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Think tank independente com foco em energia, tecnologia e tendências globais. Análises para apoiar decisões estratégicas com visão de impacto.

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Autor: Eduardo Fagundes

  • Smart Cities Inclusivas e Inteligentes

    Smart Cities Inclusivas e Inteligentes

    Introdução

    O conceito de “cidade inteligente” tem se consolidado nas últimas décadas como um eixo estruturante das agendas urbanas globais. Amplamente disseminado por organismos multilaterais, planos nacionais de desenvolvimento e iniciativas privadas, ele representa uma promessa de transformação profunda: cidades mais eficientes, seguras, sustentáveis e conectadas por meio de tecnologias digitais de ponta. No entanto, à medida que o termo se difunde, torna-se igualmente necessário submetê-lo à crítica e à ressignificação.

    Este estudo parte da premissa de que a inteligência urbana não pode ser reduzida à capacidade de sensores, algoritmos e plataformas. Pelo contrário, propõe-se a investigar em que medida as tecnologias digitais podem — ou não — ser colocadas a serviço de uma cidade inclusiva, democrática e comprometida com o bem-estar coletivo. Para isso, assume como base analítica a noção de que a cidade é uma infraestrutura sociotécnica viva, onde inovação tecnológica e inovação social devem caminhar lado a lado.

    Uma Agenda Ampliada: Justiça Urbana, Energia e Inteligência Distribuída

    A partir dessa visão expandida, o presente artigo estrutura-se em torno de sete eixos principais:

    • Justiça urbana e inclusão digital, com base na crítica aos modelos top-down e na valorização da participação cidadã em escala territorial;
    • Energia renovável como direito, incluindo o papel da microgeração, da agricultura solar (agrivoltaica) e das moedas digitais como ferramentas redistributivas;
    • Governança ESG por meio de PPPs e modelos híbridos, com destaque para os fatores críticos de sucesso e as lições internacionais aplicáveis ao contexto brasileiro;
    • Infraestruturas digitais descentralizadas, como Edge Datacenters e sistemas de IA distribuída, voltados à soberania informacional e à autonomia regional;
    • Educação e cidadania ativa como alicerces da inteligência urbana, inclusive no enfrentamento das exclusões digitais e na formação de capacidades locais;
    • Saúde conectada como dimensão estrutural da cidade inteligente, ancorada em dados territoriais e na integração com outras políticas públicas;
    • Governança algorítmica e moedas sociais digitais, explorando novas formas de participação e accountability em ambientes urbanos cada vez mais orientados por dados.

    Da Crítica à Proposição: Um Roteiro Estratégico

    Mais do que um mapeamento teórico, este estudo visa oferecer um roteiro estratégico para a concepção de políticas públicas, programas de inovação e projetos urbanos orientados à equidade. Com isso, busca responder a uma questão central: quais são as condições técnicas, institucionais e sociais para que a cidade inteligente seja também uma cidade justa?

    A resposta a essa pergunta exige a superação de visões tecnodeterministas e a construção de abordagens integradas, intersetoriais e ancoradas no território. Isso implica reconhecer que a inteligência urbana é antes de tudo uma construção coletiva, que depende tanto de redes de fibra ótica quanto de redes de solidariedade, tanto de algoritmos quanto de valores, tanto de datacenters quanto de centros comunitários.

    Com isso, pretende-se contribuir para o debate contemporâneo sobre o futuro das cidades, oferecendo insumos técnicos, estratégicos e éticos para os que se dedicam a pensar e construir territórios verdadeiramente inteligentes.

    Abstract

    This paper explores the emerging paradigm of inclusive and intelligent smart cities, integrating advanced digital technologies with a deep commitment to social equity, sustainability, and participatory governance. Grounded in a socio-technical systems approach, the study critically examines the limitations of top-down urban digitalization and advocates for a people-centered model of innovation. Drawing from recent academic contributions, it highlights the relevance of renewable energy as a right, the strategic role of social digital currencies in redistributive policies, and the transformative potential of artificial intelligence and edge computing in decentralized urban infrastructures.

    Special attention is given to the governance architectures that enable cross-sector collaboration, including new public-private-community partnerships (PPPPs) and ESG-aligned financing models. The research also addresses key domains such as digital education, health data platforms, and algorithmic accountability, framing them as essential pillars for digital citizenship and urban sovereignty.

    The paper concludes by proposing a set of strategic initiatives — including agrivoltaic-energy networks, modular edge datacenters, and AI-based observatories — designed to guide future smart city projects in Latin America and beyond. By positioning the city as a laboratory of complex and contextualized solutions, this work contributes to rethinking urban intelligence not as a technological fetish, but as a collective social endeavor.

    Da Cidade Conectada à Cidade Inclusiva

    O conceito de smart city evoluiu significativamente nas últimas duas décadas, saindo de uma concepção predominantemente tecnológica e funcional — centrada na eficiência e na conectividade — para um campo de disputas sociais, éticas e políticas. Este capítulo propõe uma transição conceitual e estratégica: da cidade conectada, marcada por infraestrutura e sensores, à cidade inclusiva, que considera a diversidade de seus habitantes, a justiça territorial e a centralidade da participação cidadã. O ponto de partida é uma crítica fundamentada aos modelos de urbanismo digital top-down, com base em evidências da literatura recente.

    A crítica aos modelos top-down de urbanismo digital

    Boa parte dos projetos de cidades inteligentes implementados globalmente nos últimos anos tem adotado uma abordagem vertical, centrada em grandes players de tecnologia, com forte ênfase em controle, monitoramento e eficiência operacional. Esta lógica top-down privilegia uma racionalidade instrumental, muitas vezes distante das realidades sociais e territoriais das comunidades locais.

    Colding, Nilsson e Sjöberg (2024), no artigo Smart Cities for All?, questionam a validade de estratégias que não levam em conta as “capacidades de conversão” de diferentes grupos sociais — conceito derivado da abordagem das capacidades de Amartya Sen. Segundo os autores, a desigualdade digital se manifesta não apenas no acesso, mas também na apropriação significativa das tecnologias. A cidade inteligente, portanto, corre o risco de reforçar desigualdades estruturais se não incorporar mecanismos explícitos de inclusão ativa.

    A digitalização, em vez de ser uma alavanca de equidade, pode se tornar um vetor de exclusão — especialmente quando combinada a sistemas automatizados de decisões públicas que carecem de transparência, accountability e diversidade de dados. A gestão de algoritmos por autoridades públicas sem controle social é um risco real, e a literatura tem alertado para a reprodução de vieses no desenho de serviços urbanos, desde segurança até saúde e educação.

    A cidade como infraestrutura sociotécnica viva

    Diante dessa crítica, propõe-se uma visão alternativa: pensar a cidade não apenas como um território físico ou um sistema de redes técnicas, mas como uma infraestrutura sociotécnica viva. Isto significa entender a cidade como um organismo em constante retroalimentação entre pessoas, máquinas, dados, normas e culturas. Essa perspectiva exige abordagens integradas, sensíveis ao território e abertas à pluralidade de agentes e saberes.

    O conceito de infraestrutura sociotécnica viva propõe que sensores, algoritmos e plataformas digitais devem ser concebidos como extensões das capacidades humanas e não substitutos. Ao invés de invisibilizar o papel das pessoas na produção da cidade, o projeto de uma cidade inteligente inclusiva deve tornar visíveis os fluxos de poder, as decisões automatizadas e os processos de exclusão implícitos.

    Nesse sentido, Katmada, Katsavounidou e Kakderi (2023), ao explorarem o conceito de Platform Urbanism for Sustainability, argumentam que as plataformas digitais podem ser redesenhadas como instrumentos de escuta, deliberação e cocriação de políticas urbanas. A transição para plataformas inclusivas envolve, por exemplo, códigos abertos, participação deliberativa em tempo real e garantias de representatividade de grupos tradicionalmente marginalizados — como mulheres, idosos, pessoas com deficiência e populações racializadas.

    Inclusão, territorialidade e justiça urbana digital

    A construção de uma cidade realmente inteligente deve ser inseparável de três eixos: inclusão, territorialidade e justiça digital. Inclusão significa mais do que ofertar acesso técnico à internet; envolve reconhecer os diferentes modos de vida e traduzir a complexidade social em arquiteturas digitais acessíveis, compreensíveis e úteis. Territorialidade refere-se à valorização de saberes locais e de formas comunitárias de gestão dos bens comuns — desde a energia até os dados. Justiça digital é o princípio orientador: garantir que os processos algorítmicos, as decisões automatizadas e os sistemas digitais respeitem os direitos humanos, promovam a equidade e operem com ética.

    Essa tríade exige um redesenho institucional. Não basta adaptar legislações para o digital. É preciso criar novos espaços institucionais e regulatórios que permitam o controle social sobre plataformas, a auditoria de algoritmos e o uso democrático dos dados públicos. Isso inclui desde mecanismos de escuta ativa (como consultas públicas digitais), até a criação de conselhos de governança digital com participação paritária da sociedade civil.

    As experiências analisadas por Katmada et al. (2023) em cidades como Londres, Bengaluru e Kampala demonstram que iniciativas locais de cocriação — como laboratórios vivos (living labs), assembleias digitais e urbanismo tático com suporte digital — têm maior potencial de impacto quando construídas com mediação territorial. Esse tipo de mediação garante que a tecnologia se adapte ao lugar, e não o contrário.

    Considerações parciais

    O deslocamento da “cidade conectada” para a “cidade inclusiva” não é apenas semântico, mas político e estrutural. Supõe uma inflexão teórica e prática: da primazia da técnica para a centralidade das pessoas. As referências analisadas neste capítulo demonstram que a tecnologia, em si, não garante inclusão — mas pode ser uma poderosa aliada quando submetida a processos democráticos, territoriais e éticos.

    Ao incorporar o conceito de cidade como infraestrutura sociotécnica viva, abrimos espaço para pensar projetos urbanos em que sensores e algoritmos estejam a serviço da equidade — e não apenas da eficiência. A seguir, veremos como a energia renovável, distribuída de forma inteligente e aliada a moedas sociais, pode se tornar uma dessas infraestruturas distributivas de justiça urbana.

    Energia Renovável como Direito e Plataforma de Equidade

    A transição energética não pode ser pensada apenas como substituição de fontes fósseis por renováveis. Ela deve ser compreendida como um projeto de reestruturação social e econômica das cidades, principalmente em contextos de vulnerabilidade. A energia, além de insumo técnico, é vetor de cidadania e dignidade. Quando distribuída de forma justa e inteligente, torna-se uma infraestrutura de equidade. Este capítulo explora como iniciativas de geração renovável descentralizada, associadas a moedas sociais e tecnologias digitais, podem transformar territórios marcados pela exclusão em plataformas de justiça energética.

    Agrivoltaico e microgeração em zonas vulneráveis

    A descentralização da matriz energética, impulsionada pela microgeração distribuída e pela queda dos custos de tecnologias fotovoltaicas, abre novas possibilidades para a inclusão energética de populações historicamente à margem do sistema. Entre essas possibilidades, destaca-se o modelo agrivoltaico, que combina produção de alimentos e geração de energia solar no mesmo espaço, com alta aplicabilidade em periferias urbanas, zonas periurbanas e assentamentos produtivos.

