Este artigo não questiona o avanço das energias renováveis. Ele defende sua consolidação com base em racionalidade técnica, estabilidade econômica e transparência regulatória — para que a transição energética brasileira continue sólida e sustentável.
1. Introdução — O excesso de virtude também exige disciplina
Toda grande transformação nasce de boas intenções — e de riscos mal percebidos.
Nos anos 2000, vivemos a bolha das dotcoms: empresas sem lucro valendo bilhões.
Em 2008, a euforia dos subprimes prometia casas para todos, até o colapso financeiro.
Em ambos os casos, a lição é clara: o entusiasmo sem racionalidade destrói valor.
Hoje, o Brasil vive um dilema semelhante no setor elétrico.
A transição energética é inevitável, mas vem sendo conduzida com euforia e pouca disciplina econômica.
O propósito deste artigo não é contestar a energia limpa, e sim defendê-la de seus próprios excessos, evitando que o otimismo vire instabilidade.
2. O paradoxo da abundância
O Brasil se orgulha — com razão — de ter uma matriz majoritariamente renovável.
Mas quando há excesso de oferta e falta de planejamento, até a virtude se torna problema.
Segundo o Instituto Acende Brasil, o país perdeu R$ 3,85 bilhões em agosto de 2025 com energia gerada e não aproveitada.
O Estadão, em editorial de 8 de outubro de 2025, resumiu bem:
“O governo perdeu o controle do setor elétrico, permitindo a manutenção de subsídios e a expansão sem planejamento da capacidade instalada.”
Geramos energia limpa, mas sem rede, sem armazenamento e sem mercado para escoar.
É o paradoxo da abundância: muito megawatt, pouco valor.
3. O risco moral e o desequilíbrio do incentivo público
Em uma economia madura, o investidor assume o risco e o governo garante as regras.
Mas o modelo brasileiro inverte essa lógica: o risco é público e o retorno é privado.
Contratos de disponibilidade, isenções fiscais e compensações tarifárias criam o que os economistas chamam de risco moral — a sensação de que o Estado sempre vai socorrer o investidor.
Esse tipo de distorção foi o gatilho das bolhas de 2000 e 2008.
No setor elétrico, ela se manifesta em investimentos apressados, estímulos sem contrapartida e subsídios permanentes, que enfraquecem a eficiência do mercado.
4. Data centers: promessa digital, retorno incerto
A MP 1318, que prevê R$ 7,5 bilhões em incentivos fiscais para atrair data centers movidos a energia “verde”, é o exemplo mais recente desse modelo disfuncional.
O argumento é sedutor: associar tecnologia à sustentabilidade.
Mas na prática, data centers são indústrias de custo, não de impacto social.
Eles se instalam onde a energia é barata e estável — e saem quando os incentivos acabam.
Um workload pode ser transferido de país em minutos.
Sem condições estruturais — transmissão confiável, energia firme e regulação estável —, o Brasil subsidia operações temporárias com recursos permanentes.
5. Intermitência: a realidade física que a retórica ignora
A geração eólica e solar é vital, mas intermitente.
Nem o sol brilha 24 horas, nem o vento sopra todos os dias.
Por isso, o sistema precisa de fontes firmes e despacháveis, capazes de garantir energia quando as renováveis não entregam.
No Brasil, essa função recai sobre as hidrelétricas e térmicas.
As hidrelétricas são o pulmão do sistema, mas dependem de chuvas, que estão cada vez mais irregulares.
Quando há estiagem — e elas são mais frequentes —, são as térmicas que sustentam o sistema.
Demonizá-las é um erro técnico e político.
Elas não são o oposto da energia limpa, e sim parte da solução de equilíbrio.
Em tom de ironia, costuma-se dizer que quem rejeita as térmicas está “fazendo lobby para a indústria de velas”.
6. O papel estratégico do gás natural e o futuro híbrido com o hidrogênio verde
Se há uma fonte capaz de unir estabilidade, eficiência e transição, é o gás natural.
Ele é abundante, flexível e compatível com o avanço das renováveis.
O Brasil possui reservas significativas de gás, tanto em terra quanto no pré-sal, e tem acesso logístico privilegiado às rotas de importação da Bolívia, Argentina e Guiana.
Com o gás natural liquefeito (GNL) se tornando mais acessível e os gasodutos regionais retomando viabilidade, o país pode ampliar sua base térmica sem comprometer metas ambientais.
Mais do que uma solução de curto prazo, o gás é o elo de transição.
As térmicas modernas já operam com misturas progressivas de hidrogênio verde, reduzindo emissões e preparando o sistema para um futuro neutro em carbono.
Essa hibridização — Gás + H₂V — representa o caminho mais inteligente entre o pragmatismo e a sustentabilidade.
Permite manter o sistema estável enquanto se investe em novas tecnologias de geração e armazenamento.
Em resumo: o gás natural não é o inimigo da transição; é seu alicerce técnico e econômico.
7. O custo invisível dos subsídios
A expansão desordenada também tem um preço silencioso.
Isenções e incentivos tarifários criam distorções que acabam transferindo o custo para o consumidor comum.
A isenção para quem consome até 80 kWh/mês, por exemplo, tem forte apelo político, mas redistribui custos de forma desigual.
O mesmo vale para benefícios de autoprodução e descontos em TUST/TUSD.
Essas medidas desbalanceiam o sistema: uns pagam menos, outros pagam por todos.
O resultado é uma energia aparentemente barata, mas sustentada por encargos crescentes e ineficiência sistêmica.
8. A ilusão da “energia verde barata”
Em “O custo real da energia para os data centers” (22/09/2025), o economista Luiz Maurer detalha o equívoco da energia 100% renovável sem backup firme.
Quando há curtailment de 30%, o custo de um PPA solar de US$ 30/MWh sobe para US$ 43/MWh.
E quando é preciso comprar energia térmica em períodos críticos, o preço pode chegar a US$ 500/MWh.
A energia continua limpa, mas deixa de ser barata.
Sem considerar o custo marginal da segurança elétrica, o discurso da energia verde se transforma em uma ficção econômica.
9. Populismo energético e o risco institucional
Ao transformar energia em plataforma de popularidade, o governo corre o risco de politizar a transição energética.
Subsídios permanentes e incentivos sem métrica criam incerteza e afastam o investimento produtivo.
O capital não teme o risco — teme a imprevisibilidade.
E o setor elétrico, cada vez mais, se move num ambiente em que as regras mudam ao sabor do ciclo político.
Essa erosão institucional é mais perigosa que o déficit energético: sem confiança, não há investimento de longo prazo.
10. O ciclo de uma bolha energética
O comportamento do setor repete o padrão clássico de uma bolha econômica:
Etapa
Sinais visíveis
Euforia
Expansão acelerada, retórica de autossuficiência, excesso de subsídios.
Descolamento
Geração maior que transmissão e custos mascarados.
Correção
Revisão regulatória, aumento de tarifas e retração de investimentos.
Ainda há tempo de agir — mas a janela é curta.
Toda bolha nasce de um excesso de virtude sem disciplina técnica e fiscal.
11. Caminhos para uma transição racional
A transição verde deve ser sustentável — tecnicamente, economicamente e institucionalmente.
Isso exige três compromissos centrais:
Planejamento sistêmico: geração, transmissão e demanda integradas.
Eficiência e prazo: incentivos devem ter metas e data de validade.
Fontes firmes e flexíveis: gás natural, térmicas híbridas e armazenamento estratégico.
Esses pilares reduzem custos, aumentam confiabilidade e preservam o valor da energia limpa.
O gás natural, integrado ao hidrogênio verde, é a ponte entre o presente e o futuro.
Conclusão — Realismo é o novo nome da sustentabilidade
Defender o realismo energético não é ser contra o verde; é garantir que ele dure.
Sem planejamento, o Brasil pode transformar uma vantagem competitiva em vulnerabilidade.
O gás natural e as térmicas híbridas não são retrocesso, mas parte da arquitetura de estabilidade da matriz.
Elas sustentam o sistema, equilibram a intermitência e pavimentam o caminho para o hidrogênio verde e o armazenamento avançado.
O futuro da energia limpa dependerá menos de slogans e mais de engenharia, economia e governança.
A sustentabilidade não se decreta — constrói-se, com disciplina e racionalidade.
A X Semana de la Energía da OLADE, realizada em Santiago do Chile, entre 30 de setembro e 3 de outubro de 2025, consolidou-se como o principal fórum político, técnico e regional sobre transição energética e integração elétrica na América Latina e no Caribe (ALC).
O encontro reforçou o papel estratégico da região no avanço da descarbonização, da cooperação regional e da transição justa e inclusiva.
Promovido pela Organização Latino-americana de Energia (OLADE), em parceria com o Ministério de Energia do Chile, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), a Agência Internacional de Energia (AIE) e a União Europeia, o evento reuniu ministros, reguladores, líderes empresariais e especialistas de 27 países.
Sob o tema “Transiciones Energéticas Justas e Inclusivas para América Latina y el Caribe”, o fórum abordou os principais desafios da descarbonização, da integração energética e da inovação regulatória, com destaque para temas como armazenamento de energia (BESS e hidrogênio verde), mobilidade sustentável, uso eficiente da água, digitalização de sistemas elétricos e fortalecimento das cadeias de valor de minerais críticos, como lítio e cobre.
A X Semana de la Energía destacou ainda o papel da inovação tecnológica, da governança regulatória e da cooperação público-privada como pilares essenciais para alcançar uma transição energética resiliente, competitiva e inclusiva, capaz de transformar o potencial renovável latino-americano em desenvolvimento econômico sustentável e segurança energética duradoura.
Este Relatório Final Integrado, elaborado a partir das sessões plenárias, painéis técnicos e documentos oficiais, tem como objetivo identificar riscos, oportunidades e recursos necessários para orientar decisões estratégicas de reguladores, investidores e conselhos de administração, oferecendo uma visão regional coordenada da transição energética na América Latina e no Caribe.
As opiniões e conclusões expressas neste relatório são de responsabilidade exclusiva de seu autor, Eduardo M. Fagundes, e não refletem necessariamente a posição oficial da OLADE ou de seus parceiros institucionais.
Principais tendências regionais
Integração energética como eixo de soberania e competitividade: A coordenação entre países da OLADE foi reafirmada como instrumento estratégico para reduzir custos, evitar vertimentos (curtailment) e fortalecer a segurança regional. A interconexão elétrica e gasífera — somada à harmonização regulatória — constitui o alicerce da soberania energética latino-americana.
Armazenamento e digitalização como bases da estabilidade: O Libro Blanco del Almacenamiento de Energía e os debates técnicos consolidaram o armazenamento (BESS, PSH e hidrogênio) como eixo da estabilidade sistêmica. A integração com IA e redes digitais (SCADA 4.0) redefine o conceito de confiabilidade elétrica.
Industrialização verde e cadeias de valor regionais: A América Latina possui 25% das reservas globais de minerais críticos e potencial para se tornar polo produtor de baterias, hidrogênio e biocombustíveis de nova geração, reduzindo a dependência de importações tecnológicas.
Capital humano e transição justa: Estima-se a criação de 3,5 milhões de empregos até 2030, exigindo formação técnica em automação, energia solar, hidrogênio e redes inteligentes. A justiça energética é tratada como política de desenvolvimento territorial e de inclusão produtiva.
Governança inteligente e inovação regulatória: Os países reconheceram a necessidade de adotar regulação adaptativa, baseada em desempenho e flexibilidade, criando mercados de serviços ancilares, leilões híbridos e sandbox regulatórios.
Desafios e oportunidades
A análise consolidada da OLADE indica que, apesar do avanço tecnológico, persistem riscos estruturais:
Categoria
Desafio central
Resposta proposta
Regulatória
Fragmentação institucional e ausência de marcos regionais
Plataforma de Governança Energética Regional (PGER) e taxonomia verde comum
Financeira
Custo de capital elevado e baixa bancabilidade de projetos
Fundos regionais de blended finance e garantias multilaterais
Tecnológica
Dependência de insumos asiáticos e obsolescência de tecnologias
Incentivos à indústria local de BESS, baterias e H₂
Social
Resistência territorial e desigualdade de transição
Programas de reconversão laboral e educação energética inclusiva
Em contrapartida, emergem oportunidades estratégicas de integração e desenvolvimento industrial:
Mercados regionais de energia e flexibilidade, com economia estimada de US$ 10 bilhões/ano em custos de operação.
Indústria de hidrogênio verde e baterias, com potencial de exportação superior a 10 Mt H₂/ano até 2035.
Empregos verdes e capacitação técnica, articulados com universidades e centros regionais de P&D.
Financiamento climático integrado, com destaque para o Global Gateway Investment Facility (€45 bilhões até 2030) e o Energy Transition Facility (BID).
Recursos necessários para a transição operacional
A execução plena da transição requer coordenação entre quatro pilares:
Pilar
Necessidades-chave
Atores de referência
Institucional e regulatório
Harmonização normativa e governança multinível
OLADE, CEPAL, ministérios e reguladores nacionais
Tecnológico e digital
Automação, sensoriamento e cibersegurança OT/IT
Operadores de rede, BID, CAF
Financeiro
Fundos regionais, taxonomia verde e blended finance
UE, BID, CAF, PNUMA
Humano
Formação técnica e reconversão profissional
OLADE, universidades, SENAI, CORFO
Recomendações estratégicas
O relatório propõe cinco eixos regionais de ação conjunta para 2026–2030:
Governança e integração energética latino-americana: Estabelecer um Conselho Ministerial de Energia da ALC e uma Rede de Operadores Interconectados (ROI-ALC) para coordenação regulatória e despacho conjunto.
Modelos de incentivo e mercados de flexibilidade: Implementar leilões híbridos solar+BESS, pagamentos por capacidade e tarifas dinâmicas regionais.
Planejamento de longo prazo e neutralidade tecnológica: Elaborar o Plano Energético Regional 2050, integrando cenários de demanda, infraestrutura e metas climáticas.
