas para garantir estabilidade e previsibilidade, especialmente nos leilões de reserva de capacidade e nos contratos bilaterais. A expansão de sistemas de armazenamento de energia é viabilizada por mecanismos de remuneração adequados, o que permite a instalação de sistemas BESS em regiões de alto curtailment, reduzindo perdas e aumentando a confiabilidade da rede.
Ao mesmo tempo, as redes inteligentes e a digitalização tornam-se pilares do sistema elétrico nacional, possibilitando maior controle de fluxo, gerenciamento de demanda e integração de fontes diversas. Isso permite que as energias renováveis se conectem de forma eficaz à demanda real, sobretudo em setores estratégicos como indústrias eletrointensivas e datacenters, que se tornam âncoras de consumo em regiões de excedente renovável, como o Nordeste.
O resultado desse cenário é um setor equilibrado, competitivo e resiliente, que reduz encargos sistêmicos, atrai capital internacional de longo prazo e posiciona o Brasil como um protagonista energético global com credibilidade climática e estabilidade interna.
Cenário 2: Estagnação e Fragmentação (“O Engasgo”)
Este cenário representa a perpetuação das disfunções atuais, agravadas por ausência de coordenação estratégica entre os entes reguladores, os agentes de mercado e o Poder Executivo. Nele, o Brasil mantém o modelo atual de subsídios — especialmente à MMGD — sem ajustes estruturais, e não consegue avançar em uma política integrada de planejamento energético.
As decisões sobre novos projetos continuam sendo tomadas de forma fragmentada, com pouca integração entre geração, transmissão e consumo. A ausência de leilões regulares de armazenamento e de mecanismos claros para sinal locacional perpetua o aumento do curtailment. Ao mesmo tempo, o avanço da geração renovável sem firmabilidade força o acionamento recorrente de térmicas emergenciais, elevando os custos operacionais e pressionando as tarifas para consumidores cativos.
Nesse contexto, ocorre um aumento significativo na judicialização de contratos, especialmente envolvendo integradores solares que não conseguem cumprir garantias de desempenho, e consumidores que se sentem prejudicados por mudanças regulatórias bruscas. A percepção de risco regulatório afasta investimentos de longo prazo, especialmente internacionais, e impede a maturação do mercado de tecnologias emergentes como BESS e hidrogênio verde.
Em síntese, o sistema permanece funcional, mas perde dinamismo, competitividade e previsibilidade. O setor elétrico torna-se um gargalo ao crescimento econômico sustentável, e o Brasil perde fôlego como player energético estratégico.
Cenário 3: Recarbonização Estratégica (“O Retorno do Fóssil”)
Este cenário, mais pessimista, considera a possibilidade de colapso parcial da confiança nas renováveis, com retração dos investimentos por parte de grandes players, descontinuidade de projetos em curso e retração dos incentivos públicos. A crise de coordenação atinge níveis críticos e leva à paralisação de projetos de infraestrutura essenciais, como linhas de transmissão e hubs de exportação de hidrogênio.
Sem alternativas técnicas consolidadas para dar firmeza e previsibilidade ao sistema, o Brasil passa a reforçar a participação de fontes fósseis na matriz elétrica, com aumento da utilização de térmicas a gás natural e até revalorização de usinas a carvão em determinados polos industriais. O abandono de projetos renováveis mais frágeis, especialmente aqueles baseados em MMGD não estruturada, leva à falência de centenas de pequenas integradoras e ao abandono de milhares de sistemas subdimensionados, gerando passivos econômicos e jurídicos.
Neste ambiente, o país regride em suas metas climáticas, compromete sua imagem internacional e perde protagonismo na agenda de transição energética global — um tema particularmente sensível no contexto da COP30, sediada no Brasil em 2025. A busca por estabilidade energética se sobrepõe à pauta da sustentabilidade, e o discurso ESG passa a ceder espaço à lógica da segurança energética a qualquer custo.
Embora esse cenário possa parecer extremo, ele é tecnicamente plausível se não forem tomadas medidas urgentes e coordenadas entre os agentes públicos e privados. Ele serve como alerta para a importância de alinhar expectativas, políticas públicas e capacidade técnica.