    Mais do que otimizar o uso da terra, o agrivoltaico permite a criação de ecossistemas produtivos energizados, que reduzem a vulnerabilidade socioambiental, fortalecem a segurança alimentar e promovem renda local. Quando aliado a modelos cooperativos e circuitos curtos de comercialização, esse modelo se torna um instrumento eficaz de desenvolvimento sustentável. Em regiões de baixo IDH ou de alta instabilidade climática, a implantação de microusinas solares pode garantir resiliência elétrica para escolas, postos de saúde, centros comunitários e moradias.

    O desafio, no entanto, está menos na viabilidade técnica e mais na engenharia institucional e financeira. A implementação de microgeração em zonas vulneráveis requer mecanismos de financiamento inclusivos, marcos regulatórios sensíveis ao território e participação ativa das comunidades. Aqui, entram em cena instrumentos inovadores como as moedas sociais digitais.

    Moeda social como ferramenta de redistribuição energética

    Inspirado no modelo do Greencoin Project (2023), o uso de moedas sociais atreladas à produção e ao consumo de energia limpa é uma estratégia promissora para reverter desigualdades energéticas e estimular comportamentos pró-ambientais. Essas moedas podem ser distribuídas com base em métricas de economia de energia, participação comunitária, produção agrícola associada à energia renovável ou mesmo pela adesão a práticas de consumo consciente.

    Diferente de políticas compensatórias unidirecionais, a moeda social permite a construção de um circuito econômico local, no qual os ganhos gerados pela energia renovável permanecem no território. Ao serem utilizadas em comércios locais, transporte público, eventos culturais ou serviços públicos digitais, essas moedas estimulam a economia circular, promovem o pertencimento comunitário e fortalecem a autonomia cidadã.

    No contexto brasileiro, onde há experiências consolidadas de moedas sociais como o Banco Palmas, associar esse instrumento à infraestrutura energética pode representar uma inflexão na lógica da pobreza energética. A energia, nesse modelo, deixa de ser um custo para o consumidor e passa a ser um ativo comunitário.

    O papel da inteligência artificial na gestão da geração e do consumo

    A complexidade da gestão descentralizada da energia, especialmente em comunidades com múltiplos perfis de consumo, torna o uso da inteligência artificial (IA) um fator estratégico. Algoritmos de aprendizado de máquina podem ser empregados para prever padrões de demanda, otimizar o uso dos sistemas fotovoltaicos, ajustar a distribuição dos créditos em moeda social e alertar famílias sobre picos de consumo ou riscos de interrupção.

    Além disso, a IA pode ser utilizada para criar modelos preditivos de impacto social, associando dados de consumo energético com indicadores educacionais, de saúde e de renda. Isso permite uma gestão integrada, na qual a energia não é apenas um insumo técnico, mas um indicador da dinâmica socioeconômica local.

    A IA também facilita a governança do sistema, permitindo que os próprios moradores visualizem seus dados de consumo, tomem decisões informadas e participem ativamente da gestão energética. Sistemas amigáveis de visualização, integrados a aplicativos simples, reforçam a transparência e o empoderamento comunitário.

    Considerações parciais

    A energia, quando pensada como direito e não como mercadoria, abre caminhos para a transformação profunda das cidades. Modelos como o agrivoltaico, combinados a moedas sociais e suportados por inteligência artificial, permitem a criação de plataformas locais de equidade. O caso de São Sebastião é um exemplo concreto de como inovação tecnológica e justiça social podem caminhar juntas, desde que ancoradas em desenho institucional participativo, sensibilidade territorial e compromisso ético com o futuro urbano.

    Na próxima seção, exploraremos como a lógica ESG pode ser expandida para além das métricas corporativas, tornando-se um verdadeiro eixo de governança compartilhada entre governos, empresas e comunidades.

    ESG e PPP: Novas Arquiteturas de Governança para Cidades Inteligentes

    À medida que o paradigma das cidades inteligentes se consolida como vetor central das políticas urbanas contemporâneas, torna-se inevitável o enfrentamento de um desafio estrutural: como financiar, operacionalizar e sustentar soluções urbanas complexas em um ambiente marcado por restrições fiscais, desigualdades territoriais e pressões ambientais? Este capítulo analisa o papel das Parcerias Público-Privadas (PPPs) — e sua evolução para arranjos mais amplos, como as Parcerias Público-Privadas-Populares (PPPPs) — como instrumento de governança e viabilização financeira de projetos urbanos integrados ao conceito de ESG (ambiental, social e governança).

    Inspirando-se na literatura internacional recente (Mirzaee et al., 2022; Quan & Solheim, 2023), discutiremos como a articulação entre diferentes atores — Estado, mercado e sociedade civil — pode permitir uma arquitetura institucional mais resiliente, inclusiva e estratégica para a implementação de soluções de cidade inteligente no contexto brasileiro.

    PPP e PPPP como modelo de financiamento urbano inteligente

    As PPPs têm sido amplamente utilizadas em infraestrutura tradicional — como saneamento, transporte e iluminação pública — e agora se expandem para soluções mais sofisticadas, como redes de sensores, datacenters de borda (edge computing), plataformas de mobilidade integrada, projetos de eficiência energética e sistemas de segurança baseados em inteligência artificial.

    No contexto das smart cities, essa forma contratual apresenta vantagens importantes: viabiliza a introdução de capital privado em projetos de alta complexidade técnica e longa maturação, permite a gestão de riscos compartilhados e induz a modernização dos serviços públicos. No entanto, a transposição pura e simples dos modelos tradicionais de PPP para o campo das tecnologias urbanas tem se mostrado insuficiente. Isso ocorre porque os projetos de cidade inteligente demandam mais do que infraestrutura física: requerem interoperabilidade digital, sensibilidade social, engajamento comunitário e capacidade de adaptação contínua.

    É nesse ponto que ganha relevância o conceito de PPPP – Parceria Público-Privada-Popular, que amplia o escopo da parceria para incluir a sociedade civil organizada como ator legítimo na concepção, implementação e monitoramento dos projetos. Quan & Solheim (2023) defendem que as PPPPs podem ser a chave para compatibilizar inovação tecnológica com justiça territorial, promovendo uma cidade digital inclusiva e responsiva às necessidades reais da população.

    Fatores críticos de sucesso: contrato, colaboração e sustentabilidade

    O sucesso das parcerias em projetos de cidades inteligentes está diretamente relacionado a três pilares: estrutura contratual clara, mecanismos colaborativos robustos e compromissos explícitos com a sustentabilidade.

    1. Contrato: A literatura destaca que contratos de PPP voltados para soluções urbanas digitais devem incorporar cláusulas específicas sobre segurança de dados, atualização tecnológica, governança algorítmica e continuidade dos serviços digitais em caso de encerramento da parceria. Conforme Almarri & Boussabaine (2023), o desenho contratual deve ser suficientemente flexível para acomodar inovações emergentes, mas também suficientemente robusto para garantir responsabilidade, transparência e performance.
    2. Colaboração: A lógica adversarial tradicional de contratos público-privados deve dar lugar a arranjos colaborativos baseados em metas compartilhadas, fluxos de informação contínuos e instâncias de governança conjunta. A literatura recente sugere que fóruns de co-gestão com representantes do setor público, empresas operadoras e organizações da sociedade civil melhoram a governança dos projetos e reduzem os riscos políticos e técnicos.
    3. Sustentabilidade: Projetos urbanos inovadores só serão legítimos se incorporarem indicadores ESG desde sua concepção. Isso significa que os impactos ambientais devem ser monitorados em tempo real; os benefícios sociais, mensurados por indicadores de equidade e inclusão; e a governança, auditada por órgãos independentes com participação multissetorial. A integração entre plataformas tecnológicas e instrumentos de ESG dinâmico é uma fronteira importante do novo urbanismo digital.

    Experiência internacional e implicações para o Brasil

    Diversas cidades no mundo têm experimentado modelos híbridos de governança para estruturar soluções de cidade inteligente com base em PPPs ou PPPPs. A cidade de Barcelona, por exemplo, adotou uma abordagem centrada na soberania digital, criando uma política pública para limitar o poder das grandes plataformas e garantir que os dados coletados em serviços urbanos sejam de propriedade pública. Já Copenhague tem integrado PPPs com metas ambientais estritas, vinculando a concessão de serviços urbanos inteligentes à redução de emissões e à melhoria da qualidade de vida em bairros vulneráveis.

    Singapura, por sua vez, aposta em PPPs fortemente ancoradas em metas de eficiência e inovação, com uso intensivo de IA, sensores e plataformas de predição urbana. Em todos os casos, nota-se a crescente institucionalização de métricas ESG como condição de elegibilidade e monitoramento das parcerias.

    No Brasil, o desafio é duplo: além de criar condições legais e operacionais para que PPPs avancem em áreas tecnológicas, é preciso assegurar que essas parcerias estejam conectadas a objetivos públicos legítimos e socialmente pactuados. A ausência de uma política nacional de cidades inteligentes com foco em equidade dificulta a replicação de modelos internacionais. No entanto, há oportunidades concretas em programas como o Pró-Cidades, os editais de P&D regulados pela ANEEL, e os acordos de cooperação entre municípios e empresas de tecnologia.

    Considerações parciais

    As parcerias para cidades inteligentes precisam ir além da lógica instrumental da delegação de serviços. Devem ser concebidas como instrumentos de transformação urbana orientados por valores públicos, onde a tecnologia é um meio — e não o fim. A maturidade contratual, a capacidade de gestão compartilhada e o enraizamento territorial são os elementos que definem o sucesso ou o fracasso dessas iniciativas. Incorporar os princípios ESG e valorizar a participação da sociedade civil não é apenas uma boa prática — é um imperativo ético e estratégico para que o projeto de cidade inteligente não seja excludente, opaco ou frágil.

    No próximo capítulo, analisaremos como a inteligência artificial e os edge datacenters moldam a infraestrutura invisível das cidades digitais, seus riscos e potencial transformador.

    Edge Computing, Inteligência Artificial e Soberania Urbana

    À medida que as cidades evoluem para estruturas cada vez mais conectadas e orientadas por dados, a capacidade de tomar decisões em tempo real, de forma segura e autônoma, tornou-se um dos pilares da nova governança urbana. Este capítulo explora como a combinação entre edge computing e inteligência artificial distribuída está moldando uma nova infraestrutura técnica e institucional para as cidades inteligentes — uma infraestrutura que não apenas processa dados, mas reforça a soberania digital e o desenvolvimento regional.

    Com base nas contribuições recentes de Henderson (2024) e Biswas (2024), discutiremos o papel estratégico dos edge datacenters na redução da latência, no controle local dos dados e na operação de sistemas urbanos críticos. Mais do que uma opção tecnológica, o edge computing representa uma decisão política e territorial sobre onde, como e por quem os dados urbanos serão processados e convertidos em ação.

    A importância dos Edge Datacenters e da IA distribuída

    Tradicionalmente, as cidades que implementaram sistemas inteligentes basearam-se em arquiteturas centralizadas de computação em nuvem. Contudo, essa abordagem mostra-se limitada quando se trata de aplicações que exigem respostas imediatas, resiliência em contextos adversos ou governança territorializada dos dados.

    É nesse contexto que os edge datacenters emergem como solução técnica e estratégica. Eles são centros de processamento de dados localizados fisicamente mais próximos dos dispositivos e sensores — como câmeras, medidores inteligentes, semáforos e estações ambientais — permitindo uma redução significativa na latência e maior confiabilidade dos sistemas urbanos.