Cadeias de valor locais (lítio, baterias, H₂, biogás): Criar clusters industriais regionais com certificação ambiental e conteúdo local inteligente.
Inovação, P&D e cooperação técnica: Lançar o Programa Regional de Inovação e Transição Energética (PRITE), com centros de excelência distribuídos e foco em digitalização, armazenamento e IA energética.
Chamado à ação conjunta 2026–2030
A OLADE conclama governos, empresas e organismos multilaterais a unirem esforços em torno de três compromissos convergentes:
Governar juntos a transição, consolidando o Sistema Integrado de Planejamento Energético da ALC;
Financiar com inclusão, direcionando investimentos a projetos que combinem inovação e impacto social;
Educar para transformar, estruturando uma agenda regional de capacitação técnica e liderança energética.
Mensagem final
A X Semana de la Energía reafirmou que a América Latina e o Caribe não precisam seguir modelos externos.
A região possui os recursos, a capacidade e o conhecimento para construir sua própria rota — uma transição energética limpa, humana e integrada, orientada pela cooperação, pela inovação e pela justiça social.
I. INTRODUÇÃO
A Organização Latino-americana de Energia (OLADE) é o principal organismo intergovernamental de cooperação e integração energética da região, fundada em 1973 sob o Convênio de Lima e composta por 27 países membros plenos. Sua missão é promover o desenvolvimento sustentável, a segurança energética e a integração dos sistemas energéticos da América Latina e do Caribe (ALC), por meio da geração de conhecimento técnico, apoio à formulação de políticas públicas e fortalecimento das capacidades institucionais dos Estados membros. Ao longo de mais de cinco décadas, a OLADE consolidou-se como referência técnica e diplomática para governos, empresas e organismos multilaterais no desenho de políticas energéticas regionais.
Entre suas iniciativas mais emblemáticas, destaca-se a Semana de la Energía, evento anual que se tornou o principal fórum político, técnico e empresarial do setor energético latino-americano. Organizada em parceria com governos nacionais e instituições multilaterais, a Semana reúne ministros de energia, representantes de organismos internacionais, líderes empresariais, acadêmicos e especialistas de toda a região para discutir os rumos da transição energética, o papel das novas tecnologias e os desafios da integração regional.
A cada edição, o evento consolida sua relevância como espaço de diálogo e cooperação, onde são debatidos temas que orientam a formulação de políticas públicas e a priorização de investimentos estratégicos.
A X Semana de la Energía, realizada em Santiago do Chile, representou um marco simbólico e político. Sob o tema central “Transiciones Energéticas Justas e Inclusivas para América Latina y el Caribe”, o encontro reuniu as principais autoridades energéticas da região — incluindo ministros, secretários, reguladores e presidentes de empresas estatais —, além de representantes da União Europeia, da Agência Internacional de Energia (AIE), do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e de diversas agências multilaterais. O evento foi estruturado em quatro dias de sessões temáticas que abrangeram desde a integração regional e a segurança energética até a mobilidade sustentável, o armazenamento de energia, o papel do gás natural e o desenvolvimento de cadeias de valor estratégicas.
Visão geral dos painéis apresentados
A programação da X Semana de la Energía refletiu a complexidade do momento de transição vivido pela região, combinando visão estratégica e debates técnicos de alto nível.
Entre os painéis e sessões plenárias de destaque estiveram:
Sessão Magistral de Abertura – “Conectando América Latina y el Caribe”, que discutiu o avanço da integração energética regional e os desafios para a criação de um mercado comum de energia, com a participação de Andrés Rebolledo (OLADE), Johanna Monteiro (Ministério de Energia do Chile), Marcelino Madrigal (BID) e Michael Mechlinski (GET.transform).
Painel “El gas natural en la transición energética”, que apresentou visões convergentes sobre o papel do gás como vetor de segurança e transição, analisando oportunidades de complementaridade com o hidrogênio verde e a geração renovável.
Sessão “Construyendo un sistema eléctrico resiliente y seguro”, com enfoque em regulação, planejamento e digitalização de redes elétricas — destacando a necessidade de fortalecer a resiliência dos sistemas frente a eventos climáticos e cibernéticos.
Painel “La Revolución del Almacenamiento”, que marcou a apresentação do Libro Blanco del Almacenamiento de Energía en América Latina y el Caribe, enfatizando o papel dos sistemas BESS e do hidrogênio como elementos estruturantes da nova matriz elétrica.
Sessões sobre eficiência energética e mobilidade sustentável, nas quais foram apresentados o Libro Blanco de la Movilidad Sostenible e experiências nacionais de Chile, Brasil e Costa Rica em transporte elétrico, infraestrutura de recarga e incentivos regulatórios.
Painel ministerial e sessões sobre transição justa e capital humano, destacando o papel do talento técnico, da reconversão profissional e da educação energética como motores da transformação social associada à transição.
Painel “Cadenas de valor estratégicas”, que abordou a integração produtiva e tecnológica dos minerais críticos, especialmente lítio e cobre, ressaltando a importância da cooperação regional e da agregação de valor local.
Painel “AgroPV: Energía solar y agricultura resiliente”, com ênfase no uso de tecnologias fotovoltaicas flutuantes e integradas ao uso hídrico, aplicadas à agricultura sustentável.
Esses debates revelaram uma convergência em torno de quatro eixos prioritários: (1) integração regional e segurança energética; (2) descarbonização com inovação tecnológica; (3) justiça social e reconversão produtiva; e (4) fortalecimento institucional e cooperação internacional.
Escopo e enfoque do presente relatório
O presente Relatório Final Integrado foi elaborado a partir da sistematização das sessões e documentos oficiais da X Semana de la Energía, com ênfase analítica nos painéis em que participei diretamente — apresentados nos documentos anexos e relatórios diários de cada jornada.
O objetivo central é identificar recursos necessários, riscos e oportunidades associados aos temas debatidos, oferecendo subsídios estratégicos para reguladores, investidores e conselhos de administração que atuam ou planejam atuar no setor energético latino-americano.
A abordagem adotada combina uma leitura técnica, baseada nos Livros Brancos da OLADE e nos relatórios setoriais (Energia, Mobilidade, Armazenamento e Vertimentos Renováveis), com uma perspectiva estratégica e de governança, orientada à tomada de decisão.
A análise inclui referências cruzadas com documentos de apoio — como o Manual para el Diseño de Sistemas Fotovoltaicos Flotantes Aplicados al Riego, a Agenda Energética UE–ALC, e o relatório Energía y COP30 —, permitindo situar as discussões da Semana dentro do contexto mais amplo da transição energética global e dos compromissos climáticos da região.
Nos capítulos seguintes, cada tema será desenvolvido com base nas sessões correspondentes, destacando as tendências regionais, os avanços tecnológicos, os desafios regulatórios e as oportunidades de investimento identificadas durante o evento.
II. CONTEXTO ENERGÉTICO REGIONAL
A América Latina e o Caribe atravessam um momento decisivo no cenário energético global. A combinação entre abundância de recursos naturais, elevada participação de fontes renováveis e compromissos climáticos ambiciososposiciona a região como uma das matrizes elétricas mais limpas do mundo — cerca de 70% da geração já provém de fontes renováveis, mais que o dobro da média global.
Esse desempenho, no entanto, traz novos desafios: a intermitência das fontes solar e eólica, as restrições de transmissão e a falta de capacidade de armazenamento expõem vulnerabilidades que exigem coordenação regional e inovação tecnológica.
De acordo com a OLADE (2025), o BID e a AIE, a matriz elétrica da ALC precisará quadruplicar sua capacidade instalada até 2050 para atingir o cenário de emissões líquidas zero, com predomínio de solar e eólica. O avanço da transição já é visível — a região adicionou 40 GW de novas fontes limpas apenas em 2024 —, mas a velocidade tecnológica supera a institucional, criando descompassos entre potencial energético, infraestrutura e regulação.
O fenômeno dos vertimentos (curtailment) de energia renovável simboliza essa contradição: estima-se que 53.000 GWh/ano de geração sejam desperdiçados por restrições de rede, equivalentes a US$ 6,9 bilhões em perdas econômicas.
Isso demonstra que o desafio central da próxima década não é apenas gerar mais energia limpa, mas administrá-la com eficiência, flexibilidade e cooperação regional.
O Capítulo II examina essas dinâmicas em quatro dimensões:
a evolução da matriz energética da ALC e suas tendências estruturais;
os desafios emergentes de regulação, mercado e operação;
o papel da cooperação internacional e do financiamento climático como motores da transição; e
as dimensões tecnológica e social, que consolidam a transição justa como eixo do desenvolvimento regional.
Mais do que descrever indicadores, este capítulo interpreta um movimento de fundo: a transformação da América Latina de fornecedora de recursos naturais em protagonista da transição energética global, baseada em inovação, integração e sustentabilidade.
Panorama da matriz energética da América Latina e do Caribe
A América Latina e o Caribe (ALC) vivem um momento singular no cenário energético global. A região combina abundância de recursos naturais, alta participação de renováveis e compromissos climáticos ambiciosos, posicionando-se como uma das matrizes mais limpas do planeta. Segundo dados consolidados pela OLADE e pela AIE, a geração elétrica da região é composta por cerca de 70% de fontes renováveis, índice mais que o dobro da média mundial.
A hidroeletricidade ainda representa a principal fonte, com cerca de 37% da geração total, seguida por energia solar (19%), eólica (15%), biomassa e geotermia (3%) e fontes fósseis (26%). No entanto, o peso das hidrelétricas começa a declinar gradualmente, enquanto cresce a presença das fontes solar e eólica, cuja capacidade instalada ultrapassou 140 GW em 2025.
O Libro Blanco del Almacenamiento de Energía (OLADE, 2025) destaca que a região adicionou 40 GW de nova capacidade renovável em 2024, e que, no cenário de emissões líquidas zero (NET-0) projetado para 2050, a potência instalada total precisará quadruplicar, chegando a mais de 2.100 GW, com 61% provenientes de solar e eólica e apenas 18% de hidroenergia.
Este avanço, embora expressivo, traz novos desafios operacionais, entre os quais se destacam:
a intermitência das fontes variáveis (solar e eólica);
as limitações de transmissão entre sub-regiões; e,
a necessidade de armazenamento em larga escala para garantir estabilidade de rede.
O fenômeno dos vertimentos de energia renovável — energia que poderia ser gerada, mas é desperdiçada por limitações do sistema — tornou-se símbolo dessa transição. Estimativas da OLADE apontam perdas anuais de aproximadamente 53.000 GWh, equivalentes a US$ 6,9 bilhões, concentradas sobretudo em Brasil, Chile, Costa Rica e Uruguai.
Em síntese, a região está energeticamente madura para liderar a transição global, mas institucionalmente ainda busca estabilidade regulatória e coordenação transfronteiriça que garantam eficiência e resiliência.
Desafios e tendências emergentes
A análise dos documentos técnicos e dos painéis da X Semana de la Energía permite identificar tendências convergentes em cinco eixos estruturais, resumidos na tabela a seguir:
Eixo Estratégico
Situação Atual (2025)
Desafio Central
Oportunidade Regional
Descarbonização e Transição Justa
Emissões em queda leve (1.748 Mt CO₂eq, -7% vs. 2015)
Reduzir emissões industriais e transporte
Economia de baixo carbono e empregos verdes
Integração Energética Regional
8 interconexões elétricas ativas, mas baixo intercâmbio
Vulnerabilidade cibernética e obsolescência de redes
Integração IA–SCADA e manutenção preditiva
Financiamento e Governança
Investimentos anuais ≈ 1,5% do PIB regional
Fragmentação institucional e incerteza jurídica
Alinhamento com mecanismos UE–ALC (Global Gateway, BID, CAF)
Fonte: elaboração própria a partir de OLADE (2024–2025), AIE e relatórios da X Semana de la Energía.
Essas tendências mostram que, embora a região avance de forma acelerada na instalação de capacidade renovável, a velocidade institucional e regulatória ainda é menor que a tecnológica, criando um descompasso entre o potencial energético e a efetiva entrega de segurança e competitividade.
Cooperação internacional e financiamento climático
A cooperação energética internacional tornou-se um dos pilares estratégicos para acelerar a transição energética na América Latina e no Caribe (ALC). A região, detentora de abundantes recursos naturais, elevada participação de renováveis e crescente capacidade técnica, ocupa hoje uma posição central no debate climático global. Contudo, enfrenta um desafio persistente: converter potencial energético em investimento efetivo e inovação tecnológica, condição indispensável para atingir as metas de descarbonização até 2050.
Neste contexto, a cooperação internacional e os mecanismos de financiamento climático assumem papel determinante. A convergência entre as políticas regionais — lideradas pela OLADE — e as iniciativas multilaterais da União Europeia, Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF), Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e Agência Internacional de Energia (AIE) cria um ecossistema favorável para a transformação estrutural dos sistemas energéticos latino-americanos.
A Aliança Estratégica UE–ALC
A incorporação formal da União Europeia (UE) como observadora permanente da OLADE, em 2023, marcou um novo estágio na relação birregional. Como registrado na Agenda Energía Unión Europea – América Latina y el Caribe (2024), essa parceria baseia-se em três eixos centrais:
Transição verde e energética, priorizando investimentos em hidrogênio verde, energia solar e eólica, armazenamento e eficiência energética.
Transição digital, com foco em redes inteligentes, cibersegurança e interoperabilidade de dados energéticos.
Transição social e justa, mediante programas de capacitação técnica e inclusão de comunidades vulneráveis nos benefícios da transição.
A estratégia Global Gateway da UE prevê €45 bilhões em investimentos até 2030 em projetos que acelerem a transformação energética e digital na América Latina e no Caribe. Esses recursos são canalizados por meio de instrumentos combinados — financiamentos concessionais, garantias, cooperação técnica e blending de capitais públicos e privados —, com ênfase em quatro cadeias estratégicas:
hidrogênio verde,
minerais críticos (lítio, cobre, níquel e cobalto),
infraestrutura elétrica e de interconexão regional,
bioeconomia e mobilidade sustentável.