Considerações Finais
A construção desses três cenários não pretende prever o futuro, mas sim munir os agentes do setor com ferramentas analíticas para tomarem decisões fundamentadas. O caminho a ser trilhado dependerá da capacidade do país em transformar conhecimento técnico, visão estratégica e coordenação institucional em ações concretas. O futuro do setor elétrico brasileiro pode ser de liderança global — ou de perda de relevância — e essa bifurcação começa a ser decidida agora.
Parte 4: Recomendações Técnicas por Tipo de Ator
A construção de um setor elétrico mais eficiente, resiliente e alinhado com as exigências do século XXI depende de ações coordenadas por parte de todos os atores envolvidos: empresas operacionais, startups e integradores, formuladores de políticas públicas, agências reguladoras, investidores e instituições financeiras. Cada um possui um papel técnico específico a desempenhar, e a adoção de posturas proativas, baseadas em evidências e com foco sistêmico, será essencial para evitar o agravamento de riscos já evidenciados no cenário atual.
Empresas de Energia
As grandes empresas geradoras, transmissoras, distribuidoras e comercializadoras de energia — sejam públicas ou privadas — estão na linha de frente da operação do sistema elétrico nacional. Em um contexto marcado por instabilidade regulatória, excesso de oferta intermitente e incertezas climáticas, torna-se imprescindível a adoção de estratégias de gestão de risco e priorização de investimentos em projetos robustos.
A primeira medida essencial é a avaliação contínua dos riscos regulatórios e da exposição ao curtailment. Empresas devem incorporar, em seus modelos de precificação e retorno, não apenas os custos tradicionais de geração ou transmissão, mas também os riscos de não despacho, as variações de mercado e a imprevisibilidade jurídica — sobretudo no ambiente de contratos legados e transições regulatórias em andamento.
Além disso, é prioritário que essas empresas concentrem seus investimentos em ativos com integração sistêmica e capacidade de fornecimento firme. Isso significa priorizar usinas híbridas (eólica + solar + BESS), usinas com contratos lastreados e infraestrutura com papel de estabilização do sistema (ex.: subestações digitais, sistemas de controle dinâmico). Firmabilidade, previsibilidade e integração com a malha existente devem orientar a estratégia técnica e financeira do setor corporativo.
Startups e Pequenos Integradores
No atual ciclo de sobreoferta e pressão tarifária, startups e pequenos integradores enfrentam o maior grau de vulnerabilidade. Muitos atuam no setor de geração distribuída com margens estreitas, pouco capital circulante e dependência de modelos de financiamento sensíveis à variação de subsídios. Para permanecerem competitivos e relevantes, esses atores precisarão adotar estratégias de diferenciação tecnológica e reposicionamento de mercado.
A principal oportunidade está na especialização em soluções técnicas avançadas, como armazenamento de energia (BESS), resposta à demanda, eficiência energética integrada, redes locais inteligentes e sistemas de geração híbrida customizada. Ao deixar de competir apenas por preço e volume, essas empresas podem agregar valor técnico e oferecer produtos com maior resiliência às mudanças regulatórias.
Outra recomendação é a formação de alianças estratégicas com consumidores eletrointensivos, tais como datacenters, agronegócios e empreendimentos industriais de médio porte. Parcerias com esse perfil permitem a criação de soluções sob medida, com garantias de consumo e possibilidade de contratos bilaterais mais duradouros, inclusive com integração a microrredes locais.
Decisores Públicos e Agências Reguladoras
As autoridades públicas — Ministério de Minas e Energia (MME), Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Operador Nacional do Sistema (ONS) — têm papel determinante na construção de um arcabouço técnico-regulatório que favoreça o equilíbrio entre inovação, segurança energética e sustentabilidade.
A primeira ação recomendada é a publicação célere e clara de marcos regulatórios específicos para novas tecnologias, com destaque para armazenamento de energia, hidrogênio verde e reatores nucleares modulares (SMRs). Sem marcos técnicos bem definidos, o mercado permanece em suspensão, investidores recuam e a cadeia de fornecedores não se estrutura.
Simultaneamente, é urgente reorientar os subsídios e incentivos do setor, priorizando não o volume instalado, mas o impacto sistêmico positivo das tecnologias e projetos incentivados. Incentivos devem favorecer redução de curtailment, aumento de confiabilidade, ganho de eficiência operacional e modernização da infraestrutura, não apenas expansão desordenada da capacidade.