    Segundo Henderson (2024), o edge computing, ao ser combinado com algoritmos de IA embarcados, permite que a própria borda da rede tome decisões rápidas e contextuais, sem a necessidade de comunicação constante com centros de dados distantes. Isso é especialmente relevante para sistemas que operam em situações críticas, como controle de tráfego, resposta a emergências, monitoramento ambiental e gestão de cargas energéticas.

    Além disso, Biswas (2024) argumenta que a inteligência artificial distribuída — operando em dispositivos ou clusters locais — amplia a eficiência energética dos sistemas, reduz custos operacionais e permite o treinamento de modelos com dados locais sensíveis, respeitando requisitos de privacidade e conformidade regulatória.

    Redução de latência, segurança de dados e autonomia local

    Três benefícios centrais decorrem da adoção do edge computing e da IA distribuída em ambientes urbanos:

    1. Redução de latência: Sistemas de mobilidade autônoma, iluminação adaptativa e controle de saneamento inteligente dependem de respostas em milissegundos. A latência causada por infraestruturas centralizadas compromete a eficácia desses sistemas. Edge datacenters reduzem drasticamente o tempo entre a coleta do dado e a ação correspondente.
    2. Segurança e privacidade de dados: Processar dados no próprio território da cidade — ou mesmo dentro de bairros ou equipamentos públicos — minimiza os riscos de interceptação, espionagem e vazamentos. Além disso, facilita o cumprimento de legislações locais de proteção de dados, fortalecendo a confiança institucional dos cidadãos.
    3. Autonomia e soberania digital local: Ao descentralizar o poder computacional, o edge computing empodera governos locais, comunidades e empresas regionais, criando um ecossistema urbano menos dependente de infraestruturas externas ou concentradas em poucos provedores globais. Isso favorece a governança territorial dos dados e incentiva cadeias produtivas locais de inovação.

    Aplicações concretas: mobilidade, energia, saneamento e iluminação pública

    A tecnologia de borda não é apenas uma promessa — já está sendo aplicada em diversas frentes de política urbana inteligente:

    • Mobilidade urbana: Semáforos inteligentes conectados a sensores de fluxo e algoritmos de IA permitem o ajuste dinâmico da malha viária. Em cidades com edge computing, esse ajuste ocorre em tempo real, mesmo sem conexão com a nuvem central.
    • Energia e geração distribuída: Sistemas de microgeração solar, como os estudados em São Sebastião, podem utilizar IA local para prever geração, modular o consumo e redirecionar excedentes. Edge datacenters integrados à rede elétrica contribuem para a operação segura e eficiente de microgrids.
    • Saneamento básico: Em locais com infraestrutura precária, sensores conectados a plataformas locais permitem alertas imediatos sobre vazamentos, entupimentos ou contaminações. Isso acelera a resposta e reduz desperdícios.
    • Iluminação pública adaptativa: A integração entre sensores de presença, luminárias LED e edge computing permite que a cidade ilumine de forma responsiva, reduzindo o consumo energético sem comprometer a segurança.

    Soberania digital e desenvolvimento regional

    O debate sobre edge computing e IA distribuída não se limita à engenharia ou à ciência da computação. Ele nos obriga a pensar sobre quem detém o poder sobre os dados, onde as decisões são tomadas e quem se beneficia da digitalização do urbano.

    Ao implantar datacenters locais, formar profissionais regionais e criar protocolos próprios de uso e compartilhamento de dados, as cidades passam a construir sua soberania digital. Isso significa que podem decidir, de forma autônoma e transparente, como a inteligência territorial será empregada para gerar bem-estar, inclusão e desenvolvimento sustentável.

    A presença de edge datacenters em regiões periféricas ou cidades médias também cria novas oportunidades de desenvolvimento regional, estimulando a descentralização da infraestrutura digital, atraindo investimentos e fortalecendo os ecossistemas locais de inovação. O Brasil, com sua imensa diversidade territorial, pode se beneficiar enormemente dessa abordagem se articular incentivos públicos, regulação clara e alianças estratégicas com universidades e setor produtivo.

    Considerações parciais

    A consolidação do edge computing e da IA distribuída como parte da infraestrutura urbana representa um salto qualitativo na gestão das cidades. Mais do que otimizar sistemas, essas tecnologias inauguram uma nova lógica territorial: dados e decisões no lugar onde as vidas acontecem. Essa descentralização técnica precisa vir acompanhada de descentralização política, garantindo que os avanços tecnológicos sirvam à equidade urbana, à participação cidadã e à construção de um projeto coletivo de cidade inteligente.

    No próximo capítulo, aprofundaremos o papel da educação e da inclusão digital como base estruturante de qualquer projeto de cidade inteligente comprometido com o bem comum.

    Educação, Inclusão Digital e Cidadania Ativa

    A consolidação de cidades inteligentes depende, de forma decisiva, do papel da educação como vetor estruturante de cidadania, inclusão digital e justiça urbana. Em um contexto marcado por automação, plataformas e algoritmos, a capacidade de compreender e interagir criticamente com sistemas digitais passa a ser um requisito central da vida urbana. Não se trata apenas de garantir conectividade, mas de construir sujeitos urbanos ativos, capazes de participar, deliberar e transformar.

    Este capítulo investiga como a educação pode ser mobilizada como infraestrutura estratégica da inteligência urbana, articulando-se a políticas de inclusão digital e participação cidadã. Discutem-se ainda os modelos de engajamento público nas smart cities, com base em estudos recentes, e propõe-se o referencial de Amartya Sen como matriz teórica para repensar a equidade em cidades digitalizadas.

    Educação como infraestrutura da cidade inteligente

    Ao se reconhecer a cidade como uma infraestrutura sociotécnica viva, é necessário expandir o conceito de educação: ela deixa de ser um serviço isolado e passa a ser fundamento da inteligência coletiva urbana. Em vez de apenas formar mão de obra para a economia digital, a educação deve capacitar os cidadãos para:

    • Decifrar sistemas algorítmicos: compreender o funcionamento de dispositivos inteligentes, aplicativos urbanos e plataformas de decisão automatizada.
    • Interagir com dados e indicadores urbanos: desenvolver letramento em dados, interpretação de dashboards e engajamento em plataformas participativas.
    • Reivindicar direitos digitais e urbanísticos: atuar de forma crítica frente a decisões públicas mediadas por tecnologia.

    Essa perspectiva exige uma alfabetização digital crítica e contínua, associada a práticas pedagógicas que conectem o cotidiano urbano aos conteúdos educacionais — superando o modelo meramente técnico-instrumental de formação digital.

    Modelos de participação cidadã nas cidades inteligentes

    Segundo pesquisa de Jang (Jang Seok-Gil, 2025), há ao menos três níveis de participação cidadã nas cidades inteligentes, cada um exigindo competências educacionais distintas:

    1. Participação funcional: uso de canais digitais para acessar serviços urbanos (como aplicativos de transporte ou iluminação pública). É a forma mais básica de envolvimento.
    2. Participação deliberativa: envolve cidadãos em consultas, plataformas de governança ou fóruns urbanos. Exige habilidades argumentativas, compreensão de políticas públicas e leitura crítica de dados.
    3. Participação co-criativa: ocorre quando cidadãos, coletivos e instituições colaboram ativamente no design e implementação de soluções urbanas digitais — por exemplo, em hackathons, laboratórios urbanos, observatórios de dados ou projetos de ciência cidadã.

    À medida que as cidades inteligentes adotam arquiteturas mais distribuídas e orientadas a dados, a participação co-criativa ganha relevância estratégica. Porém, ela só é viável se houver base educacional robusta, territorializada e sensível às múltiplas realidades sociais.

    A abordagem de Amartya Sen: capacidades para a cidadania digital

    A teoria das capacidades, desenvolvida por Amartya Sen, oferece um referencial valioso para avaliar o grau de inclusão efetiva nas cidades inteligentes. Ao invés de mensurar apenas a posse de bens (como acesso à internet ou dispositivos), essa abordagem considera as liberdades reais que os indivíduos têm para viver a vida que valorizam.

    Aplicada ao contexto urbano digital, essa teoria leva a reflexões como:

    • Um cidadão que tem acesso à tecnologia, mas não a compreende ou não se sente seguro para usá-la, não está efetivamente incluído.
    • Uma cidade com alto índice de cobertura de Wi-Fi público não será justa se os grupos vulneráveis não conseguirem se apropriar dessa rede para fins educacionais, profissionais ou cívicos.
    • A diversidade de capacidades urbanas deve ser reconhecida — pessoas em situação de rua, idosos, migrantes, pessoas com deficiência e jovens têm diferentes necessidades e formas de relação com a cidade digital.

    No artigo Smart Cities for All? (Colding et al., 2024), os autores apontam que muitas iniciativas de smart cities reproduzem injustiças estruturais ao presumirem um sujeito urbano padrão — hiperconectado, alfabetizado digitalmente, economicamente ativo. Ao fazer isso, deixam à margem amplas camadas da população.

    A aplicação da teoria de Sen, nesse contexto, exige políticas públicas orientadas não apenas à provisão de infraestrutura, mas também à formação de capacidades distribuídas e emancipatórias. Educação e inclusão digital tornam-se, portanto, dimensões interdependentes de justiça urbana digital.

    Considerações parciais

    O avanço das cidades inteligentes impõe uma reconfiguração profunda das políticas educacionais. Em vez de adaptar escolas a novas tecnologias, trata-se de posicionar a educação como infraestrutura de cidadania digital, capaz de sustentar a participação crítica e criativa dos sujeitos na vida urbana.

    Modelos de participação mais sofisticados exigem investimento constante em alfabetização digital crítica, letramento em dados e formação para o engajamento público. Nesse cenário, a teoria das capacidades oferece um norte ético: cidades são inteligentes quando ampliam as possibilidades reais de vida digna, participação e liberdade.

    Saúde Urbana Conectada: Bem-Estar como Pilar de Planejamento

    Historicamente, o planejamento urbano relegou o bem-estar populacional a uma função secundária, muitas vezes limitada à oferta reativa de serviços de saúde. Com o avanço das cidades inteligentes, no entanto, consolida-se uma mudança de paradigma: a saúde passa a ser concebida como infraestrutura estratégica, integrada a sistemas urbanos de dados, mobilidade, energia e educação.

    Este capítulo analisa como tecnologias de monitoramento, inteligência artificial (IA) e plataformas integradas estão transformando o conceito de saúde urbana. Com base em experiências internacionais e novas arquiteturas digitais, discute-se o papel da prevenção, da personalização dos cuidados e da intersetorialidade como pilares de uma cidade saudável e inclusiva.

    Dados de saúde e IA para triagem e prevenção

    O uso de tecnologias de sensoriamento e análise preditiva está reformulando a forma como os territórios gerenciam riscos sanitários, epidemias e o próprio cotidiano do cuidado. A captação de dados em tempo real — oriundos de dispositivos vestíveis, prontuários eletrônicos, sensores ambientais e dados de mobilidade — permite identificar padrões e antecipar demandas antes que se tornem crises.