Além do componente financeiro, a Aliança UE–ALC promove harmonização regulatória e transferência de conhecimento técnico, incluindo normas sobre baterias, padrões de sustentabilidade e rastreabilidade de matérias-primas críticas. Essa cooperação, ao conectar inovação europeia e potencial energético latino-americano, busca gerar cadeias de valor integradas e reduzir a dependência tecnológica da região.
Papel dos organismos multilaterais
A transformação energética da ALC depende de uma arquitetura institucional robusta e coordenada. Diversos organismos multilaterais desempenham papéis complementares nesse processo:
Organismo
Papel Estratégico na Transição Energética Regional
Principais Iniciativas Recentes (2024–2025)
OLADE
Coordenação política e técnica entre os 27 países membros; elaboração de cenários, livros brancos e plataformas de capacitação.
Libro Blanco del Almacenamiento de Energía, Libro Blanco de la Movilidad Sostenible, e Vertimientos Renovables en ALC.
BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento)
Financiamento e assistência técnica para projetos de infraestrutura e eficiência energética.
Programa “Energía Sostenible para Todos (SEforALL–BID)”; linhas de crédito para BESS e hidrogênio verde no Chile e Brasil.
CAF (Banco de Desarrollo de América Latina)
Apoio à integração elétrica regional e financiamento de projetos resilientes ao clima.
Fundo “Verde Digital y Energético” para interconexões andinas e modernização de redes.
PNUMA
Implementação de políticas climáticas e mecanismos de mitigação de emissões.
Programa “Eficiencia Energética para Ciudades Resilientes” e apoio ao mapeamento de emissões na ALC.
AIE (Agência Internacional de Energia)
Cooperação técnica, estatísticas e modelagem energética.
Estudos de cenários Net-Zero e Energy Transition Outlook ALC 2050.
Essas entidades, em sinergia com a OLADE, formam uma rede institucional interdependente que combina diplomacia energética, financiamento climático e desenvolvimento de capacidades.
Durante a X Semana de la Energía, a atuação coordenada entre OLADE, BID, CAF e AIE foi reiterada como essencial para garantir planejamento regional unificado, estabilidade regulatória e mobilização de capitais verdes.
Mecanismos financeiros e incentivos de investimento
A estrutura de financiamento climático na América Latina é heterogênea, variando conforme o grau de maturidade institucional de cada país. Entretanto, observa-se um padrão emergente de instrumentos híbridos que combinam financiamento público, capital de risco e garantias de longo prazo.
A tabela abaixo sintetiza os principais mecanismos de financiamento disponíveis ou em implementação na região, conforme relatórios da OLADE, BID e União Europeia:
Mecanismo / Fundo
Origem
Tipo de Apoio
Setores Prioritários
Volume Estimado (até 2030)
Global Gateway Investment Facility
União Europeia
Empréstimos concessionais + garantias
Hidrogênio verde, minerais críticos, energia solar e interconexões
€45 bilhões
Fundo Verde para o Clima (GCF)
ONU / PNUMA
Doações e créditos reembolsáveis
Resiliência climática e transição justa
US$ 20 bilhões
Energy Transition Facility (BID)
BID + CAF
Crédito de longo prazo + blended finance
BESS, hidrogênio, biogás, eficiência energética
US$ 10 bilhões
Climate Tech Fund (UE–CAF)
União Europeia + CAF
Capital de risco e cofinanciamento privado
Startups de energia limpa e IA aplicada
€5 bilhões
Latin American Energy Integration Fund (LAEIF)
OLADE + BID
Cofinanciamento regional
Interconexões elétricas e digitalização
US$ 2 bilhões
Fundo Amazônia Renovável
Governos Brasil–UE–Alemanha
Financiamento de baixo carbono e compensação ambiental
Bioenergia, agroPV e restauração florestal
US$ 1,2 bilhão
Além desses instrumentos, cresce a presença de títulos verdes e ESG bonds emitidos por empresas e governos da região, com destaque para Chile, Colômbia e Brasil, que já captaram mais de US$ 40 bilhões em papéis vinculados à transição energética desde 2021.
Essas iniciativas convergem para um objetivo comum: atrair capital internacional, reduzir riscos de investimento e garantir previsibilidade regulatória, permitindo a expansão simultânea de infraestrutura e inovação.
Desafios de acesso e absorção de recursos
Apesar do avanço institucional, persistem barreiras para a plena absorção desses recursos na ALC:
Assimetria regulatória entre países e falta de instrumentos padronizados de avaliação de risco climático;
Baixa capacidade técnica de formulação de projetos bancáveis, especialmente em pequenas e médias concessionárias;
Demora na tramitação de garantias soberanas, o que limita a entrada de investidores privados;
Ausência de métricas regionais de impacto socioambiental, que dificultam a certificação de projetos de transição justa.
A superação desses desafios requer integração de políticas públicas e instrumentos financeiros, papel no qual a OLADE e os bancos regionais assumem liderança técnica. A criação de um marco regional de taxonomia verde, inspirada na classificação europeia, é uma das prioridades discutidas na X Semana de la Energía. Essa taxonomia permitirá maior transparência e alinhamento de investimentos com metas de neutralidade climática.
A cooperação internacional e o financiamento climático constituem os pilares sobre os quais se apoia a nova fase da integração energética latino-americana.
A convergência entre a União Europeia, OLADE e organismos multilaterais cria uma arquitetura institucional e financeira inédita, capaz de alavancar recursos, reduzir riscos e garantir que a transição energética na região seja não apenas tecnológica, mas também justa, inclusiva e sustentável.
Dimensão tecnológica: armazenamento, digitalização e hidrogênio
O avanço tecnológico é hoje o principal vetor da nova configuração energética regional.
De acordo com o Libro Blanco del Almacenamiento de Energía en América Latina y el Caribe (OLADE, 2025), o armazenamento é o elo crítico entre expansão renovável e estabilidade dos sistemas. A multiplicação de projetos híbridos (solar + BESS) e licitações dedicadas em países como Chile, Brasil e México consolidam o armazenamento como novo ativo estratégico.
O documento identifica cinco tecnologias prioritárias em adoção ou ensaio na região:
Tecnologia
Aplicação Principal
Situação Atual na ALC (2025)
Perspectiva 2030
BESS (baterias de íon-lítio)
Regulação de frequência, backup e integração solar
2,3 GW instalados
15 GW projetados
PSH (bombeamento hidráulico reversível)
Armazenamento de longa duração
6 GW instalados (Brasil e Colômbia)
9 GW projetados
Hidrogênio verde e amônia
Vetores químicos para exportação e descarbonização industrial
Projetos-piloto em Chile, Brasil e Colômbia
+10 Mt H₂/ano até 2035
Almacenamiento térmico (sales fundidas)
Backup de CSP e indústrias
Projetos em fase de P&D
Expansão limitada
Gravitacional e inercial (flywheels)
Aplicações urbanas e microgrids
Casos isolados
Adoção incipiente
Fonte: OLADE (2025), BID (2024), IRENA (2025).
A convergência entre armazenamento, digitalização e IA aplicada a sistemas SCADA surge como o novo paradigma para a operação elétrica latino-americana. Essa integração permitirá antecipar picos de carga, reduzir vertimentos e ampliar a confiabilidade dos sistemas interconectados.
Segurança energética, vulnerabilidade climática e transição justa
A segurança energética na região não pode mais ser avaliada apenas pela oferta de recursos, mas pela resiliência dos sistemas frente à variabilidade climática e às novas ameaças digitais.
Os eventos extremos — secas prolongadas, chuvas intensas e ondas de calor — têm reduzido a previsibilidade hidrológica e pressionado os custos operacionais. Segundo a OLADE, a dependência hídrica média de 37% expõe 11 países a risco de déficit energético em períodos secos, tornando urgente o fortalecimento de mecanismos de compensação inter-regional.
A dimensão social da transição energética, enfatizada em diversos painéis da Semana, requer políticas de reconversão laboral, formação técnica e inclusão territorial. Estima-se que, até 2030, o setor possa gerar 3,5 milhões de novos empregos, sobretudo em energias renováveis, eficiência energética e manufatura de equipamentos.
Contudo, o desafio não é apenas quantitativo, mas qualitativo: assegurar que esses novos postos estejam distribuídos de forma justa e que as comunidades locais participem dos benefícios econômicos e ambientais da transição.
Síntese: desafios regionais prioritários
Categoria
Principais Riscos (2025)
Ações Prioritárias Propostas
Regulatórios
Incerteza jurídica e assimetria de marcos nacionais
Harmonização regional e definição legal do armazenamento
Financeiros
Baixo acesso a capital de risco verde
Criação de fundos regionais (Global Gateway, BID, CAF, BNDES)
Técnicos
Vertimentos e vulnerabilidade de redes
Expansão de interconexões e redes inteligentes
Sociais
Resistência à reconversão laboral
Programas de capacitação técnica e inclusão feminina
Ambientais
Escassez hídrica e conflitos territoriais
Planejamento integrado e uso múltiplo da água (ex. FV flutuante)
Conclusão
O panorama energético latino-americano em 2025 mostra uma região com matriz limpa, alto potencial de inovação e crescente maturidade tecnológica, mas que ainda enfrenta riscos estruturais de fragmentação institucional e desigualdade de transição.
A próxima década será decisiva para alinhar políticas, infraestrutura e finanças, transformando a vantagem comparativa da ALC em vantagem competitiva global.
III. RESULTADOS DOS PAINÉIS TÉCNICOS
Santiago do Chile, 30 de setembro a 3 de outubro de 2025
Dia 1 – Integração regional e segurança energética
O primeiro dia da X Semana de la Energía começou com um sentimento de urgência e convergência. A Sessão Magistral “Conectando América Latina y el Caribe” reuniu ministros, reguladores e representantes de organismos multilaterais para discutir a viabilidade de um mercado elétrico latino-americano integrado.
A mensagem de abertura de Andrés Rebolledo, Secretário Executivo da OLADE, foi clara: a integração energética não é apenas técnica ou comercial, mas um ato político de soberania compartilhada. Ele destacou que o novo observador — a União Europeia — aportará não apenas capital, mas também experiência em regulação, harmonização de tarifas e modelos de governança regional.
Marcelino Madrigal, do BID, reforçou que a América Latina já possui excedente renovável de 80 GW e que a interconexão elétrica permitiria transformar essa abundância em competitividade, reduzindo custos de operação e fortalecendo a resiliência dos sistemas.
No entanto, as barreiras continuam sendo regulatórias e institucionais: cada país opera com estruturas próprias de mercado, níveis diferentes de liberalização e marcos de transmissão fragmentados.
Durante o painel “El gas natural en la transición energética”, Heloísa Borges, da EPE (Brasil), trouxe uma observação particularmente marcante:
“A mera ameaça de importação de gás argentino foi suficiente para reduzir os preços no Brasil.”
Essa afirmação sintetiza o poder disciplinador dos mercados regionais quando há transparência e previsibilidade.
Em seguida, Luiz Barroso (PSR) apresentou uma análise sobre o equilíbrio entre segurança e flexibilidade na regulação. Barroso lembrou que o modelo regulatório não pode ser um obstáculo à inovação, mas deve reconhecer que sistemas resilientes exigem redundância planejada — e que a resiliência tem custo.
Sua fala ecoou nas discussões posteriores sobre armazenamento e hidrogênio, quando se percebeu que parte das soluções futuras depende justamente dessa reserva regulatória e tecnológica.
Na mesma linha, Gabriela Elizondo (Banco Mundial) fez a ponte entre regulação e tecnologia, abordando o uso de inteligência artificial em planejamento energético, modelagem de risco e precificação dinâmica. Essa convergência entre dados, digitalização e decisões regulatórias apareceu como uma das tendências centrais de toda a Semana.
Encerrando o dia, o painel “Construyendo un sistema eléctrico resiliente y seguro” apresentou um diagnóstico abrangente: a região avança na expansão das renováveis, mas ainda carece de um marco regional de segurança cibernética, de interoperabilidade e de resposta a incidentes.
A mensagem final foi inequívoca — resiliência elétrica é hoje sinônimo de soberania digital.
Tabela – Síntese dos temas transversais do Dia 1
Eixo
Desafio identificado
Oportunidade estratégica
Integração regional
Fragmentação regulatória e assimetria tarifária
Criação de um mercado elétrico latino-americano, inspirado no modelo europeu
Gás natural e transição
Falta de coordenação de fluxos transfronteiriços
Uso do gás como ponte de segurança e competitividade regional
Regulação e inovação
Inércia institucional e marcos desatualizados
Harmonização de regras e incentivos à inovação
Digitalização e IA
Falta de interoperabilidade entre operadores
IA aplicada à modelagem de demanda e riscos climáticos
Segurança e ciberdefesa
Vulnerabilidade das redes SCADA
Protocolos regionais de segurança energética e digital
Dia 2 – Armazenamento, hidrogênio e eficiência energética
O segundo dia começou com o lançamento do Libro Blanco del Almacenamiento de Energía en América Latina y el Caribe (OLADE, 2025) — uma síntese que define o armazenamento como a espinha dorsal da transição energética regional.
A apresentação destacou três números que dominaram as discussões do dia:
A capacidade instalada de BESS na região ainda é inferior a 2,5 GW,
Os vertimentos de energia chegam a 53.000 GWh/ano,
E o custo econômico dessa ineficiência ultrapassa US$ 6,9 bilhões anuais.
Esses dados, extraídos do estudo da OLADE de junho de 2024, evidenciam que não é o potencial que falta à região, mas a capacidade de armazenar e integrar energia limpa.