Investidores e Financiadores
Os agentes do mercado financeiro, fundos de investimento, bancos de fomento e gestoras de ativos desempenham papel cada vez mais estratégico no setor elétrico, seja via financiamento direto de projetos, seja via aquisição de ativos e modelagem de novas estruturas de mercado.
Em um cenário de incerteza técnica e regulatória, a principal recomendação é a reavaliação crítica dos modelos de risco utilizados para ativos intermitentes, principalmente aqueles sem contratos de longo prazo (PPAs) ou inseridos em regiões com altos índices de curtailment. A superexposição a esses ativos pode comprometer a performance de portfólios inteiros.
Em contrapartida, recomenda-se o fomento a projetos híbridos, com lastro físico comprovado e inserção em zonas técnicas prioritárias, preferencialmente associados a sistemas de digitalização, armazenamento e gerenciamento inteligente da carga. Esses ativos oferecem maior estabilidade de receita, segurança jurídica e resiliência operacional em médio e longo prazo.
Considerações Finais
As transformações que o setor elétrico brasileiro enfrenta não são pontuais nem passageiras — tratam-se de mudanças estruturais que exigem adaptação proativa, inteligência regulatória e convergência entre tecnologia, mercado e política pública. Cada ator tem um papel técnico e estratégico definido. O alinhamento entre esses papéis determinará se o país irá atravessar esta fase de transição como referência global ou como um exemplo de oportunidades perdidas.
Conclusão
O setor elétrico brasileiro encontra-se diante de uma encruzilhada histórica. O país possui uma matriz elétrica admirável sob a ótica da sustentabilidade — 88,2% renovável em 2024 —, além de recursos naturais excepcionais, expertise técnica consolidada e uma base industrial instalada que poderia alavancar o protagonismo do Brasil na transição energética global. No entanto, essas virtudes estruturais estão sendo pressionadas por um conjunto de fragilidades que emergem simultaneamente: a expansão descoordenada da geração intermitente, o crescimento do curtailment, os atrasos em regulação de tecnologias-chave (como baterias e hidrogênio verde), a dependência de uma infraestrutura de transmissão defasada e a crescente tensão entre metas climáticas e segurança energética.
Ao revisitar eventos históricos como o Encilhamento, a bolha da internet, a crise da Califórnia e o choque do petróleo, este artigo demonstrou que os padrões que levaram a colapsos setoriais no passado estão novamente presentes, embora sob novas roupagens. A lição fundamental é clara: quando o entusiasmo político ou tecnológico supera os fundamentos econômicos, regulatórios e sistêmicos, o risco de crise é latente. No setor elétrico, onde os efeitos de decisões mal calibradas se propagam por décadas, a prudência técnica deve sempre preceder o impulso oportunista.
As análises prospectivas apresentadas apontam que o futuro pode seguir por três caminhos amplamente distintos: um ajuste construtivo, que reposiciona o Brasil como potência energética confiável e inovadora; uma estagnação fragmentada, em que o sistema segue operando, mas com baixa previsibilidade e alto custo; ou uma reversão estrutural, com perda de protagonismo climático e reforço de fontes fósseis como reação ao colapso de confiança nas renováveis.
O que definirá qual desses futuros se materializará não será o acaso, mas sim a qualidade das decisões tomadas a partir de agora por cada ator envolvido. Empresas precisarão incorporar firmabilidade e resiliência em seus projetos. Startups e integradores deverão buscar diferenciação técnica e sinergia com a demanda real. Reguladores terão o desafio de construir marcos modernos, transparentes e aplicáveis. E investidores, por sua vez, deverão adotar critérios de risco mais alinhados com os desafios sistêmicos da próxima década.
Mais do que nunca, o setor elétrico exige pensamento de longo prazo, capacidade de antecipação e compromisso com a coerência técnica. A oportunidade de fazer da transição energética brasileira um exemplo de planejamento integrado e inovação responsável ainda está ao nosso alcance — mas não indefinidamente. O futuro começa com as escolhas do presente. E nesse setor, errar por excesso de pressa pode custar muito mais do que a lentidão: pode custar a confiança sistêmica, a credibilidade climática e a soberania energética nacional.