    A inteligência artificial (IA), aplicada à saúde urbana, atua principalmente em três eixos:

    • Triagem inteligente: algoritmos identificam sintomas precoces e padrões de risco, priorizando atendimentos com base em urgência, histórico clínico e dados georreferenciados.
    • Prevenção personalizada: modelos preditivos recomendam ações preventivas individualizadas, levando em conta condições ambientais locais e perfis biomédicos.
    • Gestão territorial da saúde: mapas de calor, dashboards interativos e plataformas integradas facilitam o planejamento de campanhas de vacinação, gestão de insumos e distribuição de recursos.

    Essa abordagem permite uma mudança do modelo curativo para o modelo preventivo, mais eficiente, menos oneroso e socialmente justo. A coleta ética, segura e anonimizada dos dados, no entanto, permanece como um dos principais desafios normativos e operacionais.

    URBANAGE e o urbanismo do envelhecimento

    Um exemplo paradigmático da articulação entre tecnologia e bem-estar é o projeto europeu URBANAGE, destacado por Tupasela et al. (2023). A iniciativa visa tornar as cidades mais amigáveis ao envelhecimento, reconhecendo que a longevidade é um vetor central da urbanização contemporânea.

    As principais estratégias do URBANAGE incluem:

    • Mapeamento de barreiras urbanas por meio de crowdsourcing e sensores geoespaciais, identificando obstáculos à mobilidade de idosos.
    • Análise preditiva de acessibilidade, cruzando dados de saúde, mobilidade e infraestrutura para orientar intervenções urbanas.
    • Modelagem de cenários de envelhecimento saudável, usando simulações digitais para avaliar os impactos de decisões urbanísticas em populações idosas.

    O projeto amplia o conceito de “cidade inteligente” ao substituir a lógica da eficiência pela lógica do cuidado, valorizando a escuta dos usuários e a adaptação territorial às demandas do ciclo de vida.

    Ao articular tecnologias com sensibilidade social, o URBANAGE propõe um urbanismo do envelhecimento — uma abordagem que deve inspirar políticas urbanas em países de rápido envelhecimento populacional como o Brasil.

    Plataformas intersetoriais: saúde, educação e energia

    Cidades verdadeiramente inteligentes são aquelas que integram seus sistemas em plataformas transversais, rompendo os silos tradicionais das políticas públicas. A saúde urbana, nesse contexto, não se isola: ela se interconecta com a educação, a habitação, a energia e a mobilidade.

    Alguns exemplos dessa integração:

    • Educação e saúde: programas de educação em saúde mediados por IA e plataformas digitais, com foco em prevenção, saúde mental e nutrição escolar.
    • Energia e saúde: uso de dados de consumo energético domiciliar como proxy para monitoramento de bem-estar — por exemplo, identificação de quedas de energia em residências de idosos, o que pode sinalizar risco de isolamento ou vulnerabilidade.
    • Ambientes urbanos responsivos: sistemas de iluminação e ventilação automatizados em escolas e hospitais, programados para reduzir doenças respiratórias e melhorar o conforto térmico.

    Essa intersetorialidade digital exige interoperabilidade técnica, segurança de dados e governança compartilhada. Mais do que apenas integrar sistemas, é necessário repensar os próprios modos de produção das políticas urbanas, com foco na experiência do cidadão e na qualidade de vida como critério central de planejamento.

    Considerações parciais

    A saúde urbana conectada inaugura um novo horizonte de planejamento, no qual o bem-estar da população se torna princípio organizador da infraestrutura digital e territorial. A combinação de dados, IA e plataformas colaborativas permite decisões mais precisas, políticas mais justas e cidades mais humanas.

    Para que essa transformação se consolide, é necessário adotar abordagens que valorizem a diversidade das experiências urbanas, priorizem os grupos vulneráveis e reconheçam a saúde não apenas como ausência de doença, mas como condição plena de dignidade, mobilidade e pertencimento.

    Moeda Social, Dados e Governança Digital Participativa

    As cidades do século XXI enfrentam um desafio duplo: ampliar a participação cidadã nos processos decisórios e, simultaneamente, garantir que os benefícios das inovações tecnológicas não aprofundem desigualdades preexistentes. Neste contexto, moedas sociais digitais e governança algorítmica ética despontam como caminhos promissores para uma urbanização mais justa, inclusiva e transparente.

    Este capítulo analisa o papel das moedas digitais locais como instrumentos de redistribuição territorializada de valor e catalisadores de engajamento social. Ao lado disso, discute-se o uso ético dos dados e dos algoritmos em plataformas de decisão urbana, com ênfase na autonomia comunitária, soberania informacional e justiça digital.

    Moedas sociais digitais e redistribuição urbana

    As moedas sociais digitais, concebidas para circular dentro de territórios delimitados — bairros, cidades ou regiões —, não apenas promovem economias locais resilientes como podem ser integradas a estratégias públicas de eficiência energética, alimentação, educação e saúde preventiva.

    Diferentemente das criptomoedas tradicionais, cujo foco é a descentralização financeira global, as moedas sociais digitais operam dentro de arquiteturas comunitárias e em sintonia com objetivos sociais pactuados, tais como:

    • Fomento ao comércio de bairro e cadeias curtas de produção;
    • Valorização de comportamentos sustentáveis, como reciclagem ou economia de energia;
    • Estímulo à participação cidadã por meio de gamificação e recompensas digitais;
    • Apoio à circulação de saberes, serviços e competências entre vizinhos.

    Neste modelo, a infraestrutura digital torna-se um mecanismo de política pública redistributiva, promovendo vínculos, pertencimento e autonomia local. A governança da moeda — inclusive seus critérios de emissão e conversão — deve ser co-criada com a comunidade, evitando verticalizações tecnocráticas.

    Algoritmos e dados como bens comuns urbanos

    A integração entre moedas sociais digitais e plataformas inteligentes de gestão requer transparência algorítmica, proteção de dados pessoais e responsabilidade sobre os impactos das decisões automatizadas.

    Inspirando-se em Morozov e Bria (2023), defende-se a reapropriação dos dados urbanos como bem comum, uma vez que são fruto da interação coletiva entre cidadãos e suas infraestruturas. A opacidade algorítmica não apenas ameaça a privacidade individual, mas compromete a soberania decisória local, ao transferir controle a plataformas proprietárias ou interesses comerciais alheios ao território.

    Assim, políticas públicas que envolvem moedas sociais e dados devem observar os seguintes princípios:

    • Algoritmos auditáveis: códigos e modelos de decisão devem ser verificáveis por pares e avaliados quanto a vieses discriminatórios;
    • Participação ampliada: comunidades devem ter voz nas decisões sobre coleta, uso e finalidades dos dados;
    • Finalidade pública explícita: os sistemas devem ter objetivos alinhados a agendas sociais pactuadas e verificáveis;
    • Dados interoperáveis e abertos: respeitados os critérios de anonimização, os dados devem circular entre setores e plataformas para gerar valor público.

    A ética algorítmica territorializada requer que as tecnologias sirvam aos projetos coletivos das comunidades, e não apenas aos objetivos de eficiência ou inovação por si só.

    Potencial de replicação e desafios institucionais

    A experiência de integração entre moedas sociais digitais, metas de sustentabilidade e políticas educativas, já documentada em contextos diversos, revela potencial de escalabilidade e replicabilidade em múltiplas cidades brasileiras, especialmente aquelas que enfrentam déficits simultâneos de inclusão econômica, digital e energética.

    Contudo, a replicação bem-sucedida exige:

    • Infraestrutura digital acessível e descentralizada, com conectividade adequada e dispositivos inclusivos;
    • Capacitação comunitária e apoio técnico, para que os cidadãos compreendam os mecanismos digitais e se apropriem da moeda como ferramenta;
    • Ambiente normativo seguro, que reconheça juridicamente essas moedas e seus usos, evitando inseguranças regulatórias;
    • Modelos de governança colaborativa, que integrem atores públicos, universidades, empresas locais e organizações comunitárias.

    É nesse sentido que a moeda digital, em sua versão social, deixa de ser apenas um meio de troca e passa a ser uma linguagem de confiança territorial. Sua função pedagógica, simbólica e participativa reconfigura as relações entre cidadãos e governo, entre dados e decisões, entre inovação e equidade.

    Considerações parciais

    A construção de uma cidade inteligente verdadeiramente inclusiva passa pela democratização de seus circuitos econômicos e decisórios. Moedas sociais digitais, aliadas a uma governança ética dos dados, podem materializar essa ambição, desde que ancoradas em práticas participativas, tecnologias abertas e compromissos públicos claros.

    Ao invés de apenas medirem comportamentos, essas ferramentas devem cultivar vínculos, fortalecer direitos e ampliar capacidades. O desafio, portanto, é traduzir o potencial técnico em pactos políticos locais, que devolvam à cidade sua vocação essencial: ser um projeto coletivo de futuro.

    Perspectivas Estratégicas: Projetos Futuros e Diretrizes para Ação

    Ao final de uma análise ampla sobre cidades inteligentes, emerge a necessidade de traduzir conceitos em projetos concretos que respondam simultaneamente aos desafios da desigualdade, da transição energética e da transformação digital. Este capítulo apresenta propostas integradas de ação — articulando tecnologias emergentes, modelos de governança e mecanismos de financiamento — e delineia o papel da nMentors como articuladora estratégica para implementação, apoio técnico e formação de consórcios.

    Projeto de Rede Agrivoltaica com Inteligência Artificial e Moeda Digital

    As periferias urbanas concentram uma parcela expressiva da vulnerabilidade social e energética das cidades brasileiras. Uma resposta inovadora reside na criação de redes agrivoltaicas urbanas, que combinam produção de alimentos e geração de energia solar em espaços subutilizados — telhados públicos, terrenos baldios ou áreas de risco requalificadas.

    A proposta consiste em:

    • Implantar microusinas agrivoltaicas urbanas com dupla finalidade: alimentar hortas comunitárias e gerar excedente energético para redistribuição via moeda social digital;
    • Integrar plataformas de IA para gestão automatizada da geração, consumo e distribuição dos créditos energéticos entre beneficiários locais;
    • Usar a moeda digital como instrumento de compensação e engajamento, recompensando práticas sustentáveis (redução de consumo, reciclagem, educação ambiental) com saldo energético convertido em acesso a bens e serviços.

    Esse modelo visa não apenas democratizar o acesso à energia e alimentação, mas gerar novas capacidades econômicas nos territórios, com protagonismo comunitário e governança colaborativa.

    Infraestrutura Modular de Edge Datacenters com Gestão Público-Comunitária

    A crescente demanda por processamento de dados em tempo real e autonomia local requer soluções de infraestrutura computacional distribuída. Propõe-se, nesse sentido, o desenvolvimento de Edge Datacenters modulares, de baixo custo, energia limpa e operados sob modelos híbridos de gestão público-comunitária.

    Esses datacenters:

    • Suportariam aplicações de mobilidade, saúde, saneamento, segurança e iluminação pública inteligente;
    • Garantiriam soberania digital territorial, ao manter dados sensíveis dentro dos limites da cidade ou do bairro;
    • Serviriam como nó estratégico de conectividade e inteligência urbana, permitindo inclusive a operação de moedas sociais, sistemas educacionais e redes energéticas locais.

    A governança da infraestrutura pode seguir o modelo de consórcios, envolvendo entes públicos, universidades, empresas de tecnologia e lideranças comunitárias, com apoio técnico de consultorias especializadas.