Durante a keynote, o representante do Ministério de Energia do Chile apresentou os resultados das soluções híbridas (solar + BESS), que vêm transformando o sistema elétrico chileno em um laboratório de estabilidade para o continente.
O modelo chileno une regulação previsível, remuneração por serviços ancilares e metas explícitas de descarbonização, permitindo ao investidor privado planejar com segurança de longo prazo.
O painel seguinte abordou a energia hidroelétrica como ativo de resiliência climática. A tese central, apresentada por Michael Mechlinski (GET.transform), foi a de que a hidroenergia deve ser reconhecida como armazenamento natural de longo prazo, e não apenas como fonte de geração.
Essa visão, defendida também pela OLADE, reforça o conceito de flexibilidade hidrológica, em que reservatórios e BESS trabalham de forma complementar.
Na sequência, o painel “Camino del Hidrógeno hacia 2035” trouxe um panorama realista. Chile, Brasil e Colômbia lideram os pilotos regionais, mas o desafio é passar da experimentação à escala industrial. A discussão centrou-se em quatro eixos:
Custos de eletrólise ainda elevados;
Necessidade de infraestrutura portuária e gasodutos adaptados;
Regulação do rastreio de origem e certificação de carbono;
Modelos de offtake com garantias de longo prazo.
As intervenções mais técnicas trataram do equilíbrio entre demanda futura e políticas de estímulo. Ficou evidente que, sem uma estratégia regional coordenada, o hidrogênio pode repetir o erro da bioenergia: grande potencial, pouca integração.
Tabela – Soluções discutidas para o equilíbrio entre vertimentos e armazenamento
Causas identificadas
Soluções emergentes
Benefícios esperados
Restrições de transmissão e falta de BESS
Instalação de 15 GW de armazenamento até 2030
Redução de perdas em 80%
Variabilidade climática e falta de coordenação regional
Planejamento integrado hidro–solar–eólico
Maior resiliência hidrológica
Escala produtiva insuficiente e alta tributação
Clusters regionais e incentivos fiscais
Redução de custo nivelado (LCOH) em 40%
Falta de definição legal do armazenamento
Marcos regionais e remuneração por flexibilidade
Expansão de mercado e novos serviços ancilares
O encerramento do dia reforçou um consenso: o armazenamento é o novo eixo de soberania energética da América Latina. A falta de infraestrutura para armazenar energia equivale, hoje, à falta de petróleo no século XX.
Dia 3 – Transição justa, AgroPV e inovação produtiva
O terceiro dia representou um ponto de inflexão na narrativa da Semana. A Reunião Ministerial de Energía de ALC consolidou o compromisso político de alinhar transição energética e justiça social.
Diversos ministros destacaram a urgência de integrar formação técnica, reconversão profissional e inclusão territorial ao processo de descarbonização.
O painel “AgroPV – Energía solar y agricultura resiliente” foi um dos mais simbólicos do evento, conectando energia, água e alimentação.
A engenheira Camila Vásquez, do Ministério de Energia do Chile, apresentou experiências em sistemas agrovoltaicos flutuantes, que reduzem a evaporação de reservatórios e aumentam a eficiência do uso da água.
O pesquisador Frederik Schönberger, da Fraunhofer Chile, detalhou o modelo de dimensionamento técnico, confirmando que o rendimento global (Performance Ratio) de sistemas flutuantes pode superar 80%, com menor degradação térmica.
Esses resultados coincidem com os princípios técnicos descritos no Manual para el Diseño de Sistemas Fotovoltaicos Flotantes Aplicados al Riego (2025), que destaca a dupla função energética e hídrica desses sistemas.
Hugo Morales, da International Solar Alliance (ISA), complementou:
“A energia solar rural é o primeiro passo da justiça energética.”
A frase conecta a energia limpa à redução da pobreza rural e à agricultura de precisão.
A última sessão do dia, sobre eficiência energética no setor privado, trouxe casos de sucesso no Chile e no Brasil, com uso de IA para monitoramento de consumo e programas de retrofit industrial. A principal conclusão foi que a eficiência deixou de ser apenas uma medida econômica — tornou-se um ativo estratégico de competitividade e reputação ESG.
Tabela – Efeitos da transição justa e da integração agrovoltaica
Dimensão
Impacto direto
Indicadores de benefício
Social
Geração de emprego local e capacitação técnica
+30% de novos postos de trabalho rurais em energia solar até 2030
Econômica
Redução de custos hídricos e aumento da produtividade agrícola
-20% no custo de irrigação e +12% na produtividade média
Ambiental
Redução da evaporação e aumento da eficiência hídrica
-35% de perda de água em reservatórios
Tecnológica
Integração de sensores e automação agrícola
Expansão da Agricultura 4.0 em zonas áridas
Dia 4 – Cadeias de valor e capital humano
O último dia da Semana foi dominado por um tom pragmático: como transformar potencial em política e política em indústria.
A Sessão Magistral “Tablero Energético Regional” reuniu representantes da CEPAL, OLADE e Banco Mundial, que convergiram em torno de uma tese central: a transição energética latino-americana precisa ser também uma estratégia industrial.
O painel “Cadenas de valor estratégicas” apresentou uma leitura geoeconômica precisa: a América Latina detém 25% das reservas mundiais de minerais críticos, mas exporta menos de 5% de produtos processados.
Discutiu-se, portanto, como desenvolver cadeias locais de valor em lítio, cobre, níquel, hidrogênio e baterias, reduzindo a dependência da Ásia.
Foi mencionada a proposta da OLADE de criar Centros Regionais de Produção e Certificação de Hidrogênio Verde, com protocolos comuns de rastreabilidade e neutralidade de carbono.
O painel “El recurso humano como catalizador del recurso energético” encerrou o evento com uma reflexão essencial: a transição energética não é apenas tecnológica, é humana.
O déficit de profissionais qualificados em engenharia elétrica, automação e energias renováveis é hoje um dos principais gargalos para a execução dos projetos.
A OLADE e o BID apresentaram dados mostrando que a região precisará formar 2 milhões de técnicos e engenheiros até 2030, o que exige políticas coordenadas de educação energética e reconversão profissional.
Tabela – Convergência de temas transversais identificados nos quatro dias
Tema transversal
Desdobramento técnico
Dimensão de risco
Oportunidade estratégica
Armazenamento
Subastas híbridas e BESS regionais
Regulação incipiente
Estabilidade e novos mercados
Hidrogênio verde
Clusters e exportação
Custos de infraestrutura
Cadeia de valor latino-americana
AgroPV e FV flutuante
Uso duplo de água e energia
Financiamento rural insuficiente
Eficiência hídrica e inclusão produtiva
Curtailment e flexibilidade
Vertimentos de 53.000 GWh/ano
Perdas econômicas sistêmicas
Planejamento integrado hidro-solar
Capital humano e inclusão
Falta de técnicos especializados
Transição desigual
Emprego verde e capacitação regional
Síntese analítica:
A X Semana de la Energía deixou claro que a América Latina e o Caribe entraram em uma fase de transição energética madura, porém assimétrica.
Há tecnologia, há capital, há conhecimento — mas ainda falta coordenação institucional e visão de longo prazo.
Os quatro dias de discussões mostraram que o futuro da energia regional dependerá da capacidade de integrar tecnologias, políticas e pessoas.
IV. TEMAS TRANSVERSAIS
Os debates da X Semana de la Energía confirmaram que a transição energética latino-americana está deixando de ser um conjunto de agendas setoriais para se tornar um ecossistema integrado de inovação tecnológica, regulação e capital humano.
Entre os diversos temas tratados, cinco emergiram como vetores estruturantes do futuro energético regional: o armazenamento de energia, a mobilidade sustentável e os minerais críticos, o papel do gás natural e biogás como vetores de transição, a gestão de excedentes renováveis e, finalmente, a expansão da energia fotovoltaica flutuante aplicada ao uso hídrico e agrícola.
Esses eixos refletem o ponto de encontro entre tecnologia, regulação e economia real, compondo uma agenda pragmática e articulada com as metas climáticas da OLADE e da COP30.
Armazenamento de energia e estabilidade dos sistemas elétricos
O armazenamento de energia consolidou-se como o novo eixo de soberania elétrica da América Latina e do Caribe.
Durante as sessões técnicas e o lançamento do Libro Blanco del Almacenamiento de Energía (OLADE, 2025), foi amplamente reconhecido que não haverá integração renovável sem estabilidade sistêmica, e que essa estabilidade depende da capacidade de armazenar e redistribuir energia com flexibilidade e previsibilidade.
A região conta hoje com uma capacidade instalada inferior a 2,5 GW de BESS, concentrada em Chile, Brasil e México. No entanto, a projeção da OLADE e da AIE indica que a capacidade total deve ultrapassar 15 GW até 2030, impulsionada por licitações híbridas e políticas de descarbonização setorial.
Paralelamente, o armazenamento por bombeamento hidráulico reversível (PSH) soma aproximadamente 6 GW em operação — tecnologia que continua sendo o maior reservatório de energia da região.
Outras tecnologias, como o armazenamento térmico (sales fundidas) e o hidrogênio como vetor químico, aparecem em estágio pré-comercial, mas com grande potencial de complementaridade.
Tabela – Tendências tecnológicas e maturidade de implantação (2025)
Tecnologia
Aplicação típica
Nível de maturidade (ALC)
Perspectiva 2030
Países líderes
BESS (íon-lítio)
Integração solar e regulação de frequência
Alta
15 GW instalados e mercado ancilar consolidado
Chile, Brasil, México
PSH (bombeamento reversível)
Armazenamento de longa duração e backup hídrico
Média
Expansão para 9 GW
Brasil, Colômbia
Hidrogênio e amônia verde
Estocagem química e exportação
Baixa/média
10 Mt/ano de H₂até 2035
Chile, Brasil, Colômbia
Armazenamento térmico (sales fundidas)
Backup industrial e CSP
Baixa
Pilotos e hubs regionais
México, Chile
Gravitacional e inercial (flywheels)
Micro-redes urbanas e estabilização rápida
Baixa
Aplicações locais e comerciais
Uruguai, Caribe
Barreiras regulatórias e oportunidades de investimento
Apesar dos avanços tecnológicos, persistem três grandes barreiras estruturais:
Ausência de definição legal para o armazenamento — em muitos países, o BESS ainda não é reconhecido como ativo independente, o que impede sua remuneração adequada.
Falta de mercados ancilares regionais — poucos países remuneram serviços de flexibilidade ou inércia virtual, fundamentais para a estabilidade de rede.
Descompasso entre tarifas e externalidades positivas — o armazenamento reduz vertimentos e emissões, mas esses benefícios ainda não são internalizados nas tarifas.
Em contrapartida, as oportunidades são expressivas: a combinação de queda dos custos das baterias (-90% desde 2010) e de mecanismos de blended finance (BID, CAF, UE) abre um novo ciclo de investimentos regionais. O armazenamento é hoje o elo entre inovação e segurança, o que faz dele o principal destino de capital climático da próxima década.
Recomendações estratégicas regionais
Estabelecer uma taxonomia comum de armazenamento para permitir a interoperabilidade regulatória e a certificação de projetos regionais.
Criar mercados de serviços ancilares remunerando flexibilidade, resposta rápida e controle de tensão.
Promover incentivos fiscais e fundos de garantia regionais para projetos de BESS, PSH e hidrogênio.
Integrar armazenamento em planos de expansão (PENs e PDEs) com horizonte até 2050.
Mobilidade sustentável e cadeias de valor de minerais críticos
A mobilidade sustentável representa o ponto de convergência entre a transição energética e a reindustrialização latino-americana.
A região já ultrapassou a marca de 440 mil veículos elétricos leves em circulação, crescimento de 45% em apenas dois anos, segundo a OLADE (2025). Contudo, a difusão ainda é desigual: Chile e Costa Rica lideram em participação de veículos elétricos, enquanto Brasil e México concentram a manufatura e a cadeia automotiva.
O principal gargalo é a infraestrutura de recarga — a relação atual é de 1 ponto público para cada 80 veículos, longe da meta europeia de 1:10. O Libro Blanco de la Movilidad Sostenible (OLADE, 2025) propõe uma rede trinomial de expansão:
Corredores elétricos interurbanos;
Centros urbanos inteligentes;
Terminais logísticos verdes.
No centro da transição está o lítio, cuja geopolítica molda as próximas décadas. Argentina, Bolívia e Chile — o “Triângulo do Lítio” — concentram cerca de 58% das reservas mundiais conhecidas, mas apenas 15% da produção global. O desafio é passar da extração à transformação, agregando valor industrial em baterias, catodos e reciclagem.
Tabela – Geopolítica do lítio e oportunidades industriais
País
Reservas estimadas (Mt Li)
Situação atual
Oportunidade industrial
Risco estratégico
Chile
9,6
Produção consolidada e regulação em revisão
Parcerias com UE e Japão para refinamento local
Saturação ambiental e licenças sociais
Argentina
7,3
Boom de projetos privados (salinas e DSAs)
Indústria de baterias e exportação para Brasil
Instabilidade macroeconômica
Bolívia
21
Industrialização estatal incipiente
Cooperação tecnológica e P&D
Isolamento comercial e custos logísticos
Brasil
0,8
Cadeia automotiva e startups de reciclagem
Produção de catodos e BESS domésticos
Falta de marco regulatório do lítio
Modelos de financiamento e políticas de incentivo
Os países da região vêm adotando diferentes estratégias de estímulo:
Chile: metas de 100% de transporte público elétrico até 2040 e leasing verde para frotas privadas;
Colômbia: incentivos fiscais e rotas preferenciais para veículos zero emissão;
Brasil: programa Mover (Mobilidade Verde e Inovação), com estímulo à manufatura local de baterias;
México: hubs de produção automotiva e acordos de livre comércio para componentes elétricos.
Essas políticas são reforçadas por fundos europeus do Global Gateway e por linhas de crédito do BID e CAF, voltadas à eletrificação do transporte pesado e urbano.
