Introdução
O mundo do trabalho está mudando mais rápido do que nunca. A inteligência artificial deixou de ser promessa futurista para se tornar realidade cotidiana em empresas de todos os setores. Ao mesmo tempo, jovens que estão ingressando no mercado já não enxergam a carteira assinada como destino inevitável. Eles buscam flexibilidade, autonomia e oportunidades globais — um contraste direto com o modelo tradicional de emprego que marcou o século XX.
Durante décadas, o emprego formal foi sinônimo de conquista. Garantiu estabilidade, segurança social e um caminho previsível de ascensão profissional. Mas esse paradigma, que fez sentido na era industrial, não consegue mais responder às transformações trazidas pela digitalização, pela economia de plataformas e, agora, pela inteligência artificial.
Esse artigo analisa por que o emprego formal está se tornando insuficiente, quais são os riscos de insistir em preservar apenas esse modelo e como empresas, escolas e governos podem se preparar para um novo pacto social. Mais do que uma ameaça, trata-se de uma oportunidade histórica para repensar o trabalho, equilibrando inovação, dignidade e futuro.
O legado da carteira assinada no Brasil
A carteira assinada se consolidou como um marco civilizatório no Brasil. Foi ela que garantiu estabilidade, previdência e benefícios trabalhistas em um país que, durante o século XX, ainda convivia com altos índices de informalidade. Representou não apenas um contrato, mas um símbolo de dignidade e inclusão social.
Esse modelo ajudou a estruturar a sociedade brasileira, permitindo que milhões de famílias construíssem planos de longo prazo: comprar uma casa, investir na educação dos filhos e até sonhar com uma aposentadoria. A CLT, criada em 1943, foi um passo histórico para equilibrar relações de poder entre patrões e empregados. Mas a mesma estrutura que deu sustentação no passado hoje mostra sinais claros de esgotamento diante das transformações tecnológicas.
Por que esse modelo se esgota com a inteligência artificial
A inteligência artificial é uma força de transformação comparável à eletrificação ou à internet. Ela automatiza tarefas antes exclusivas de humanos, redistribui papéis e acelera a criação de novos modelos de negócio. Nesse cenário, o paradigma da estabilidade contratual perde espaço.
As manchetes insistem em medir quantos empregos formais serão destruídos pela IA. Mas essa conta não captura o movimento mais profundo: a fragmentação do trabalho em atividades distribuídas, muitas vezes executadas sob demanda ou mediadas por plataformas digitais.
Jovens já não sonham com a carteira assinada
As novas gerações cresceram conectadas e sabem que o emprego fixo não é a única via de prosperidade. Para muitos, a carteira assinada é até sinônimo de limitação: horários rígidos, crescimento lento e falta de autonomia.
- Eles buscam flexibilidade de tempo e lugar, escolhendo projetos alinhados ao seu estilo de vida.
- Valorizam propósito e impacto, preferindo empresas ou causas que dialoguem com suas crenças pessoais.
- Aproveitam a globalização digital, atuando em projetos internacionais sem sair de casa.
O sonho não é estabilidade no mesmo formato dos pais, mas mobilidade e autonomia, mesmo que isso implique riscos.
Empresas ainda presas à lógica do passado
Apesar da transformação em curso, muitas empresas seguem operando sob a lógica da era industrial. Os processos seletivos continuam repletos de frases como “precisamos de alguém que vista a camisa” ou “que tenha sangue nos olhos”.
A dissonância com os jovens profissionais
Esse discurso de lealdade quase absoluta colide com a realidade. A juventude atual não se vê como “empregada vitalícia”, mas como parceira de projetos. Para eles, o engajamento não se mede pela permanência, mas pela contribuição concreta que podem oferecer em determinado ciclo.
Essa dissonância gera ruídos: as empresas querem estabilidade, mas não oferecem reciprocidade — reduzem equipes, terceirizam processos, contratam temporários. O jovem percebe essa contradição e responde com pragmatismo: engaja-se enquanto fizer sentido, mas não cria laços inquebráveis.
Educação ainda forma para empregos formais
A escola brasileira, em todos os níveis, ainda prepara jovens para uma lógica linear: estude, forme-se, consiga um emprego formal e siga carreira.
O descompasso entre ensino e mercado
Esse modelo gera um hiato entre expectativa e realidade. O mercado já exige competências como:
- empreendedorismo digital, para transformar ideias em negócios viáveis;
- gestão de múltiplos projetos, em vez de carreiras lineares;
- uso estratégico da IA, como ferramenta de produtividade e criatividade.
Enquanto isso, as universidades continuam entregando currículos padronizados e avaliações que valorizam memorização mais do que pensamento crítico. Essa desconexão torna a transição para o novo paradigma ainda mais desafiadora para os jovens.
Atividades que permanecerão no modelo clássico
Nem todas as funções podem ser absorvidas pela lógica flexível ou automatizada. Existem setores em que a presença humana e o vínculo formal ainda são indispensáveis.
Setores que continuarão formais
- Saúde: enfermeiras, médicos e equipes hospitalares precisam de estabilidade para garantir continuidade no atendimento e treinamento constante.
- Infraestruturas críticas: operadores de energia, metrô e telecomunicações carregam responsabilidades de segurança, exigindo protocolos e contratos estáveis.
- Serviços essenciais: logística básica, saneamento e manutenção industrial demandam confiança institucional e mão de obra dedicada.
Essas áreas mostram que o futuro será híbrido: parte flexível e digital, parte tradicional e formal, sempre em função da natureza do trabalho.
Riscos de insistir em preservar apenas o modelo antigo
Manter a obsessão pela carteira assinada como única medida de dignidade pode ter efeitos colaterais.
Precarização invisível: milhões de trabalhadores já atuam sem direitos, mas permanecem fora das estatísticas porque não se encaixam no regime formal.
- Concentração de riqueza: a IA aumenta a produtividade das big techs, mas sem mecanismos de redistribuição os ganhos não chegam à base da pirâmide.
- Defasagem regulatória: legislações antigas não cobrem freelancers digitais, criadores de conteúdo, motoristas de apps ou programadores de IA que trabalham por projeto.
Esses riscos não podem ser ignorados, sob pena de gerar novas desigualdades e exclusão social.
Caminhos estratégicos para o novo pacto social
O desafio não é abolir o emprego formal, mas reconhecer sua limitação e complementar com novas soluções. Algumas direções são inevitáveis:
- Benefícios portáteis: saúde, previdência e seguro que acompanhem a pessoa, independentemente do vínculo.
- Educação contínua: um sistema que ensine não apenas conteúdos, mas também como aprender de forma permanente.
- Fomento ao empreendedorismo jovem: acesso a crédito, mentorias e incubadoras para transformar ideias em negócios.
- Segurança social inovadora: novas formas de proteção, como renda mínima ou seguros para múltiplas atividades.
- Empresas visionárias: adoção da IA não só para cortar custos, mas para criar mercados, produtos e novas oportunidades de trabalho.
Esses caminhos não eliminam o passado, mas constroem uma ponte para o futuro.
Conclusão: o futuro do trabalho é híbrido
O emprego formal foi um pilar essencial no século XX, mas não será suficiente no século XXI. O futuro do trabalho dos jovens será híbrido, misturando empregos estáveis em setores críticos com trabalhos flexíveis, digitais e globais.
O desafio não está em salvar a carteira assinada, mas em garantir que cada jovem encontre oportunidades de prosperar em qualquer formato de trabalho. Isso exige um novo pacto social, capaz de valorizar o legado histórico, mas também de criar soluções para um mundo em que a inteligência artificial redefine continuamente o que significa trabalhar.