    Observatórios de Políticas Públicas com IA e Metas ESG

    A ausência de instrumentos sistemáticos de monitoramento e avaliação de políticas públicas urbanas compromete a accountability e dificulta o aprendizado institucional. Como resposta, propõe-se a criação de Observatórios Urbanos de Políticas Públicas com IA, operando de forma independente ou em parceria com órgãos públicos.

    Esses observatórios atuariam em três frentes:

    • Coleta contínua de dados estruturados e não estruturados, a partir de sensores urbanos, sistemas públicos e participação cidadã;
    • Análise preditiva e identificação de correlações, com apoio de algoritmos auditáveis orientados por metas ESG (ambientais, sociais e de governança);
    • Produção de relatórios públicos e recomendações táticas, com dashboards acessíveis para gestores e comunidades.

    Ao associar transparência, inteligência e engajamento, os observatórios se tornariam ferramentas críticas para pactuar, monitorar e adaptar as metas de cidades sustentáveis.

    Mecanismos de Financiamento para Cidades Inteligentes Inclusivas

    A viabilidade dos projetos propostos depende da ativação de mecanismos diversificados de financiamento, que combinem recursos públicos, privados e multilaterais. Algumas possibilidades concretas incluem:

    • Chamada de P&D ANEEL, especialmente voltadas à eficiência energética, cidades sustentáveis e inclusão digital;
    • Projetos estruturantes via Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), com potencial de concessão ou PPP (Parceria Público-Privada) para infraestrutura urbana;
    • Bancos multilaterais e fundos climáticos (BID, BNDES Fundo Clima, Climate Investment Funds), com foco em cidades resilientes, redução de carbono e inclusão social;
    • Fundos filantrópicos e venture philanthropy, que priorizam projetos com impacto mensurável em justiça climática e equidade digital.

    Para capturar esses recursos, é fundamental apresentar propostas maduras, sustentadas por evidências, com plano de negócios robusto e metas sociais verificáveis.

    Conclusão

    As reflexões apresentadas ao longo deste estudo apontam para uma compreensão ampliada do conceito de cidades inteligentes. Mais do que territórios tecnificados por sensores e algoritmos, as smart cities devem ser concebidas como ambientes vivos de produção coletiva de soluções complexas — onde inovação tecnológica e justiça social caminham juntas. Nesta conclusão, retomamos os principais aprendizados e reforçamos os compromissos estratégicos que se impõem aos atores que protagonizam essa transformação.

    A Cidade como Infraestrutura Sociotécnica de Inovação Social

    A cidade contemporânea configura-se como um laboratório distribuído de experimentações sociais, tecnológicas e políticas. Essa condição exige o abandono da visão reducionista que enxerga a cidade apenas como espaço físico a ser gerenciado por softwares e big data. Pelo contrário, é preciso reconhecer a cidade como uma infraestrutura sociotécnica viva, capaz de gerar conhecimento, promover inclusão e catalisar mudanças estruturais quando tecnologias são colocadas a serviço do bem comum.

    Ao considerar os diversos temas analisados — energia, saúde, educação, moedas sociais, IA, governança e infraestrutura — fica evidente que as soluções verdadeiramente transformadoras são aquelas enraizadas no território, participativas em sua concepção e transparentes em sua operação.

    Necessidade de superar o enfoque reducionista e tecnodeterminista com inteligência social aplicada.

    Necessidade de transcender o deslumbramento com soluções puramente tecnológicas e avançar para abordagens centradas nas pessoas e no território. Este estudo reitera que inteligência urbana não é apenas digital, mas socialmente situada. Dados, algoritmos e plataformas precisam ser moldados por valores como equidade, solidariedade, sustentabilidade e pluralismo cultural.

    Nesse sentido, o verdadeiro diferencial de uma cidade inteligente reside na capacidade de aplicar inteligência social — sensível ao território, co-criada com seus habitantes e ancorada em propósitos coletivos. A inteligência das cidades é, antes de tudo, a inteligência dos seus cidadãos, conectada por estruturas abertas e inclusivas.

    Ação Intersetorial como Fundamento da Nova Arquitetura Urbana

    A concretização de projetos transformadores exige a articulação permanente entre Estado, setor privado, universidades e sociedade civil organizada. Nenhum dos desafios analisados — da pobreza energética ao envelhecimento populacional, da exclusão digital à soberania informacional — poderá ser enfrentado por um único setor isoladamente.

    Assim, este estudo reforça a necessidade de modelos de governança intersetoriais, adaptativos e baseados na confiança. As experiências internacionais com Parcerias Público-Privadas e os arranjos emergentes no Brasil indicam o caminho: co-responsabilização, transparência e inovação institucional como pilares de uma nova era do urbanismo digital inclusivo.

    Chamado à Responsabilidade Técnica e Ética

    Por fim, este trabalho é também um chamado à responsabilidade técnica e ética dos engenheiros, gestores públicos, conselheiros e líderes empresariais. Em um momento em que o desenho de algoritmos, contratos e infraestruturas definirá os contornos das próximas décadas, não é mais possível atuar de forma neutra ou apenas reativa.

    É preciso assumir um papel ativo na construção de uma cidade inteligente que não seja apenas eficiente, mas justa; não apenas conectada, mas plural; não apenas resiliente, mas inspiradora. O compromisso com a inovação deve caminhar lado a lado com o compromisso com as pessoas e o planeta.

    Como afirmado ao longo desta análise, o futuro das cidades não está dado: ele será fruto das escolhas técnicas, políticas e humanas que fizermos hoje. E é neste horizonte que se inscrevem as responsabilidades e oportunidades que cabem à geração atual de profissionais públicos e privados.

    Glossário

    TermoDefiniçãoTema Principal
    AgrivoltaicoCombinação de geração solar fotovoltaica com produção agrícola no mesmo terreno.Energia e Sustentabilidade
    Cidades InteligentesCentros urbanos que usam tecnologias e dados para melhorar a gestão urbana e o bem-estar da população.Planejamento Urbano
    Cidade como Infraestrutura SociotécnicaVisão da cidade como sistema vivo de interações técnicas, sociais e políticas.Teoria Urbana
    Cidadania AtivaParticipação direta dos cidadãos na formulação e fiscalização de políticas públicas.Inclusão e Governança
    Desigualdade EnergéticaAcesso desigual à energia limpa e acessível entre diferentes grupos sociais.Justiça Energética
    Edge ComputingProcessamento de dados próximo à fonte, reduzindo latência e aumentando autonomia local.Tecnologia da Informação
    ESGCritérios ambientais, sociais e de governança aplicados à gestão pública e privada.Sustentabilidade
    Fatores Críticos de Sucesso (PPP)Elementos como clareza contratual, colaboração e alinhamento com objetivos sociais em parcerias público-privadas.Governança
    Governança AlgorítmicaDecisões mediadas por sistemas automatizados com implicações éticas e sociais.Ética Digital
    Governança Digital ParticipativaArranjos tecnológicos e institucionais que permitem a participação cidadã via plataformas.Democracia Digital
    IA DistribuídaInteligência artificial embarcada em dispositivos periféricos urbanos.Inteligência Artificial
    Inclusão DigitalAcesso equitativo a tecnologias, conectividade e letramento digital.Educação e Cidadania
    Infraestruturas ModularesSoluções técnicas escaláveis, adaptáveis e de baixo custo para contextos locais.Tecnologia Urbana
    Justiça DigitalUso ético e equitativo da tecnologia para reduzir desigualdades sociais.Direitos e Inclusão
    Microgeração DistribuídaProdução local de energia renovável, próxima ao ponto de consumo.Energia
    Moeda Social DigitalMoeda alternativa com circulação local e foco em inclusão, economia solidária e participação.Economia e Governança
    PPP / PPPPModelos de parceria entre Estado, empresas e sociedade para financiamento e operação de infraestruturas.Financiamento Urbano
    Plataformas UrbanasSistemas digitais que organizam fluxos urbanos como transporte, energia e serviços.Urbanismo Digital
    Soberania DigitalCapacidade local de controlar dados e infraestrutura digital crítica.Autonomia Tecnológica
    Tecnologia com PropósitoInovação tecnológica orientada a finalidades sociais e ambientais claras.Ética Tecnológica
    Urbanismo de PlataformaModelo urbano mediado por plataformas digitais privadas ou públicas, exigindo nova regulação.Economia de Plataforma
    Urbanismo InclusivoPlanejamento que prioriza equidade territorial, justiça social e inovação cidadã.Inclusão Social

    Referências Bibliográficas

    1. ALMARRI, Omar; BOUSSABAINE, Abdelhalim. A holistic model for sustainable performance evaluation of PPPs in smart cities. Cities, v. 137, p. 104284, 2023.
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    3. COLDING, Johan et al. Smart Cities for All? Uneven Urban Digitization and the Need for Inclusive Innovation. Urban Studies, v. 61, n. 1, p. 3–23, 2024.
    4. HENDERSON, James. The Role of Edge Data Centers in Smart Urban Infrastructure. Journal of Urban Technology, v. 31, n. 1, p. 112–130, 2024.
    5. KATMADA, Anna et al. Platform Urbanism for Sustainability: A Socio-Technical Perspective. Sustainable Cities and Society, v. 96, p. 104579, 2023.
    6. MIRZAEE, Sina et al. Value creation mechanisms in smart city PPP projects: a review and research agenda. Cities, v. 129, p. 103890, 2022.
    7. MOROZOV, Evgeny; BRIA, Francesca. Rethinking Smart Cities: Democratic Control over Digital Platforms. Journal of Digital Ethics, v. 10, n. 1, p. 25–42, 2023.
    8. QUAN, Xiang; SOLHEIM, Morten. Institutional Complexity in Smart City Public-Private Partnerships: Balancing Goals and Accountability. Urban Affairs Review, v. 59, n. 4, p. 909–935, 2023.
    9. TUPASELA, Aaro et al. Urban health data governance for aging populations: Insights from the URBANAGE project. Health Policy and Technology, v. 13, 100872, 2023.
    10. 장석길  (JANG, Seok-Gil). Participatory Models of Smart Citizenship in East Asian Cities. Asian Urban Studies, v. 14, n. 2, p. 115–138, 2025.
  • Como usar IA para rastrear, certificar e monetizar créditos de carbono

    Como usar IA para rastrear, certificar e monetizar créditos de carbono

    Oportunidade estratégica para o Brasil

    O mercado de carbono se consolida como um dos principais instrumentos globais para acelerar a descarbonização da economia. Ao permitir a compensação de emissões por meio de créditos gerados por projetos ambientais, ele conecta metas climáticas a incentivos econômicos. No entanto, sua credibilidade ainda é desafiada por falhas na mensuração das emissões evitadas, ausência de adicionalidade em muitos projetos e dificuldade de verificação contínua e padronizada.

    Com o avanço da tecnologia e a aprovação do Marco Legal do Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE), o Brasil se encontra diante de uma oportunidade concreta: desenvolver infraestruturas inteligentes de carbono baseadas em inteligência artificial (IA), blockchain e sensoriamento ambiental, capazes de rastrear, certificar e monetizar créditos de forma transparente, confiável e valorizada.

    Proposta de projeto: carbono inteligente com IA

    A proposta apresentada por Eduardo M Fagundes consiste em estruturar um projeto-piloto para operacionalizar o conceito de carbono inteligente no Brasil. Esse modelo alia inovação tecnológica, governança ética e viabilidade econômica, oferecendo uma resposta prática e escalável aos principais gargalos do mercado.