A mobilidade elétrica não é mais apenas ambiental: é industrial e geopolítica, pois redefine cadeias produtivas e depende do controle dos minerais críticos.
Recomendações estratégicas
Harmonizar metas regionais de mobilidade elétrica até 2040, com padrões técnicos compatíveis.
Criar um Fundo Latino-americano de Mobilidade Sustentável, cofinanciado por UE, BID e CAF.
Incentivar a produção local de baterias e reciclagem de lítio em clusters regionais.
Integrar políticas de mobilidade a metas de descarbonização do transporte pesado e marítimo.
Gás natural e biogás como vetores de transição
O gás natural ainda desempenha um papel crucial na matriz energética da região, representando 22% da oferta total.
Durante a X Semana, ficou claro que o debate sobre o gás deixou de ser ideológico e passou a ser técnico e estratégico: trata-se de um combustível de transição, não de permanência.
O gás é o vetor de segurança e flexibilidade. As novas rotas de interconexão entre Argentina, Brasil, Bolívia e Chile podem equilibrar sazonalidades e reduzir custos marginais de curto prazo.
Mas o verdadeiro potencial de longo prazo reside na integração do GNBe (Gás Natural de Baixo Emissões) e do biogás/biometano à economia do hidrogênio verde (H₂V).
Tabela – Rotas de descarbonização do gás natural
Vetor
Aplicação principal
Grau de maturidade (ALC)
Comentário estratégico
GNBe (mistura com H₂)
Geração térmica e transporte
Média
Reduz emissões até 30% sem alterar infraestrutura existente
Biogás agrícola e urbano
Cogeração e transporte pesado
Alta
O Brasil lidera com mais de 700 plantas operacionais
GNL modular
Suprimento para ilhas e regiões isoladas
Média
Complementar à integração elétrica regional
Captura e uso de CO₂ (CCUS)
Produção de H₂azul e fertilizantes
Baixa
Necessita incentivos e taxonomia verde específica
O painel “El gas natural en la transición energética” enfatizou que o futuro do gás dependerá da capacidade da região de substituir moléculas fósseis por moléculas renováveis sem comprometer a estabilidade econômica.
O biogás surge como vetor de convergência entre agricultura, energia e inovação industrial, podendo substituir 15% do consumo térmico até 2040.
Recomendações
Reconhecer o GNBe e o biogás como instrumentos legítimos de descarbonização nas metas regionais.
Criar incentivos tarifários e fiscais para injeção de biometano em redes de gás.
Promover interconexões gasíferas regionais integradas a futuros corredores de hidrogênio.
Estabelecer normas de certificação de carbono para o gás de baixa emissão.
Curtailment e gestão de excedentes renováveis
O tema do vertimento de energia renovável (curtailment) foi uma das revelações mais contundentes da X Semana.
A OLADE estima que, em 2024, 53.000 GWh de energia renovável deixaram de ser aproveitados em ALC — o equivalente a US$ 6,9 bilhões em perdas econômicas anuais.
Esses vertimentos ocorrem por restrições de transmissão, falta de flexibilidade na demanda e ausência de sistemas de armazenamento.
O estudo apresentado mostrou que o problema é mais intenso em Brasil (22.000 GWh), Chile (5.900 GWh) e Uruguai (4.900 GWh).
Esses países já discutem mecanismos de gestão ativa de excedentes, seja por armazenamento, intercâmbio regional ou uso produtivo do excedente (hidrogênio, dessalinização e irrigação solar).
Tabela – Estratégias de mitigação de vertimentos na ALC
Estratégia
Mecanismo técnico
Benefício direto
Exemplo prático
BESS e armazenamento térmico
Armazenamento e despacho por demanda
Reduz vertimentos e estabiliza preço marginal
Subastas híbridas no Chile
Produção de hidrogênio verde
Conversão de excedentes em H₂
Valoriza energia não despachada
Projeto Haru Oni (Chile)
Integração regional
Exportação de excedentes para sistemas vizinhos
Diminui perdas e amplia intercâmbio
Interconexão Brasil–Uruguai
Gestão da demanda (DSM)
Tarifas horárias e uso produtivo do excedente
Melhora eficiência global
Programas de demanda flexível (Uruguai, Colômbia)
Recomendações para reguladores
Estabelecer planos nacionais de flexibilidade energética com metas de redução de vertimentos.
Implementar mercados regionais de energia de curta duração, permitindo o despacho transfronteiriço.
Criar fundos de compensação de vertimentos financiados por créditos de carbono.
Estimular o uso do excedente renovável em processos de dessalinização, armazenamento térmico e hidrogênio.
Fotovoltaico flutuante e eficiência hídrica no agronegócio
O tema dos sistemas fotovoltaicos flutuantes (FVF) ganhou destaque na X Semana como símbolo da integração entre energia limpa, uso racional da água e produtividade agrícola.
Com base no Manual para el Diseño de Sistemas Fotovoltaicos Flotantes Aplicados al Riego (OLADE, 2025), ficou claro que o FVF oferece ganhos de eficiência de até 10–15% em comparação aos sistemas convencionais terrestres, além de reduzir em até 35% a evaporação dos reservatórios.
Os projetos apresentados por Chile e Brasil mostraram que o modelo AgroPV Flotante combina benefícios energéticos e ambientais, possibilitando geração elétrica local, bombeamento de água e irrigação de precisão.
Além de sua contribuição para a segurança alimentar, o FVF pode se tornar um instrumento de mitigação climática em regiões semiáridas.
Tabela – Benefícios comparativos dos sistemas FV flutuantes
Categoria
Sistema convencional (solo)
Sistema flutuante (água)
Diferença (%)
Eficiência elétrica média (PR)
75–78%
80–85%
8%
Temperatura média dos módulos
45–50°C
35–40°C
-20%
Evaporação anual dos reservatórios
100% (referência)
65–70%
-30 a -35%
Vida útil estimada dos módulos
25 anos
28 anos
12%
Custo nivelado de energia (LCOE)
0,09 US$/kWh
0,08 US$/kWh
-10%
Recomendações e replicabilidade
Incorporar o FVF nas políticas de irrigação e agroenergia dos países da OLADE.
Criar linhas de crédito verdes específicas para AgroPV, apoiadas por CAF e PNUMA.
Incentivar parcerias universidade–empresa para o desenvolvimento de plataformas modulares regionais.
Integrar o FVF a programas de segurança hídrica e recuperação de reservatórios.
Síntese geral dos temas transversais:
A América Latina possui hoje todos os elementos técnicos para liderar a transição energética global: recursos naturais, base científica, financiamento e vontade política.
O desafio agora é alinhar regulação, investimento e conhecimento para transformar esse potencial em desenvolvimento sustentável.
A integração entre armazenamento, mobilidade, gás renovável, gestão de excedentes e eficiência hídrica define o núcleo da nova matriz latino-americana — flexível, digital e resiliente.
V. ANÁLISE DE RISCOS E OPORTUNIDADES
A transição energética latino-americana está em um ponto de inflexão.
Os avanços tecnológicos e os compromissos climáticos criaram uma base sólida para a descarbonização, mas a velocidade de adaptação institucional, regulatória e social ainda é inferior ao ritmo de inovação tecnológica.
Durante a X Semana de la Energía, ficou evidente que a transição não será linear: ela envolve novos riscos sistêmicos, mas também oportunidades inéditas de integração, industrialização e desenvolvimento humano.
O presente capítulo busca justamente organizar esses vetores, avaliando sua relevância e interdependência.
Riscos identificados
a) Riscos regulatórios e de governança
O risco regulatório é hoje o principal fator de incerteza para investidores e operadores do setor energético regional.
A maioria dos países da América Latina ainda não possui marcos regulatórios específicos para armazenamento, hidrogênio verde ou integração de renováveis distribuídas.
Além disso, há fragmentação institucional: agências reguladoras, ministérios e operadores de rede nem sempre possuem atribuições claramente definidas.
Durante o painel “Construyendo un sistema eléctrico resiliente y seguro”, Luiz Barroso sintetizou esse dilema:
“O excesso de zelo regulatório pode travar a inovação; mas a ausência de regras cria assimetria e risco.”
Outro ponto crítico é a governança regional.
Embora a OLADE e a CEPAL tenham avançado na harmonização de estatísticas e diretrizes, ainda há falta de mecanismos vinculantes para coordenação de políticas energéticas transfronteiriças.
Isso limita o potencial de integração de mercados e reduz a eficiência de investimentos compartilhados em interconexão elétrica ou gasífera.
b) Riscos financeiros e de investimento
A segunda camada de risco decorre da volatilidade macroeconômica e cambial dos países da região.
Mesmo com o avanço de instrumentos como o Global Gateway e o Energy Transition Facility (BID), os projetos ainda enfrentam alto custo de capital (WACC superior a 12%) e insegurança jurídica.
A ausência de mecanismos regionais de garantias e seguros climáticos também afeta a bancabilidade de projetos, sobretudo em energias emergentes (hidrogênio, armazenamento e biogás).
Os investidores destacaram, nos painéis de Santiago, que o problema não é a falta de capital, mas a falta de projetos estruturados e financeiramente viáveis.
Sem padronização regulatória, cada país exige novas due diligences, elevando custos de transação e atrasando cronogramas de implantação.
c) Riscos tecnológicos e de suprimento
A terceira dimensão é a tecnológica.
A dependência de cadeias críticas internacionais, sobretudo da Ásia, é um ponto de vulnerabilidade.
O Libro Blanco del Almacenamiento de Energía evidencia que 90% das células de baterias usadas na região vêm da China e que 80% do lítio extraído na América do Sul é exportado em estado bruto, sem agregação de valor industrial.
Além da concentração produtiva, há risco de obsolescência tecnológica: as soluções adotadas hoje (BESS, eletrólise alcalina, painéis convencionais) podem perder competitividade diante de inovações como baterias de estado sólido, hidrogênio offshore e células reversíveis.
Isso reforça a necessidade de políticas de tecnologia neutra e de estratégias de atualização regulatória contínua.
d) Riscos sociais e de aceitação pública
Nenhuma transição energética é sustentável sem aceitação social.
A América Latina já enfrenta resistência em alguns projetos de mineração, parques eólicos e hidrogênio verde devido a impactos locais e conflitos socioambientais.
Os debates do último dia da Semana destacaram que o êxito da transição depende de inclusão territorial e reconversão profissional, e não apenas de eficiência econômica.
O desafio social também é perceptível nas periferias urbanas e zonas rurais: a eletrificação não pode se limitar a substituir combustíveis fósseis, mas deve gerar empregos verdes, renda e capacitação.
Essa foi a tônica do painel “El recurso humano como catalizador del recurso energético”: o capital humano precisa ser tratado como infraestrutura estratégica, e não como externalidade.
Tabela – Síntese dos principais riscos identificados
Categoria de risco
Descrição
Impacto potencial
Medidas mitigadoras recomendadas
Regulatório e de governança
Fragmentação institucional e falta de marcos claros para novas tecnologias
Insegurança jurídica e lentidão de investimentos
Harmonização regulatória regional e definição de taxonomia verde
Financeiro e de investimento
Custo de capital elevado e ausência de garantias regionais
Redução de bancabilidade de projetos
Criação de fundos regionais de mitigação de risco e seguros climáticos
Tecnológico e de suprimento
Dependência de insumos asiáticos e risco de obsolescência
Vulnerabilidade industrial e custo futuro alto
Incentivos à indústria local e parcerias tecnológicas regionais
Social e de aceitação pública
Conflitos territoriais e baixa participação comunitária
Atrasos e judicialização de projetos
Programas de reconversão laboral e consulta social antecipada
Oportunidades estratégicas para a região
Apesar dos riscos, os debates da X Semana demonstraram que a América Latina dispõe de ativos estratégicos únicos no mundo: abundância de renováveis, matriz limpa, recursos minerais, experiência hidrelétrica e crescente maturidade institucional.
As oportunidades que emergem dessa combinação podem transformar a região em líder global de transição energética justa e competitiva.
a) Integração energética e infraestrutura compartilhada
A integração regional é o vetor mais poderoso para reduzir custos e aumentar a resiliência.
Segundo estimativas da OLADE, a interconexão elétrica plena entre países da ALC poderia gerar economia de até US$ 10 bilhões anuais, ao permitir o uso complementar de recursos (hidro, eólico e solar) e suavizar picos de demanda.
O fortalecimento das interligações Brasil–Uruguai, Chile–Peru e Colômbia–Panamá está no centro dessa estratégia.
A infraestrutura compartilhada inclui também gasodutos reversíveis, terminais de GNL modulares, linhas HVDC transfronteiriças e centros regionais de armazenamento.
Além da segurança energética, esses projetos criam economias de escala regulatória e atraem investimentos multilaterais.
b) Indústria de baterias e hidrogênio verde
A América Latina tem a oportunidade de substituir o papel histórico de exportadora de commodities energéticas pelo de provedora de tecnologias de descarbonização.
O “Triângulo do Lítio” (Argentina, Bolívia e Chile) pode abrigar uma das maiores cadeias industriais de baterias do hemisfério sul, associada a polos tecnológicos no Brasil e no México.
Essa indústria é a ponte natural para o hidrogênio verde, pois ambos compartilham infraestrutura eletroquímica e mineralógica.
Os projetos de H₂V apresentados na Semana — especialmente no Chile e no Brasil — mostram que a região pode exportar 10 milhões de toneladas anuais até 2035, desde que haja infraestrutura portuária, certificação de origem e garantias de offtake.
O casamento entre baterias e hidrogênio pode redefinir o mapa industrial latino-americano.
c) Empregos verdes e requalificação profissional
A OLADE estima que a transição energética poderá gerar 3,5 milhões de novos empregos até 2030, dos quais 60% exigirão formação técnica intermediária.
Os painéis “El recurso humano como catalizador del recurso energético” e “Transición justa” reforçaram que a qualificação profissional é o gargalo mais crítico da região.
