O mundo está mudando rapidamente sua matriz energética. Cada vez mais países estão trocando as grandes usinas movidas a carvão, gás ou óleo por fontes renováveis, como energia solar e eólica. Essa transformação é necessária para combater as mudanças climáticas e reduzir a poluição. Mas há um desafio técnico importante por trás dessa mudança: como manter a estabilidade da rede elétrica se as novas fontes de energia não funcionam como as antigas?
Vamos explicar isso de forma simples. A energia elétrica que chega até a sua casa precisa manter sempre uma frequência e uma tensão estáveis — no Brasil, por exemplo, usamos 60 Hz. Isso significa que a corrente alterna 60 vezes por segundo, de forma precisa e constante. Até pouco tempo atrás, quem fazia esse trabalho eram os grandes geradores rotativos, como os das usinas hidrelétricas e termelétricas. Eles funcionam como motores gigantes que giram sincronizados, mantendo o ritmo da rede elétrica. Quando há algum problema — como uma queda repentina de energia solar por causa de nuvens — esses geradores tinham “inércia” suficiente para absorver o impacto e manter a rede funcionando.
Porém, os painéis solares e as turbinas eólicas modernas não giram da mesma forma. A energia que produzem é convertida por um dispositivo eletrônico chamado inversor. O inversor transforma a energia gerada (em corrente contínua) na energia que usamos nas tomadas (corrente alternada). E é nesse ponto que surge a grande questão: como esses inversores conseguem manter a rede estável sem os antigos geradores girando?
A diferença entre inversores grid-following e grid-forming
Existem dois tipos principais de inversores, e entender a diferença entre eles é essencial para compreender o que está mudando nas redes elétricas.
- Inversores grid-following (seguidores da rede): são os mais comuns hoje em dia. Eles funcionam apenas se já existir uma rede elétrica operando. Eles “seguem” o sinal da rede — copiam a frequência e a tensão existentes — e injetam sua energia ali dentro. Se a rede cair, eles simplesmente desligam. Esses inversores são ótimos em redes onde há muitos geradores convencionais mantendo a estabilidade.
- Inversores grid-forming (formadores de rede): esses são a nova geração de inversores. Eles são capazes de criar uma referência própria de frequência e tensão. Isso significa que não precisam de uma rede existente para funcionar. Podem operar de forma isolada (como em uma ilha ou uma fazenda distante) e manter a estabilidade mesmo quando ocorrem variações bruscas no consumo ou na geração de energia. Eles imitam o comportamento dos antigos geradores girantes, fornecendo o que chamamos de inércia virtual.
Imagine que a rede elétrica seja como uma orquestra sinfônica. Os geradores tradicionais são os maestros, que mantêm o ritmo para todos os instrumentos. Os inversores grid-following são músicos que só tocam se ouvirem o maestro — se não houver maestro, eles ficam em silêncio. Já os inversores grid-forming são músicos que podem assumir o papel de maestro, mantendo o ritmo mesmo que os outros parem de tocar. Isso permite criar novas sinfonias energéticas, com mais liberdade, descentralização e sustentabilidade.
Um caso real: o projeto Amaala, na Arábia Saudita
Para mostrar que essa tecnologia não é mais apenas um conceito teórico, o site ESS News trouxe recentemente um exemplo prático. Na Arábia Saudita, um resort de luxo chamado Amaala está operando com 100% de energia renovável, sem estar conectado a nenhuma rede elétrica central. Isso é possível graças a uma combinação de:
- 125 megawatts (MW) de geração solar, que captam energia do sol durante o dia;
- 160 MW de baterias, com capacidade total de 760 megawatt-hora (MWh), que armazenam a energia para uso à noite ou em dias nublados;
- inversores grid-forming, fornecidos pela empresa chinesa Sungrow, que organizam e estabilizam todo o sistema elétrico do resort.
Segundo a Sungrow, o sistema está operando com total confiabilidade, demonstrando que os inversores grid-forming já superaram a fase experimental. Eles estão prontos para serem usados em larga escala, tanto em sistemas isolados quanto em redes interligadas.
Por que isso importa para o futuro da energia?
A adoção de inversores grid-forming representa uma virada de chave no setor elétrico mundial. À medida que usinas térmicas forem desligadas e mais energia vier de fontes renováveis, será cada vez mais difícil manter a rede estável com os métodos tradicionais. Precisamos de equipamentos que consigam assumir o papel dos antigos geradores girantes — e os inversores grid-forming foram projetados exatamente para isso.
Eles oferecem várias vantagens:
- Estabilidade e segurança: mesmo em casos de falhas ou variações abruptas de carga, conseguem manter a rede operando.
- Flexibilidade: funcionam tanto conectados à rede quanto em sistemas isolados.
- Rapidez de resposta: atuam em milésimos de segundo para corrigir problemas de frequência ou tensão.
- Compatibilidade com baterias: operam em conjunto com sistemas de armazenamento, criando redes inteligentes e eficientes.
- Redução de custos no longo prazo: apesar de mais caros inicialmente, diminuem a necessidade de infraestrutura pesada, como linhas de transmissão e subestações.
Claro, ainda há desafios. Um dos principais é a coordenação entre vários inversores grid-forming operando juntos, o que exige controles sofisticados e ajustes finos, como o uso de “impedância virtual” e algoritmos avançados de sincronização. Além disso, as regras e normas técnicas variam bastante entre países, o que obriga fabricantes a desenvolver soluções adaptáveis. Mesmo assim, empresas como a Sungrow, Siemens, SMA e Hitachi já estão apostando fortemente nessa linha.
Conclusão
A transição energética não é só sobre trocar carvão por sol. É também sobre repensar como a eletricidade é gerada, distribuída e controlada. Os inversores grid-forming são uma peça fundamental desse novo quebra-cabeça. Eles permitem que redes elétricas operem com mais renováveis, com mais autonomia e com menos dependência de grandes centrais. Em pouco tempo, esses dispositivos devem se tornar o novo padrão técnico em todo o mundo, substituindo os inversores antigos em novos projetos e reforçando sistemas existentes.
A boa notícia é que essa revolução já começou — e está funcionando. O futuro da energia será mais limpo, mais distribuído e mais inteligente. E, como vimos, será cada vez mais formado por inversores que não apenas seguem a rede, mas criam a rede.