    Inspirado em experiências internacionais como Pachama, Carbonfuture e iniciativas em Bangladesh, o projeto propõe a aplicação de IA em todo o ciclo de vida do crédito de carbono — desde o monitoramento automatizado até a comercialização digital com contratos inteligentes.

    Principais desafios a enfrentar

    • Estimativas imprecisas de emissões evitadas e sequestro de carbono.
    • Falta de adicionalidade e permanência verificáveis.
    • Certificação manual, lenta e suscetível a falhas.
    • Dificuldade de rastreabilidade e interoperabilidade entre plataformas.
    • Risco de greenwashing e injustiças territoriais.
    • Barreiras à monetização justa e transparente.

    Soluções integradas com IA e blockchain

    A proposta articula quatro eixos principais:

    1. Monitoramento automatizado com IA: Modelos como Random Forest, XGBoost e Support Vector Regression estimam o sequestro de carbono, detectam desmatamento e recalibram emissões com dados em tempo real, a partir de sensores ambientais, imagens satelitais e históricos climáticos.
    2. Certificação digital com trilhas de auditoria: Blockchain é utilizado para garantir rastreabilidade e integridade, enquanto contratos inteligentes condicionam a emissão de créditos ao cumprimento técnico de critérios ambientais — como adicionalidade e permanência.
    3. Precificação e comercialização inteligente: A plataforma prevê precificação dinâmica com IA e matching automático entre projetos e compradores com metas ESG. Isso favorece a valorização de projetos confiáveis e amplia o acesso de pequenos produtores ao mercado.
    4. Governança algorítmica e ética climática: O modelo incorpora diretrizes para governança digital, mitigando riscos de decisões enviesadas, greenwashing tecnológico e concentração de créditos em regiões específicas. Assegura também participação comunitária e transparência.

    Alinhamento com o Marco Legal Brasileiro

    A estrutura do projeto está em total conformidade com os princípios do MBRE, incluindo:

    • Integridade ambiental com validação técnica dos dados;
    • Adicionalidade comprovada por modelos preditivos auditáveis;
    • Transparência e rastreabilidade via blockchain;
    • Segurança jurídica por meio de certificações reconhecidas (VERRA, Gold Standard, ISO 14064);
    • Eficiência econômica, com redução drástica de custos operacionais de verificação.

    Etapas do projeto

    1. Diagnóstico estratégico – mapeamento de áreas, parceiros e viabilidade de aplicação.
    2. Coleta e integração de dados ambientais – sensores, satélites e bases climáticas.
    3. Desenvolvimento algorítmico – modelos de IA treinados para monitoramento e verificação.
    4. Certificação automatizada – alinhamento com padrões internacionais e rastreamento em blockchain.
    5. Monetização digital – inserção em plataforma de marketplace com contratos inteligentes e dashboards públicos.

    Conclusão e próximos passos

    A proposta de carbono inteligente não é uma abstração tecnológica: é uma resposta estruturada, realista e replicável a um dos maiores desafios da governança climática atual. Com uma infraestrutura digital robusta, o Brasil pode sair da posição de simples emissor de créditos e assumir a liderança no desenvolvimento de ativos ambientais digitais confiáveis — valorizados globalmente e ancorados em dados transparentes.

    O próximo passo é formar um consórcio técnico e institucional para viabilizar um projeto-piloto em território brasileiro, com potencial de expansão para outros países do Sul Global.

    O momento de agir é agora — com tecnologia, integridade e visão estratégica.

    Leia o artigo técnico completo:

    Carbono Inteligente: como usar IA para rastrear, certificar e monetizar créditos de carbono

  • Carbono Inteligente: como usar IA para rastrear, certificar e monetizar créditos

    Carbono Inteligente: como usar IA para rastrear, certificar e monetizar créditos

    Introdução

    O avanço das mudanças climáticas impõe desafios urgentes à humanidade, exigindo mecanismos eficazes para reduzir e compensar emissões de gases de efeito estufa. Dentro desse contexto, os mercados de carbono tornaram-se instrumentos estratégicos para acelerar a transição energética, incentivar a conservação ambiental e promover soluções sustentáveis com valor econômico. No entanto, esses mercados ainda enfrentam barreiras críticas de confiança, transparência e operacionalização, especialmente em países em desenvolvimento.

    A credibilidade dos créditos de carbono depende diretamente da capacidade de medir, verificar e rastrear, com precisão e integridade, as emissões evitadas ou removidas da atmosfera. Métodos tradicionais, baseados em auditorias pontuais e declarações autodeclaratórias, não são mais suficientes para atender às exigências de compradores internacionais e investidores institucionais. Surge, então, a necessidade de construir uma nova geração de projetos de carbono, baseada em dados contínuos, certificação automatizada e monetização inteligente.

    Neste cenário, tecnologias como inteligência artificial (IA), blockchain, sensores ambientais e plataformas digitais oferecem oportunidades reais para elevar o padrão técnico e ético dos mercados de carbono. Modelos computacionais treinados com dados de satélite, sensores IoT e imagens hiperespectrais já permitem estimar o sequestro de carbono com alta acurácia, detectar desmatamento não autorizado em tempo real e automatizar a certificação com trilhas imutáveis de auditoria.

    Além do avanço tecnológico, o Brasil deu um passo importante com a aprovação do Marco Legal do Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE), por meio do Projeto de Lei nº 412/2022. Essa legislação estabelece princípios fundamentais como integridade ambiental, adicionalidade, rastreabilidade, transparência e segurança jurídica, criando as condições para que projetos confiáveis e financeiramente viáveis sejam desenvolvidos no país. A regulamentação em curso abre espaço para soluções digitais que alinhem inovação tecnológica, compromisso climático e inclusão econômica.

    Este artigo tem como objetivo apresentar um estudo técnico acessível sobre como a inteligência artificial pode ser aplicada para rastrear, certificar e monetizar créditos de carbono, com base em experiências internacionais e adaptações ao contexto brasileiro. Ao longo dos tópicos, discutimos os principais gargalos do mercado, exploramos aplicações práticas de IA, propusemos um plano de ação em cinco etapas e abordamos dilemas éticos fundamentais para a governança desses sistemas.

    Mais do que uma análise conceitual, este trabalho propõe um caminho prático para implementar no Brasil um projeto piloto de carbono inteligente, integrando dados ambientais, algoritmos auditáveis e plataformas de negociação. A proposta parte da convicção de que é possível — e necessário — transformar a complexidade técnica em soluções estratégicas que combinem impacto climático, retorno econômico e responsabilidade socioambiental.

    O desafio dos créditos confiáveis

    Apesar do crescimento dos mercados de carbono como ferramenta para enfrentar as mudanças climáticas, a credibilidade dos créditos de carbono ainda é um dos principais obstáculos à sua ampla adoção e valorização econômica. Muitos compradores e investidores questionam se os créditos realmente correspondem a reduções ou remoções reais de emissões de gases de efeito estufa (GEE). Há quatro falhas principais que comprometem essa confiança:

    Estimativas imprecisas de emissões evitadas

    Grande parte dos projetos de carbono — como reflorestamento, conservação ou uso de energia limpa — depende de modelos e suposições para estimar quantas emissões foram evitadas em comparação com um “cenário de referência”. Quando esses modelos não são bem definidos ou auditados, surgem incertezas.

    Por exemplo, Doimi e Minetto (2023) analisam projetos realizados em áreas úmidas da Itália e destacam que muitos métodos de certificação anteriores a 2018 tornaram-se obsoletos, por não incorporarem avanços em sensores ambientais e monitoramento contínuo por IoT. A falta de dados em tempo real compromete a precisão das estimativas.

    Falta de adicionalidade

    A adicionalidade é um critério essencial: o projeto só deve gerar créditos se não aconteceria sem o apoio financeiro do mercado de carbono. No entanto, muitos projetos já estavam planejados ou seriam implementados de qualquer forma — o que torna inválida a emissão de créditos.

    Woo et al. (2025) destacam que a ausência de critérios automatizados e auditáveis para adicionalidade fragiliza a integridade dos mercados, permitindo que créditos sejam emitidos mesmo quando não há ganho climático real.

    Incerteza na permanência

    A permanência refere-se à duração com que o carbono capturado (por exemplo, em florestas) permanece armazenado. Incêndios, mudanças de uso do solo ou desastres naturais podem reverter o sequestro de carbono.

    Samiul Islam (2025) mostra que a implementação de soluções baseadas na natureza em cidades como Daca precisa ser acompanhada por arquiteturas digitais robustas, com sensores e inteligência artificial que monitorem continuamente as condições ambientais e a eficácia do sequestro de carbono ao longo do tempo.

    Sem monitoramento automatizado, muitos projetos operam com alto risco de reversão não detectada — um problema crítico para investidores.

    Dificuldade de monitoramento e verificações independentes

    A verificação tradicional ainda depende de auditorias presenciais, relatórios autodeclaratórios e documentos em papel. Isso eleva custos e reduz a frequência das avaliações. A fragmentação de padrões entre certificadoras, como VERRA, Gold Standard e ISO 14064, dificulta a comparação e o intercâmbio de créditos entre mercados distintos.

    Estudo publicado na Building and Environment aponta que a falta de sistemas digitais seguros de mensuração, reporte e verificação (MRV) é uma das principais razões para a baixa adesão do setor da construção aos mercados de carbono.

    Além disso, a revisão de Uddin et al. (2024) ressalta que a ausência de integração entre fontes de dados e tecnologias de previsão de emissões baseadas em IA limita a transparência e aumenta o custo da verificação.

    Proposta

    É exatamente nesse contexto de incerteza e desconfiança que proponho um projeto capaz de utilizar inteligência artificial, sensores conectados e blockchain para superar essas limitações. A tecnologia pode oferecer mais precisão, padronização e transparência — transformando um mercado hoje problemático em uma oportunidade confiável de financiamento climático, rastreável em tempo real.

    IA aplicada ao mercado de carbono

    A inteligência artificial (IA) vem se consolidando como uma ferramenta poderosa para transformar a forma como projetos de carbono são monitorados, certificados e avaliados economicamente. Combinando sensores de campo, dados meteorológicos, imagens de satélite e algoritmos avançados, é possível construir um sistema de gestão contínua e automatizada de projetos ambientais — algo impensável até poucos anos atrás.

    Segundo Woo et al. (2025), a IA atua de forma transversal ao ciclo de vida de um crédito de carbono, desde a coleta de dados até a certificação e precificação dos créditos .

    Fontes de dados: do solo ao satélite

    A base de qualquer sistema inteligente está na qualidade dos dados. Atualmente, é possível combinar diferentes fontes:

    • Satélites como Sentinel-2 e Landsat, que oferecem imagens periódicas da cobertura vegetal;
    • Sensores IoT e estações meteorológicas, que coletam dados contínuos de temperatura, umidade e uso do solo;
    • Drones e LiDAR, para análises em alta resolução de biomassa e topografia;
    • Bases públicas e privadas, como dados climáticos históricos e projeções de mudança do uso da terra.

    Samiul Islam (2025) demonstrou como a integração desses dados, em uma arquitetura com deep learning e aprendizado por reforço, gerou ganhos mensuráveis em sequestro de carbono urbano, biodiversidade e redução de ilhas de calor em Daca, Bangladesh .