Programas como o Energía para Todos (OLADE) e o Fondo Verde para la Educación Técnica já atuam nesse campo, mas é necessária uma estratégia regional de educação energética, integrando universidades, institutos e empresas.
Além de resolver um déficit de competências, essa agenda fortalece a aceitação social e a legitimidade da transição.
d) Cooperação público-privada e inovação regulatória
Os debates em Santiago demonstraram que o setor privado está disposto a investir — desde que haja previsibilidade e reciprocidade regulatória.
O novo paradigma é o da cooperação regulada, em que governos, investidores e comunidades compartilham riscos e benefícios.
A inovação regulatória deve contemplar:
Regulação por desempenho (output-based regulation), que estimula resultados e não apenas conformidade;
Sandbox regulatórios para testar tecnologias emergentes (IA, blockchain, microrredes);
Mecanismos de precificação de flexibilidade e carbono integrados a mercados regionais.
Essas medidas fortalecem a confiança e reduzem o “custo da incerteza”, elemento que mais penaliza os projetos de energia limpa na América Latina.
Tabela – Oportunidades estratégicas prioritárias para a região
Eixo de oportunidade
Descrição e impacto esperado
Horizonte temporal
Atores-chave
Integração energética
Interconexões elétricas e gasíferas regionais; compartilhamento de infraestrutura
Curto e médio prazo (2025–2032)
OLADE, BID, CAF, Operadores Nacionais
Indústria de baterias e H₂V
Desenvolvimento industrial e tecnológico baseado em minerais críticos
Médio e longo prazo (2028–2040)
Governos, UE, empresas privadas
Empregos verdes e requalificação
Formação técnica e reconversão profissional setorial
Permanente (2025–2035)
Ministérios de Energia e Educação
Cooperação público-privada
Inovação regulatória e marcos de governança colaborativa
Contínuo
Regulações nacionais e multilaterais
Síntese:
A América Latina encontra-se diante de um equilíbrio delicado: os riscos da transição são altos, mas as oportunidades são proporcionais.
O caminho proposto pela OLADE e reforçado na X Semana de la Energía é claro — passar da transição declaratória à transição operacional, onde regulação, tecnologia e capital humano avancem em sincronia.
O futuro energético da região dependerá menos da quantidade de recursos disponíveis e mais da capacidade de governá-los de forma cooperativa e inteligente.
VI. RECURSOS NECESSÁRIOS
A transição energética latino-americana está diante de um paradoxo: o potencial técnico é vasto, mas o sistema de execução ainda é fragmentado.
Os debates da X Semana de la Energía mostraram que, embora a região disponha de abundância de recursos naturais, base científica e acesso crescente a capital climático, ainda faltam estruturas institucionais, digitais e humanas para transformar metas em resultados.
Este capítulo sistematiza os recursos fundamentais para viabilizar a visão de integração e sustentabilidade traçada nos capítulos anteriores.
Capacidades institucionais e regulatórias
A governança energética latino-americana precisa evoluir de um modelo setorial e nacional para uma governança multinível e interconectada.
Hoje, a maior parte das decisões é tomada por ministérios e agências reguladoras isoladas, com pouca interoperabilidade entre países ou sinergia entre áreas (energia, meio ambiente, indústria, educação).
A ausência de mecanismos vinculantes entre os Estados membros da OLADE limita a coordenação da política energética regional.
Os painéis de Santiago destacaram que as novas fronteiras tecnológicas — armazenamento, hidrogênio, mobilidade elétrica — exigem regulações dinâmicas e adaptativas.
Regulações fixas, centradas em concessões e tarifas, tornam-se ineficientes num contexto de redes digitais, prosumidores e microrredes.
Para superar essa assimetria institucional, a OLADE propõe um modelo de “integração regulatória progressiva”, que combina harmonização técnica com autonomia soberana.
Isso significa que cada país mantém sua regulação, mas adota padrões comuns para certificação, interoperabilidade e métricas ambientais.
Tabela – Capacidades institucionais e regulatórias prioritárias
Capacidade requerida
Objetivo estratégico
Instituições envolvidas
Regulação energética
Marco legal para armazenamento, hidrogênio e flexibilidade
Garantir previsibilidade e atratividade de investimentos
Ministérios de Energia, Agências Reguladoras
Governança regional
Estrutura de coordenação entre países da OLADE
Harmonizar normas e facilitar interconexões
OLADE, CEPAL, BID
Planejamento integrado
Ferramentas conjuntas de modelagem energética
Evitar sobreposição de projetos e desperdício de recursos
Operadores Nacionais e OLADE
Cibersegurança e dados
Normas de segurança OT e interoperabilidade digital
Garantir resiliência dos sistemas interconectados
ONS regionais, BID, CAF
Recomendações:
Criar um Conselho Latino-americano de Regulação Energética, sob coordenação da OLADE.
Adotar taxonomia verde regional, com critérios uniformes para certificação de investimentos.
Estabelecer acordos de interoperabilidade regulatória entre operadores elétricos e gasíferos.
Criar observatórios de políticas públicas energéticas com base em dados abertos e interoperáveis.
Infraestrutura tecnológica e digital
A digitalização é o alicerce da nova transição energética.
Durante os painéis sobre segurança e resiliência, ficou claro que os sistemas elétricos latino-americanos ainda são analógicos em sua essência: limitados por telemetria deficiente, ausência de controle preditivo e baixa automação de subestações.
Essa lacuna tecnológica compromete a estabilidade e impede o aproveitamento pleno das renováveis.
A região precisa acelerar a construção de uma infraestrutura digital energética baseada em três eixos:
Sensoriamento e dados em tempo real (IoT/SCADA 4.0);
Automação inteligente com inteligência artificial e edge computing;
Cibersegurança e soberania digital dos sistemas críticos.
O painel “Construyendo un sistema eléctrico resiliente y seguro” mostrou que a transição digital já é prioridade em países como Chile, Colômbia e Brasil, que investem em digital twins de redes elétricas e centros de controle híbridos.
No entanto, o desafio regional é padronizar protocolos e compartilhar infraestrutura de dados, reduzindo custos e aumentando a interoperabilidade.
Tabela – Eixos da infraestrutura tecnológica e digital
Eixo
Aplicações prioritárias
Impactos esperados
Investimentos estimados (2025–2035)
Digitalização e automação
Medição avançada, controle SCADA, IA preditiva
Redução de perdas e aumento da confiabilidade
US$ 25 bilhões
Armazenamento e flexibilidade
BESS, hidrogênio, gestão de demanda
Redução de vertimentos em 80%
US$ 40 bilhões
Cibersegurança OT/IT
Defesa de sistemas críticos e protocolos unificados
Resiliência frente a ataques cibernéticos
US$ 5 bilhões
Interconexão digital regional
Plataformas compartilhadas e operação coordenada
Integração energética efetiva
US$ 10 bilhões
Recomendações:
Criar uma plataforma regional de dados energéticos interoperáveis (OLADE DataHub).
Estabelecer padrões unificados de cibersegurança OT/IT, com apoio do Comando Cibernético Regional e BID.
Incentivar projetos piloto de redes inteligentes comunitárias, com financiamento público-privado.
Integrar IA e digital twins aos centros de controle regionais para monitoramento preditivo de sistemas elétricos.
Financiamento e mecanismos de investimento
O financiamento é a ponte entre potencial e execução.
O grande desafio para a América Latina não é a falta de recursos globais — há liquidez suficiente nos fundos de transição e nos bancos multilaterais —, mas sim a falta de estrutura institucional para absorver e multiplicar esses recursos.
Durante a X Semana, representantes do BID e da União Europeia reforçaram que a região precisa de mecanismos de financiamento híbrido (blended finance), combinando capital público, garantias multilaterais e participação privada.
A estratégia Global Gateway (UE), o Energy Transition Facility (BID) e o Climate Tech Fund (CAF) são exemplos dessa tendência.
O problema está na escala: menos de 25% dos projetos de energia limpa submetidos em 2024 atingiram o estágio de fechamento financeiro.
O obstáculo principal é a ausência de fundos regionais de mitigação de risco, que permitam aos investidores privados participar de projetos estruturados com retorno previsível.
Tabela – Estrutura de financiamento e papéis institucionais
Mecanismo
Função principal
Instituições responsáveis
Horizonte de impacto
Blended Finance Regional (OLADE–BID–CAF)
Cofinanciamento e mitigação de risco
OLADE, BID, CAF
2025–2035
Fundos Verdes Nacionais
Apoio direto a startups e P&D
Ministérios de Energia, FINEP, CORFO
2025–2030
Green Bonds e ESG Bonds
Captação privada em mercados financeiros
Bancos Centrais, empresas e utilities
Contínuo
Fundos de Garantia Climática
Cobertura de risco cambial e político
BID, PNUMA, UE
2026–2040
Recomendações:
Criar um Fundo Latino-americano de Investimento em Transição Justa, com aportes multilaterais e garantias cruzadas.
Desenvolver um marco regional de taxonomia verde, com métricas uniformes para crédito e impacto.
Ampliar o acesso de municípios e utilities locais a instrumentos de financiamento climático.
Estruturar parcerias público-privadas em infraestrutura digital e energética, com cláusulas de transparência e rastreabilidade.
Formação e reconversão do capital humano
A transição energética não é apenas tecnológica, mas fundamentalmente humana.
As sessões “El recurso humano como catalizador del recurso energético” e “Transición justa” reafirmaram que o maior desafio da região é a formação de competências técnicas compatíveis com a nova economia energética.
A OLADE estima que a América Latina precisará formar 2 milhões de técnicos e engenheiros até 2030 em áreas como automação, energia solar, hidrogênio, baterias e redes inteligentes.
No entanto, a maioria dos sistemas educacionais nacionais ainda opera com currículos defasados e pouca integração com o setor produtivo.
A reconversão laboral deve ser vista como política pública de segurança energética, pois a escassez de mão de obra qualificada já ameaça cronogramas de implantação de projetos solares e eólicos.
Durante o painel ministerial, propôs-se a criação de uma Alianza Regional de Educación Energética (AREE), com coordenação da OLADE, integração de universidades e uso de plataformas digitais multilíngues.
Tabela – Prioridades na formação e reconversão profissional
Área de capacitação
Perfil profissional demandado
Instrumentos de política recomendados
Instituições-chave
Energia solar e eólica
Técnicos de instalação, operação e manutenção
Centros regionais de capacitação
OLADE, SENAI, CORFO
Hidrogênio e baterias
Engenheiros químicos e eletroquímicos
Programas de intercâmbio técnico
Universidades e BID
Automação e digitalização
Engenheiros eletricistas e especialistas OT/IT
Cursos híbridos (indústria + academia)
Operadores de rede, CAF
Gestão e inovação regulatória
Gestores públicos e reguladores
Escolas de governo energético
Ministérios e CEPAL
Recomendações:
Instituir uma Rede Latino-americana de Formação em Energia e Transição Justa, coordenada pela OLADE.
Lançar o Programa Jovens para a Transição, conectando universidades, empresas e comunidades locais.
Integrar plataformas digitais de ensino técnico, com currículos bilíngues e foco prático.
Estimular programas de liderança e capacitação para mulheres na energia, promovendo inclusão e diversidade setorial.
Síntese do Capítulo:
A transição energética requer mais do que investimentos: exige instituições sólidas, tecnologia integrada, finanças inteligentes e pessoas capacitadas.
Sem essas quatro dimensões, o potencial renovável latino-americano continuará sendo subaproveitado.
A agenda proposta pela OLADE é clara — governar a transição com inteligência coletiva, consolidando uma base institucional que converta recursos naturais em prosperidade sustentável e regionalmente integrada.
VII. RECOMENDAÇÕES E ESTRATÉGIAS REGIONAIS
A transição energética na América Latina e no Caribe alcançou um novo estágio: deixou de ser uma agenda de intenções e passou a exigir governança operacional, integração efetiva e coerência regulatória.
As discussões da X Semana de la Energía revelaram que o êxito da região dependerá menos da quantidade de recursos disponíveis e mais da capacidade de coordenar políticas, harmonizar regulações e mobilizar investimentos.
Este capítulo propõe um conjunto de cinco eixos estratégicos regionais, interligados e complementares, que traduzem a visão comum construída entre países membros da OLADE, organismos multilaterais e o setor privado.
Governança e integração energética latino-americana
A governança é o pilar invisível da transição.
Durante a X Semana, consolidou-se o entendimento de que a América Latina precisa de uma arquitetura institucional moderna e colaborativa, capaz de combinar autonomia nacional com coordenação regional.
A atual fragmentação — com 27 marcos regulatórios distintos — dificulta a formação de um mercado energético regional e encarece os investimentos em interconexão elétrica e gasífera.
A recomendação central é a criação de uma Plataforma de Governança Energética Regional (PGER) sob coordenação da OLADE, com três funções principais:
Harmonização regulatória progressiva – estabelecer padrões mínimos comuns de licenciamento, tarifação e certificação ambiental.
Coordenação operacional – integrar operadores elétricos nacionais (ONS) em um sistema de despacho coordenado para reduzir vertimentos e perdas.
Diálogo político e diplomático permanente – alinhar estratégias energéticas com metas climáticas e industriais.
Essa governança ampliada deve ser ancorada em instrumentos multilaterais de adesão voluntária, garantindo flexibilidade para que cada país adote o ritmo de integração compatível com sua maturidade institucional.