    Aplicações práticas da IA

    A inteligência artificial pode ser aplicada de forma concreta em diversas etapas de projetos de carbono, indo além da teoria e oferecendo soluções já testadas em campo. Combinando dados de diferentes origens — como sensores ambientais, imagens de satélite e bancos meteorológicos —, é possível construir modelos computacionais que aprendem com os dados históricos e reconhecem padrões relevantes para a estimativa e a certificação de carbono.

    Esses modelos não apenas aumentam a precisão dos cálculos de sequestro de carbono, como também possibilitam ajustes dinâmicos em tempo real, algo essencial para garantir a confiabilidade dos créditos. A seguir, destacamos três aplicações que ilustram o potencial da IA no rastreamento, validação e precificação de créditos de carbono: estimativas em áreas agrícolas, detecção de alterações florestais e análises automatizadas da biomassa e uso do solo. Essas aplicações mostram como a IA pode tornar o mercado de carbono mais transparente, confiável e acessível.

    1. Estimativa de sequestro de carbono em agricultura regenerativa: Modelos de aprendizado de máquina vêm sendo usados para estimar o carbono acumulado no solo e na biomassa, com base em práticas agrícolas sustentáveis. Isso permite emitir créditos com mais precisão e reduzir a dependência de inventários manuais. Pawar (2025) reforça que essas análises melhoram a confiança nos créditos e viabilizam sua integração com plataformas de financiamento climático.
    2. Detecção de desmatamento e recalibração de emissões: IA combinada com imagens de satélite permite detectar desmatamentos ilegais ou alterações não previstas em áreas florestais. Com isso, o balanço de emissões pode ser recalculado automaticamente, ajustando o volume de créditos emitidos. Isso reduz o risco de “créditos fantasmas”. Gupta et al. (2024) exploram o uso de smart contracts em plataformas com IA para garantir que essas atualizações sejam validadas em tempo real.
    3. Análise da biomassa e uso do solo: Técnicas de visão computacional e redes neurais profundas são capazes de analisar imagens hiperespectrais e estimar a densidade da vegetação, a saúde das florestas e o uso agrícola. Essas informações servem como insumos para o cálculo preciso da captura de carbono e sua permanência. Uddin et al. (2024) apontam que esse tipo de análise melhora a eficiência dos mercados e reduz os custos de verificação.

    Benefícios estratégicos da IA para os atores do mercado

    A adoção de inteligência artificial no mercado de carbono não representa apenas um avanço tecnológico, mas também uma oportunidade estratégica para todos os agentes envolvidos no ecossistema climático. Ao transformar grandes volumes de dados em informações acionáveis, a IA oferece soluções que fortalecem a confiança, reduzem riscos e melhoram a eficiência operacional dos projetos de carbono.

    Esses benefícios não são restritos à etapa técnica de monitoramento. Eles impactam diretamente a credibilidade dos créditos, a atratividade para investimentos e a efetividade da regulação climática. Empresas que adotam tecnologias inteligentes conseguem comprovar suas ações ambientais com maior transparência; investidores passam a operar com mais segurança; e os órgãos reguladores ganham novas ferramentas para fiscalizar e garantir a integridade ambiental dos projetos.

    Além disso, como demonstrado por Woo et al. (2025), a IA favorece a interconexão entre plataformas digitais, certificadoras e mercados compradores, criando um ambiente mais padronizado, confiável e preparado para escalar globalmente .

    Essas soluções tecnológicas oferecem ganhos concretos para todos os envolvidos:

    • Empresas ganham mais confiança ao usar dados auditáveis e automatizados para certificar seus projetos;
    • Investidores reduzem o risco de aquisição de créditos inválidos ou superestimados;
    • Reguladores passam a contar com dados em tempo real e algoritmos de alerta para garantir integridade ambiental.

    Além disso, como ressalta Woo et al. (2025), a adoção da IA nos mercados de carbono permite construir pontes entre plataformas, certificadoras e compradores, favorecendo a interoperabilidade e a padronização internacional .

    Proposta: 

    A proposta deste estudo é demonstrar, com base nas evidências mais atuais, que é possível estruturar um projeto robusto e viável com uso de IA no mercado de carbono. Para isso, proponho uma linha de ação em cinco etapas:

    1. Mapear os projetos existentes ou potenciais, com foco em florestas, agricultura regenerativa ou infraestrutura urbana verde.
    2. Coletar dados ambientais de múltiplas fontes, integrando sensores, satélites e dados climáticos públicos.
    3. Desenvolver algoritmos supervisionados e preditivos, adaptados às condições locais e validados com bases confiáveis.
    4. Integrar a plataforma a sistemas de certificação reconhecidos (como VERRA ou Gold Standard), com dashboards e trilhas de auditoria baseadas em blockchain.
    5. Conectar o sistema a plataformas de negociação ou marketplaces digitais, facilitando a monetização automatizada dos créditos.

    Essa trajetória viabiliza não apenas a emissão segura de créditos, mas também sua valorização no mercado. O resultado será um sistema de carbono inteligente, auditável, confiável e preparado para escalar globalmente.

    Certificação automatizada e confiável

    Um dos maiores gargalos dos mercados de carbono é a verificação manual e intermitente dos dados de emissão e sequestro. Auditorias presenciais, documentos autodeclaratórios e a diversidade de metodologias adotadas por diferentes certificadoras tornam o processo lento, caro e suscetível a erros. Para que os créditos de carbono tenham valor real — ambiental e financeiro —, é necessário garantir que sejam lastreados em dados confiáveis, atualizados e auditáveis.

    A boa notícia é que a tecnologia já permite automatizar grande parte desse processo, aumentando a confiabilidade e reduzindo os custos operacionais. A combinação de IA com blockchain é particularmente promissora nesse contexto.

    Algoritmos de verificação e sensores inteligentes

    A primeira etapa da automação está na substituição de checklists e vistorias pontuais por modelos preditivos, sensores IoT e algoritmos de aprendizado de máquina. Esses sistemas monitoram continuamente os dados ambientais (como temperatura, umidade, biomassa e uso do solo) e geram alertas sempre que há desvios que possam comprometer a integridade do projeto.

    Estudo de Doimi e Minetto (2023) mostra como sensores integrados a redes GSM e dispositivos IoT permitiram monitorar áreas úmidas no norte da Itália de forma contínua, oferecendo dados para validação automática da captura de carbono mesmo em condições climáticas adversas.

    Além disso, algoritmos supervisionados como Random Forest e XGBoost já são usados para detectar padrões inconsistentes ou indícios de fraude em projetos florestais, como mostram Segaran et al. (2025) em sua análise sobre o uso combinado de blockchain e machine learning na validação de créditos florestais.

    Blockchain e trilhas imutáveis de auditoria

    Uma segunda camada de confiança vem da integração com tecnologias de registro imutável, como blockchain. Com essa arquitetura, cada etapa do projeto (da medição ao crédito emitido) fica registrada de forma transparente, rastreável e à prova de alterações.

    Segundo Baiz (2024), o uso de blockchain evita a duplicidade de créditos, garante o histórico completo das transações e facilita a interoperabilidade entre certificadoras, governos e plataformas de negociação.

    Além disso, contratos inteligentes (“smart contracts”) podem ser programados para só liberar a emissão do crédito quando todas as condições técnicas forem validadas automaticamente — o que reduz drasticamente a possibilidade de erros ou fraudes operacionais, como demonstra Mahmud (2025) no contexto da criação de uma plataforma de mercado voluntário em Bangladesh.

    Padrões internacionais e validação automatizada

    A adoção dessas tecnologias também facilita a adesão a padrões de certificação internacionais, como VERRA, Gold Standard e ISO 14064, que exigem evidências claras de adicionalidade, permanência e co-benefícios socioambientais.

    A pesquisa de Uddin et al. (2024) destaca que sistemas baseados em IA e blockchain não apenas cumprem os requisitos dessas certificadoras, como também facilitam a geração de relatórios e a comunicação com os compradores, tornando os créditos mais competitivos no mercado .

    Proposta

    A implementação de um sistema de certificação automatizada e confiável requer:

    • Instalar sensores e definir fontes de dados satelitais e meteorológicas específicas para cada projeto;
    • Treinar algoritmos de IA para verificar as condições técnicas exigidas pelas certificadoras;
    • Criar uma infraestrutura de blockchain para registrar cada etapa do projeto e emitir créditos com trilhas de auditoria automáticas;
    • Integrar o sistema às metodologias reconhecidas de certificação, garantindo conformidade internacional e aceitação em plataformas de comercialização.

    Com essa estrutura, é possível dar um salto de confiança e eficiência no mercado de carbono — tornando os créditos não apenas rastreáveis e verificáveis, mas também comercialmente valorizados em escala global.

    Monetização inteligente dos créditos

    Mesmo quando um projeto é bem monitorado e certificado, transformar créditos de carbono em valor financeiro concreto ainda é um desafio para muitas organizações. A falta de transparência nos preços, a burocracia para acesso a mercados internacionais e a dificuldade em encontrar compradores confiáveis reduzem o potencial econômico de iniciativas ambientais.

    Nesse contexto, o uso de inteligência artificial (IA), blockchain e plataformas digitais automatizadas permite criar novas formas de monetização mais eficientes, confiáveis e escaláveis — especialmente para projetos de pequeno e médio porte, que frequentemente ficam de fora dos mercados tradicionais.

    Plataformas digitais e smart contracts

    As chamadas plataformas digitais de carbono já permitem que produtores e desenvolvedores de projetos ofertem créditos diretamente no mercado, sem intermediários. Quando essas plataformas integram IA e contratos inteligentes (smart contracts), todo o processo de venda, pagamento e liquidação dos créditos pode ser automatizado e validado digitalmente.

    Gupta et al. (2024) descrevem como contratos inteligentes integrados a sistemas de monitoramento e verificação permitem que os créditos sejam emitidos e transferidos somente quando as condições ambientais forem confirmadas em tempo real, garantindo segurança jurídica e rastreabilidade completa.

    Além disso, plataformas como a proposta por Mahmud (2025) para Bangladesh incluem interfaces simples, painéis de transparência e sistemas de incentivo que tornam o processo acessível até para pequenos produtores rurais.

    Precificação baseada em inteligência artificial

    Outro avanço importante é o uso de modelos de IA para apoiar a formação de preços dos créditos, considerando variáveis como:

    • Qualidade do projeto (tipo de ecossistema, adicionalidade, co-benefícios sociais)
    • Condições do mercado (oferta e demanda por tipo de crédito)
    • Classificação ESG dos compradores e alinhamento com compromissos climáticos

    Segundo Alanazi (2024), algoritmos como Random Forest e Support Vector Regression apresentaram alta precisão na previsão de preços de créditos em mercados descentralizados, com R² superior a 0,98 em cenários de teste .

    Além disso, essas soluções favorecem a transparência e evitam distorções de preço causadas por negociações opacas ou desequilíbrios de informação entre partes.

    Matching automatizado entre projetos e compradores

    Com a integração entre IA e big data, já é possível realizar o pareamento automático entre projetos e compradores, com base em critérios como localização, tipo de impacto ambiental, metas de neutralidade de carbono e certificações aceitas.

    Woo et al. (2025) apontam que a criação de marketplaces baseados em IA, com filtros personalizados e dashboards inteligentes, permite reduzir os tempos de negociação e ampliar o alcance global dos projetos verificados.