Tabela – Estrutura proposta para a Governança Regional de Energia
Componente
Função estratégica
Instituição líder
Mecanismo sugerido
Conselho Ministerial de Energia da ALC
Coordenação política e diplomática
OLADE
Reuniões anuais e secretariado técnico permanente
Foro Regulatório Latino-americano
Harmonização normativa e marcos para novas tecnologias
OLADE + CEPAL + BID
Observatório regulatório e guias de boas práticas
Rede de Operadores Interconectados (ROI-ALC)
Coordenação técnica e intercâmbio elétrico
Operadores nacionais de sistema
Plataforma digital comum e despacho coordenado
Grupo de Integração de Mercados Energéticos (GIME)
Estudos de viabilidade e projetos prioritários regionais
BID, CAF, UE
Carteira regional de investimentos em interconexão
Modelos de incentivo e mercados de flexibilidade
A expansão das renováveis não é apenas uma questão tecnológica, mas econômica e comportamental.
O novo paradigma energético exige mercados de flexibilidade, capazes de remunerar serviços ancilares, armazenamento, resposta da demanda e estabilidade de frequência.
Hoje, poucos países da região remuneram adequadamente esses serviços — o que limita a entrada de investidores e a eficiência do despacho.
O modelo recomendado é o de incentivos híbridos, combinando instrumentos de mercado e políticas públicas:
Leilões híbridos (solar + BESS) com prazos longos de contrato e remuneração variável por disponibilidade;
Pagamentos por capacidade e flexibilidade, integrados ao custo marginal horário;
Tarifas dinâmicas para incentivar o consumo em horários de alta geração renovável;
Mercados de serviços ancilares regionais, permitindo intercâmbio de energia e estabilidade entre países.
Esses mecanismos devem ser acompanhados de políticas fiscais inteligentes, como depreciação acelerada para ativos de armazenamento e créditos tributários para infraestrutura verde.
O objetivo é internalizar o valor da flexibilidade e transformar o armazenamento em ativo financeiro líquido e comerciável.
Planejamento de longo prazo e neutralidade tecnológica
A América Latina precisa adotar uma abordagem de planejamento integrado e neutra em tecnologia, baseada em critérios de eficiência, segurança e custo-benefício.
Os painéis de Santiago evidenciaram que o excesso de planos setoriais isolados (PDEs, PENs, planos de mobilidade, hidrogênio etc.) gera redundância e competição entre políticas públicas.
A neutralidade tecnológica implica reconhecer que não há solução única para a descarbonização: cada território deve adotar o mix mais adequado ao seu perfil de recursos.
O papel da OLADE é justamente consolidar cenários regionais compatíveis com as metas da COP30 e da Agenda 2030, integrando modelagens nacionais em um Plano Energético Regional 2050.
Esse plano deve incluir:
Cenários de demanda regional ajustados por variáveis climáticas e industriais;
Mapeamento de infraestruturas críticas (linhas, gasodutos, portos e centros logísticos);
Estratégia de armazenamento e interconexão;
Indicadores socioeconômicos de transição justa.
O objetivo não é impor uniformidade, mas criar coerência regional — garantindo que cada investimento nacional fortaleça a resiliência coletiva da ALC.
Políticas para cadeias de valor locais (lítio, baterias, H₂, BESS)
Um dos principais legados da X Semana foi a constatação de que a transição energética é também uma oportunidade industrial sem precedentes.
A região detém os principais minerais estratégicos da economia verde — lítio, cobre, níquel, manganês e grafite —, mas ainda exporta a maior parte em estado bruto.
O desafio é verticalizar essas cadeias, agregando valor local e estimulando a produção de tecnologias energéticas regionais.
As políticas recomendadas incluem:
Criação de polos industriais transnacionais para produção de baterias e equipamentos de BESS;
Acordos de cooperação para manufatura e P&D em hidrogênio verde, com certificação conjunta de origem;
Fomento à reciclagem de baterias e reuso de metais críticos, reduzindo a dependência de importações asiáticas;
Programas de conteúdo local inteligente, vinculando incentivos fiscais a metas de inovação e treinamento técnico.
Essa estratégia requer parcerias público-privadas e integração com universidades e centros de pesquisa, transformando a região de exportadora de recursos naturais em exportadora de soluções energéticas.
Tabela– Cadeias de valor locais: desafios e estratégias
Setor
Desafio principal
Estratégia recomendada
Benefício regional esperado
Lítio e minerais críticos
Exportação bruta e baixa agregação de valor
Indústria de catodos e reciclagem regional
Redução de dependência e geração de empregos
Baterias e BESS
Ausência de escala e padronização
Clusters regionais com apoio de BID e UE
Formação de indústria integrada e custos menores
Hidrogênio verde
Falta de certificação e infraestrutura
Parcerias bilaterais e rotas logísticas regionais
Expansão de exportações e neutralidade de carbono
Biogás e biometano
Falta de padronização de injeção em redes
Normas regionais de qualidade e rastreabilidade
Inserção de pequenas e médias empresas rurais
Inovação, P&D e cooperação técnica entre países da OLADE
A inovação é o motor da integração regional.
A OLADE já atua como centro de convergência técnica entre países, mas os debates da X Semana indicaram a necessidade de transformar essa atuação em um verdadeiro sistema regional de P&D energético, com metas e governança próprias.
Propõe-se a criação do Programa Regional de Inovação e Transição Energética (PRITE), com cinco linhas estruturantes:
Digitalização e automação de sistemas elétricos;
Armazenamento avançado e reciclagem de baterias;
Hidrogênio verde e biocombustíveis de nova geração;
Gestão de dados, IA e cibersegurança aplicada à energia;
Formação de capital humano e redes de conhecimento.
O PRITE seria operacionalizado por meio de centros de excelência distribuídos, sediados em universidades e instituições técnicas nos países membros da OLADE, interconectados digitalmente e com financiamento cruzado (BID, CAF, UE e PNUMA).
Síntese das Recomendações e Estratégias Regionais
Eixo Estratégico
Objetivo central
Instrumentos propostos
Prazo estimado (pleno efeito)
Governança e integração
Criar estrutura institucional para coordenação regional
Plataforma PGER e ROI-ALC
2025–2032
Mercados de flexibilidade
Remunerar serviços ancilares e estabilidade
Leilões híbridos e pagamentos por capacidade
2026–2030
Planejamento e neutralidade tecnológica
Garantir coerência entre planos nacionais e regionais
Plano Energético Regional 2050
2027–2040
Cadeias de valor locais
Industrializar minerais críticos e tecnologias energéticas
Clusters regionais e políticas de conteúdo local
2025–2035
Inovação e cooperação técnica
Consolidar rede regional de P&D e educação energética
PRITE – Centros de Excelência OLADE
2025–2040
Conclusão do Capítulo:
A América Latina e o Caribe têm, pela primeira vez, condições reais de construir uma transição energética própria, justa e tecnicamente sólida.
As estratégias aqui delineadas não dependem apenas de recursos financeiros, mas de liderança institucional, continuidade política e integração técnica.
A OLADE, como eixo de convergência regional, deve guiar esse processo com pragmatismo e visão estratégica: planejar em conjunto, regular com inteligência e inovar com propósito.
VIII. CONCLUSÕES
Síntese das principais tendências
A X Semana de la Energía, realizada em Santiago do Chile, reafirmou que a América Latina e o Caribe estão na vanguarda da transição energética global — não apenas por sua matriz majoritariamente renovável, mas pela diversidade de soluções que emergem da própria realidade regional.
As discussões revelaram cinco tendências estruturantes que moldarão o futuro energético latino-americano:
Integração regional como estratégia de soberania: A coordenação entre países da OLADE deixou de ser retórica e passou a ser vista como instrumento de competitividade e segurança. A interconexão elétrica e gasífera surge como eixo estruturante para reduzir custos, evitar vertimentos (curtailment) e equilibrar recursos hídricos e renováveis.
Armazenamento e digitalização como bases da estabilidade: O Libro Blanco del Almacenamiento de Energía consolidou o entendimento de que a estabilidade elétrica do futuro não virá apenas da geração, mas da capacidade de armazenar, prever e despachar energia com inteligência. BESS, hidrogênio, redes inteligentes e IA aplicada a SCADA compõem o novo ecossistema de confiabilidade.
Cadeias de valor locais e industrialização verde: A transição energética abre caminho para um reposicionamento econômico da região. O lítio, o cobre, as baterias e o hidrogênio verde não são apenas recursos — são ativos industriais e geopolíticos que podem redefinir o papel da América Latina na economia global.
Justiça social e capital humano como infraestrutura invisível: A descarbonização só será sustentável se for também inclusiva. Os painéis sobre transição justa e reconversão laboral mostraram que energia limpa e desenvolvimento humano são partes da mesma equação. O talento técnico, a educação energética e a diversidade profissional tornaram-se tão estratégicos quanto os investimentos em geração.
Governança inteligente e inovação regulatória: O avanço da digitalização e da descentralização energética exige regulação adaptativa, baseada em desempenho e colaboração público-privada. A inovação não é apenas tecnológica — é regulatória e institucional. Países que criarem marcos claros e previsíveis atrairão os fluxos de capital que definirão a próxima década.
Essas tendências convergem para uma visão única: a transição energética latino-americana será bem-sucedida se for coordenada, flexível e socialmente legítima.
Caminhos para uma transição justa e inclusiva
A América Latina e o Caribe possuem as condições naturais e técnicas para liderar uma nova fase de desenvolvimento energético global.
Entretanto, a transição só será justa se combinar eficiência econômica, justiça territorial e segurança climática.
Essa tríade exige políticas públicas integradas, coerência regulatória e participação cidadã.
Os painéis ministeriais e técnicos da X Semana indicaram três dimensões complementares dessa transição justa:
Dimensão institucional: Criar mecanismos regionais de governança e planejamento conjunto — um “sistema energético latino-americano” que funcione de forma cooperativa e coordenada. Isso inclui padronizar regulações, compartilhar infraestrutura e alinhar políticas de neutralidade de carbono.
Dimensão econômica: Promover instrumentos de inclusão produtiva e financiamento verde, assegurando que as novas cadeias de valor (hidrogênio, baterias, AgroPV) gerem emprego e renda local. A justiça energética começa quando as comunidades que abrigam a infraestrutura também colhem os benefícios do desenvolvimento.
Dimensão humana: Formar profissionais, técnicos e gestores capazes de operar os sistemas do futuro — com diversidade, equidade e autonomia. A capacitação em energia deve ser tratada como direito estratégico, não apenas como política de educação.
Em essência, uma transição justa é aquela que redistribui oportunidades e responsabilidades.
Ela requer planejamento de longo prazo, mas também senso de urgência.
Não basta instalar megawatts — é preciso gerar dignidade energética: acesso universal, tarifas justas e trabalho qualificado.
Chamado à ação conjunta para 2026–2030
A década de 2020 consolidou o diagnóstico. A de 2030 será o tempo da execução.
O ciclo 2026–2030 precisa ser o marco da transição operacional latino-americana — a passagem do consenso político para a ação estruturada.
Para isso, este relatório propõe um chamado à ação conjunta, baseado em três compromissos complementares:
Governar juntos a transição: A OLADE, como organismo regional, deve consolidar um Sistema Integrado de Planejamento Energético da ALC, reunindo governos, operadores e instituições financeiras em torno de um calendário de metas comuns. A integração regulatória, a digitalização e a interconexão devem ser tratadas como bens públicos regionais.
Financiar a descarbonização com inclusão: Bancos multilaterais (BID, CAF, UE) e fundos climáticos devem priorizar projetos que combinem inovação tecnológica e impacto social. Cada dólar investido em energia limpa precisa também gerar valor em educação, emprego e infraestrutura local. A criação de fundos de mitigação de risco e blended finance regionais é essencial para atrair o capital privado.
Educar para transformar: A transição energética será tão robusta quanto a formação das pessoas que a conduzem. A OLADE e seus países membros devem liderar uma agenda educativa e técnica pan-latino-americana, formando profissionais para as novas fronteiras da energia: automação, IA, hidrogênio, baterias e cibersegurança. A educação energética é o verdadeiro ativo de longo prazo da região.
Mensagem final
A X Semana de la Energía demonstrou que a América Latina e o Caribe não precisam seguir modelos externos — podem construir o seu próprio caminho: um modelo de transição baseado na cooperação, na inovação e na justiça social.
O horizonte 2026–2030 será decisivo. É o momento de planejar em conjunto, regular com inteligência, financiar com propósito e educar para transformar.
A energia que une a região é também a que pode redefinir seu futuro: limpa, humana e integrada.
O presente Relatório Final Integrado da X Semana de la Energía – Santiago do Chile 2025 foi elaborado por Eduardo M. Fagundes, de forma independente, com base nos painéis, debates, documentos oficiais e publicações técnicas disponibilizadas pela Organização Latino-americana de Energia (OLADE) e instituições parceiras.
As análises, interpretações, comentários e projeções aqui apresentadas refletem exclusivamente as opiniões e entendimentos do autor, e não representam, necessariamente, a posição oficial da OLADE, do Ministério de Energia do Chile, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), da Agência Internacional de Energia (AIE), da União Europeia ou de quaisquer outras entidades públicas ou privadas mencionadas.
As informações contidas neste relatório foram reunidas a partir de fontes consideradas confiáveis e de acesso público. No entanto, não se garante sua exatidão, completude ou atualização, e não é assumida qualquer responsabilidade por eventuais erros, omissões ou decisões tomadas com base no conteúdo aqui apresentado.
Este documento tem caráter estritamente analítico e informativo, com finalidade de pesquisa e reflexão estratégica sobre os temas abordados durante a X Semana de la Energía, sem valor jurídico, contratual ou vinculante.
Introdução – O nó da geração solar na dinâmica energética brasileira
O Estadão publicou em 6 de outubro de 2025 uma reportagem sobre a crescente complexidade da operação do sistema elétrico brasileiro, causada pelo avanço acelerado da geração distribuída, especialmente da energia solar.
O texto trouxe análises do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) e de especialistas que alertam para fluxos reversos, sobrecarga nas redes e desequilíbrios entre oferta e demanda.
Hoje, o Brasil ultrapassa 42 GW de potência instalada em geração solar distribuída, somando micro e minigeração conectadas à rede. Esse avanço coloca o país entre os líderes mundiais, mas também expõe desafios: quanto mais descentralizada se torna a matriz, mais difícil é coordenar fluxos, garantir estabilidade e manter previsibilidade regulatória.
Entre as soluções em debate está a criação dos Operadores de Sistema de Distribuição (DSO – Distribution System Operators), que teriam a função de coordenar fluxos regionais e integrar novas fontes renováveis de forma técnica e neutra.
Por trás desse debate técnico, há uma questão mais profunda: a necessidade de modernizar a governança do setor elétrico brasileiro, tornando-a mais técnica, digital e orientada por dados.
1. O paradoxo da transição energética
A transição energética brasileira é motivo de orgulho.
Com mais de 80% da matriz elétrica proveniente de fontes renováveis, o país está à frente de nações desenvolvidas na descarbonização da energia.
Mas o sucesso tem um custo.
A expansão da geração distribuída — especialmente solar — aconteceu mais rápido do que a capacidade do sistema de absorver essa energia de forma eficiente e previsível.
O modelo de compensação atual, que incentiva o investimento individual em painéis solares, não precifica adequadamente os custos sistêmicos de reforço das redes, reserva de capacidade e serviços de estabilidade.
Na prática, isso cria uma distorção: os benefícios da energia solar são amplos, mas parte do custo de integração é socializado entre todos os consumidores.
Esse é o paradoxo da transição: quanto mais limpa e descentralizada a matriz, maior a complexidade técnica e econômica para manter o sistema em equilíbrio.
O desafio é garantir que o avanço da inovação não comprometa a confiabilidade da rede — o verdadeiro ativo do setor elétrico brasileiro.
2. O papel das instituições e a importância da previsibilidade
Um sistema elétrico não se sustenta apenas em usinas, linhas e cabos.
Sua solidez depende de instituições técnicas fortes, com autonomia e previsibilidade.
O Brasil construiu uma base respeitável nesse campo. O ONS e a ANEEL são reconhecidos pela competência técnica e pela solidez dos processos regulatórios.
Mas o cenário atual — mais digital, distribuído e dinâmico — exige um novo modelo institucional.
A transição energética em curso pede instituições mais ágeis, interconectadas e orientadas por dados.
A previsibilidade das decisões regulatórias é o que garante confiança de longo prazo a investidores e operadores.
Sem ela, o risco aumenta, o capital encarece e o ritmo de inovação diminui.
A modernização do sistema elétrico brasileiro deve, portanto, colocar a governança institucional no centro da estratégia.
O país precisa de regras estáveis, transparentes e tecnicamente embasadas — e de agências que atuem com independência e mérito técnico, livres de pressões conjunturais.
3. O ponto cego: coordenação e inteligência sistêmica
O verdadeiro gargalo do sistema elétrico brasileiro não está na geração, mas na coordenação entre geração, transmissão, armazenamento e consumo.
O modelo atual foi concebido para fluxos unidirecionais — da usina para o consumidor.
Agora, o fluxo é bidirecional: cada casa, empresa ou fazenda pode ser também um ponto de geração.
Isso transforma a rede elétrica em um sistema vivo, que precisa ser monitorado e ajustado em tempo real.
A solução está na digitalização e automação da operação.
O uso de dados, inteligência artificial e sistemas preditivos pode evitar sobrecargas, antecipar falhas e otimizar o uso da infraestrutura existente.
Nesse contexto, a proposta de criação de Operadores de Sistema de Distribuição (DSO) faz sentido técnico.
Esses operadores regionais atuariam como “mini-ONS”, coordenando a inserção das novas fontes e garantindo a estabilidade local.
Mas, para que isso funcione, é fundamental que a estrutura seja neutra, tecnicamente qualificada e baseada em interoperabilidade digital.
Modernizar o sistema elétrico brasileiro significa integrar inteligência, dados e governança técnica — não apenas adicionar megawatts à matriz.
4. Quatro pilares para a próxima década
A transformação do setor elétrico brasileiro deve se apoiar em quatro pilares estratégicos que combinem tecnologia, governança e formação técnica.
1️⃣ Planejamento energético baseado em dados
O planejamento deve se tornar cada vez mais analítico.
Modelagens preditivas, simulações de fluxo e integração de dados em tempo real precisam ser parte do processo decisório.
Planejar com base em dados é o primeiro passo para equilibrar inovação e confiabilidade.
2️⃣ Revisão regulatória adaptativa e transparente
A regulação precisa acompanhar o ritmo da tecnologia.
Revisões periódicas, consultas públicas efetivas e regras adaptativas são essenciais para que o sistema evolua sem rupturas.
A transparência é o que transforma ajustes regulatórios em confiança institucional.
3️⃣ Autonomia técnica e meritocracia institucional
As decisões do setor elétrico devem continuar sendo técnicas, não políticas.
A autonomia das agências e operadores é a base da estabilidade do sistema.
Instituições que decidem com base em mérito e dados são as que atraem investimentos e garantem equilíbrio de longo prazo.
4️⃣ Formação executiva e tecnológica contínua
O novo sistema elétrico exige profissionais preparados para lidar com automação, armazenamento, inteligência artificial e redes inteligentes.
Investir na formação técnica e executiva é investir na sustentabilidade institucional do setor.
Esses quatro pilares formam a espinha dorsal da modernização do sistema elétrico brasileiro, equilibrando eficiência econômica, inovação e segurança operacional.
5. Inovação com equilíbrio: o desafio da maturidade
O sistema elétrico brasileiro é reconhecido pela sua diversidade e robustez.
Mas, na era digital, manter a confiabilidade exigirá maturidade institucional e inteligência regulatória.
O país precisa avançar de um modelo de controle centralizado para uma governança distribuída e baseada em dados.
A inovação tecnológica é importante, mas a verdadeira transformação ocorrerá quando dados, instituições e decisões técnicas estiverem plenamente integrados.
O Brasil reúne todas as condições para liderar a transição energética global:
recursos naturais abundantes, uma base técnica sólida e um histórico de excelência em engenharia e regulação.
O próximo passo é garantir que esses ativos estejam alinhados sob uma visão estratégica única, com foco em eficiência, neutralidade e transparência.
A governança energética deve ser tratada como infraestrutura nacional.
Sem decisões previsíveis e baseadas em evidências, o país corre o risco de comprometer a segurança e a modicidade tarifária — dois pilares históricos do setor.
Conclusão – Governar a energia com dados e confiança
O Brasil vive um momento decisivo.
A modernização do sistema elétrico é mais do que uma pauta técnica: é uma questão de competitividade e segurança nacional.
Cada decisão regulatória e cada inovação tecnológica impactam diretamente milhões de consumidores e bilhões em investimentos.
A nova era da energia será digital, descentralizada e inteligente.
Mas para que também seja sustentável, precisa ser governada por instituições fortes, decisões previsíveis e regulação baseada em evidências.
O desafio não é apenas modernizar o setor elétrico — é reformular a governança para um mundo movido a dados.
Mais do que subsídios, o setor precisa de inteligência, integridade e visão de longo prazo.
O futuro do sistema elétrico brasileiro será definido não apenas pela energia que produz, mas pela qualidade técnica e ética de suas decisões.
Jornal O Estado de São Paulo, 6 de outubro de 2025
Introdução: O último dia da X Semana de la Energía
O quarto e último dia da X Semana de la Energía, realizada em Santiago do Chile em 3 de outubro de 2025, foi marcado por debates de alto nível que conectaram três eixos fundamentais da transição energética na América Latina e no Caribe: consumo inteligente e flexível, integração energética regional e desenvolvimento de cadeias de valor e capital humano.
Ao longo dos painéis, líderes de governos, organismos internacionais, academia, setor privado e sindicatos compartilharam visões sobre como transformar desafios em oportunidades. Estar presente neste evento me permitiu não apenas acompanhar discursos técnicos, mas interpretar tendências que moldarão o futuro energético regional .
Painel 1 – Consumo inteligente: o futuro da demanda elétrica
A primeira sessão abordou como a gestão flexível da demanda se tornou um pilar estratégico para a resiliência dos sistemas elétricos da região. Alessandra Amaral (ADELAT) abriu o painel destacando o papel de tarifas dinâmicas, resposta da demanda e políticas de eficiência energética.
Entre os destaques:
Félix Sosa (ANDE, Paraguai) mostrou como tarifas flexíveis já beneficiam setores como irrigação, permitindo ajustes de carga com aviso prévio de 10 minutos. O resultado: uso mais eficiente da infraestrutura e reduções de custos.
Joisa Dutra (FGV CERI, Brasil) reforçou que a sinalização de preços é central. No Brasil, a expansão dos smart meters é condição necessária para que consumidores participem ativamente da transição.
Juan Meriches (Empresas Eléctricas AG, Chile) alertou que a eletrificação da demanda amplia responsabilidades das distribuidoras, exigindo novos investimentos e relacionamento próximo com consumidores.
Juan Carlos Olmedo (Coordinador Eléctrico Nacional, Chile) destacou os veículos elétricos como baterias móveis (V2G/V2H), ressaltando a importância de telecomunicações robustas e mercados que reconheçam a demanda como recurso sistêmico.
Minha leitura é que a América Latina precisa acelerar a digitalização e a automação, garantindo que consumidores se tornem protagonistas da flexibilidade, sem abrir mão da equidade social .
Painel 2 – El tablero energético regional: integração para sistemas resilientes
A segunda sessão, em formato magistral, trouxe experiências comparativas e reflexões sobre a planificação energética regional.
Cristina Lobillo (Comissão Europeia) relatou a trajetória de mais de 50 anos da UE, lembrando que a crise do gás russo mostrou o valor da integração. Dois pontos-chave: objetivo comum e transparência entre países.
Guido Maiulini (OLADE) apresentou estudos que estimam 10 a 20 bilhões de dólares em benefícios anuais até 2045 com a integração elétrica, via arbitragem de preços, reservas compartilhadas e complementariedade de recursos.
Heloisa Borges (EPE, Brasil) enfatizou que o Brasil oferece um exemplo de mercado maduro e diversificado, mas que planos só têm valor quando viram políticas concretas para consumidores.
María Helena Lee (Ministério de Energia do Chile) lembrou que resiliência climática precisa estar no centro da planificação energética.
Marina Gil Sevilla (CEPAL) alertou que a integração exige governança regional, com roadmaps adaptativos.
Ricardo Gorini (IRENA) reforçou que investidores não precisam de precisão absoluta, mas de tendências claras e compromissos consistentes.
Rodrigo Moreno (Universidad de Chile) concluiu que os obstáculos reais não são técnicos, mas regulatórios e institucionais.
O que vejo neste debate é que a integração regional é inevitável: não se trata apenas de linhas de transmissão, mas de mercados, regras, confiança e legitimidade social .
Painel 3 – Cadenas de valor estratégicas para la transición en LAC
O terceiro painel explorou o desenvolvimento de cadeias de valor industriais e tecnológicas vinculadas à transição energética.
Alexandra Planas (BID) deixou claro: exportar minerais não basta. É preciso investir em processamento local, manufatura e políticas de formação técnica.
Arturo Loayza Ordóñez (GIZ) trouxe a experiência do ProTransición, mostrando que cadeias fragmentadas geram ineficiências, enquanto estruturas integradas trazem escala e competitividade.
Mauricio Rebolledo (ISA Energía Chile) destacou que empresas devem ser habitantes do território, fortalecendo fornecedores locais e integrando comunidades.
Ramón Fiestas (GWEC) lembrou que a expansão renovável deve ser acompanhada de industrialização local. Incentivos para produzir componentes estratégicos na região são indispensáveis.
Fernando Javier Lavalli (Energías Renovables de Argentina) resgatou a experiência histórica argentina e defendeu o “triângulo do desenvolvimento”: Estado, ciência/tecnologia e indústria em colaboração.
Minha visão é que a América Latina precisa aproveitar o fenômeno do powershoring, atraindo indústrias energointensivas para seus territórios, mas com foco em valor agregado local e empregos qualificados .
Painel 4 – El recurso humano como catalizador del recurso energético
O último painel do dia trouxe para o centro do debate aquilo que muitas vezes é esquecido: gente é infraestrutura crítica.
Patricia Roa (OIT) mostrou que a transição pode gerar milhões de empregos na região até 2030, mas só se houver formação, certificação e estratégias de mobilidade laboral.
Jessica Miranda (AgenciaSE) apresentou resultados concretos no Chile: mais de 1.100 pessoas capacitadas e 631 certificadas em um ciclo recente, com avanços importantes na inclusão de mulheres em perfis técnicos.
Marco (executivo de empresa de renováveis) destacou a urgência de reduzir burocracias na capacitação, padronizar perfis ocupacionais e alinhar currículos à realidade da transição energética.
Roberto Mendoza León (FOSRM, México) reforçou que a reconversão deve ser feita sem precarização, garantindo negociação coletiva e condições justas.
Pía Suárez (Associação de Mulheres em Energia de Chile) defendeu mentorias, redes de apoio e dados transparentes sobre diversidade.
O consenso é que sem talento humano formado, certificado e protegido, não há como entregar metas de renováveis, hidrogênio ou mobilidade.
Minha interpretação é que o capital humano é o verdadeiro catalisador da transição energética. Precisamos de políticas públicas consistentes, investimentos empresariais escaláveis e liderança feminina para assegurar uma transição justa .
Conclusão: O legado do quarto dia
O quarto dia da X Semana de la Energía demonstrou que a transição energética da América Latina e Caribe não depende apenas de tecnologia ou investimentos, mas de três fatores interligados:
Flexibilidade da demanda para integrar renováveis;
Integração regional para compartilhar recursos e custos;
Cadeias de valor e capital humano para transformar abundância de recursos em desenvolvimento sustentável.
Se a região conseguir avançar nesses três eixos, poderá não só atingir suas metas climáticas, mas também se posicionar como líder global de uma transição justa, inclusiva e competitiva.
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