    Pawar (2025) reforça que esse tipo de infraestrutura digital pode democratizar o acesso a mercados de carbono para novos atores, especialmente em países em desenvolvimento.

    Proposta:

    A proposta inclui o desenvolvimento de uma plataforma inteligente de monetização de créditos de carbono com as seguintes funcionalidades:

    • Emissão automatizada de créditos verificados, com base em dados validados e integrados via blockchain;
    • Precificação dinâmica orientada por IA, ajustando o valor dos créditos de acordo com critérios ambientais, reputacionais e de mercado;
    • Marketplace digital com matching inteligente, conectando projetos a compradores com perfis compatíveis e metas ESG alinhadas;
    • Contratos inteligentes para liquidação automática, reduzindo prazos e garantindo segurança jurídica na transação.

    Essa estrutura torna possível não apenas vender créditos, mas posicionar os projetos como ativos digitais confiáveis e integrados à nova economia verde.

    Casos reais e tendências globais

    A aplicação de tecnologias como inteligência artificial e blockchain nos mercados de carbono já é uma realidade em diversas partes do mundo. Iniciativas em curso demonstram que essas ferramentas podem aumentar a eficiência, a rastreabilidade e o valor econômico dos créditos, ao mesmo tempo em que ampliam o acesso a pequenos produtores e garantem maior integridade ambiental. O Brasil tem potencial para liderar essa nova fase do mercado, aprendendo com experiências internacionais e adaptando soluções às suas condições específicas.

    Iniciativas internacionais em destaque

    Pachama, nos Estados Unidos, é uma das empresas mais conhecidas no uso de visão computacional e aprendizado profundo para monitorar florestas por meio de imagens de satélite. Seus algoritmos estimam o sequestro de carbono e detectam automaticamente alterações no uso do solo, ajudando a validar e rastrear créditos com maior precisão.

    Já a Carbonfuture, na Europa, utiliza uma combinação de blockchain e inteligência artificial para criar um registro transparente de todo o ciclo de vida de um crédito, incluindo verificações de adicionalidade, permanência e rastreabilidade da transação. Seus sistemas permitem auditoria em tempo real e conexão direta com investidores institucionais.

    Na Ásia, o caso de Bangladesh, documentado por Mahmud (2025), destaca o desenvolvimento de uma plataforma descentralizada para o mercado voluntário de carbono, com foco em acessibilidade, contratos inteligentes e segurança para pequenos produtores .

    Já o estudo de Samiul Islam (2025) mostra como uma arquitetura baseada em IA, aplicada à cidade de Daca, permitiu maximizar o sequestro de carbono urbano com base em soluções baseadas na natureza, combinando aprendizado profundo com dados climáticos e sensoriamento remoto .

    Tendências tecnológicas emergentes

    Entre as tendências mais promissoras, destacam-se:

    • Tokenização de créditos com NFTs, como discutido por Khanna e Maheshwari (2020), que permite representar cada crédito como um ativo digital único, facilitando rastreamento e comercialização em plataformas digitais.
    • Precificação preditiva com IA, conforme apresentado por Alanazi (2024), usando algoritmos como Random Forest e SVR para calcular o valor justo de créditos com base em dados de mercado, ambientais e reputacionais.
    • Sistemas integrados de MRV digital (medição, reporte e verificação), que unem IA e blockchain para reduzir custos e aumentar a frequência das auditorias, como defendido por Woo et al. (2025).

    Essas soluções apontam para um futuro onde os créditos de carbono se tornarão ativos digitais de alta qualidade, com lastro ambiental, verificação contínua e liquidez global.

    Proposta:

    Inspirado por essas iniciativas, proponho estruturar um projeto brasileiro que combine:

    • Monitoramento inteligente com IA, adaptado às realidades de florestas tropicais, agricultura regenerativa e áreas urbanas;
    • Certificação automatizada via blockchain, com trilhas de auditoria transparentes e interoperabilidade com plataformas internacionais;
    • Tokenização e comercialização em marketplace próprio ou integrado a redes internacionais, com precificação dinâmica e smart contracts.

    Esse modelo poderá posicionar o Brasil não apenas como um provedor de créditos, mas como um líder em infraestrutura digital de carbono, com soluções replicáveis na América Latina e em países do Sul Global.

    Dilemas éticos e governança algorítmica

    A introdução de tecnologias como inteligência artificial, blockchain e tokenização nos mercados de carbono traz inúmeros benefícios, mas também levanta questões éticas e de governança que precisam ser enfrentadas desde o início. Um sistema tecnicamente avançado pode falhar em sua missão climática e social se não for projetado com transparência, justiça territorial e responsabilidade algorítmica.

    Injustiças territoriais e greenwashing tecnológico

    Um dos riscos mais frequentes é o da injustiça territorial. Empresas de grande porte podem comprar créditos gerados em regiões distantes — como reservas florestais ou propriedades rurais — e continuar poluindo em áreas urbanas ou industriais densamente povoadas. Embora esses créditos sejam tecnicamente válidos, o impacto ambiental local permanece negativo, gerando distorções socioambientais e desconectando a responsabilidade da compensação.

    Além disso, tecnologias digitais podem ser usadas como fachada para reforçar práticas de greenwashing, simulando compromisso ambiental sem mudança estrutural real. O estudo de Amram et al. (2025) alerta para esse tipo de ilusão regulatória, em que sistemas complexos de verificação escondem falhas estruturais nos critérios de adicionalidade e integridade dos créditos.

    Uso indevido de créditos como barreira de mercado

    Outro cenário crítico é o uso estratégico dos créditos como barreira competitiva. Empresas podem adquirir grandes volumes de créditos em determinada região, não com o objetivo de compensar emissões, mas de bloquear a entrada de concorrentes ou projetos independentes naquela área. Isso desvirtua a função ambiental do mercado e exige mecanismos regulatórios que coíbam a concentração e o uso especulativo de créditos.

    Algoritmos enviesados e decisões opacas

    A própria IA, se mal treinada ou alimentada com dados enviesados, pode reforçar desigualdades existentes. Por exemplo, modelos de precificação podem supervalorizar projetos em regiões com maior acesso a infraestrutura digital, penalizando iniciativas em territórios periféricos. A falta de explicabilidade das decisões algorítmicas também dificulta auditorias independentes e compromete a legitimidade dos sistemas.

    Como apontam Matus e Veale (2022), há similaridades entre os desafios regulatórios da IA e os da sustentabilidade: ambos envolvem “propriedades de credibilidade difíceis de observar” e cadeias de valor fragmentadas. Por isso, defendem que a certificação de algoritmos siga princípios aprendidos na governança ambiental, como transparência, independência técnica e participação dos afetados.

    Recomendação: governança algorítmica desde a origem

    Para que o projeto de carbono inteligente proposto neste estudo seja efetivo e ético, ele precisa incorporar desde o início uma estrutura de governança algorítmica, com mecanismos como:

    • Comitê independente de ética e transparência digital;
    • Auditoria de dados e explicabilidade dos modelos;
    • Participação de comunidades locais no desenho e monitoramento dos projetos;
    • Publicação dos critérios de decisão e precificação;
    • Limites à concentração de créditos por comprador ou região.

    Proposta:

    O desenvolvimento de um sistema de rastreabilidade e monetização de créditos de carbono com IA deve ser acompanhado de critérios éticos claros e governança ativa, garantindo que a tecnologia amplie, e não reduza, a justiça ambiental e climática. O objetivo é criar um ecossistema de carbono inteligente que seja eficiente, transparente e socialmente responsável — uma referência para projetos replicáveis em países do Sul Global.

    Plano de ação para empresas brasileiras

    O avanço regulatório no Brasil tem criado condições mais seguras e previsíveis para a participação de empresas no mercado de carbono. Com a aprovação do Marco Legal do Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE), por meio do Projeto de Lei nº 412/2022, o país deu um passo importante para alinhar suas políticas climáticas às diretrizes internacionais, abrindo espaço para que projetos com base em inteligência artificial (IA) e digitalização sejam incorporados ao sistema regulado.

    A futura regulamentação do MBRE prevê princípios fundamentais como:

    • Integridade ambiental, com base em critérios técnicos para mensuração, reporte e verificação (MRV);
    • Adicionalidade, exigindo que os projetos comprovem que só ocorreram com o estímulo do mercado de carbono;
    • Transparência e rastreabilidade, inclusive com apoio de tecnologias digitais;
    • Eficiência econômica, promovendo soluções de baixo custo para redução de emissões;
    • Segurança jurídica, com regras claras para certificação e negociação dos créditos.

    Essa base legal cria um ambiente favorável para o desenvolvimento de projetos confiáveis e financeiramente viáveis. No entanto, para que as empresas brasileiras possam realmente se beneficiar desse novo ciclo, é necessário avançar em cinco frentes práticas: diagnóstico estratégico, estruturação dos dados, desenvolvimento algorítmico, certificação automatizada e inserção em plataformas de monetização.

    A seguir, apresento um plano de ação estruturado que pode ser adotado por empresas, cooperativas, governos locais e organizações da sociedade civil que desejem atuar com carbono inteligente e gerar créditos de alta integridade ambiental e tecnológica.

    Etapa 1: Diagnóstico e priorização

    O primeiro passo é realizar um diagnóstico técnico e estratégico das atividades da empresa que geram ou evitam emissões de carbono. Isso inclui:

    • Identificar áreas com potencial para gerar créditos (reflorestamento, regeneração de pastagens, eficiência energética, agricultura de baixo carbono);
    • Levantar dados já disponíveis internamente ou em órgãos públicos;
    • Avaliar a maturidade digital da operação e os recursos humanos envolvidos.

    Esse diagnóstico deve incluir também os objetivos do projeto: neutralização de emissões próprias, geração de créditos para venda, ou certificação para fortalecer o posicionamento ESG.

    Etapa 2: Estruturação dos dados e sensores

    Com as oportunidades definidas, é necessário estruturar a base de dados ambientais, que será a matéria-prima da IA. As ações incluem:

    • Instalação de sensores (umidade, temperatura, CO₂ do solo);
    • Integração com imagens de satélite de alta resolução (ex. Sentinel-2, Landsat);
    • Consolidação de dados históricos, climáticos, topográficos e de uso do solo;
    • Criação de repositórios seguros e interoperáveis.

    Essa fase pode ser feita em parceria com universidades, agtechs ou startups especializadas.

    Etapa 3: Desenvolvimento da inteligência algorítmica

    A terceira etapa é o desenvolvimento dos modelos de IA, que serão responsáveis por analisar os dados e gerar os indicadores técnicos que validam os créditos. São incluídas aqui:

    • Modelos de machine learning para estimar sequestro de carbono;
    • Algoritmos de detecção de anomalias para identificar desmatamento ou degradação;
    • Aplicação de smart contracts para condicionar a emissão dos créditos a critérios técnicos automatizados.

    Como demonstram Gupta et al. (2024) e Alanazi (2024), esses modelos permitem acelerar a verificação e aumentar a confiança nas transações.

    Etapa 4: Certificação e integração a plataformas

    Com os dados processados e os créditos calculados, é hora de garantir a certificação com validade nacional ou internacional, seguindo padrões como VERRA, Gold Standard ou ISO 14064. As ações incluem:

    • Produção de relatórios com trilhas de auditoria em blockchain;
    • Integração com registries e plataformas digitais reconhecidas;
    • Testes de conformidade com critérios de adicionalidade, permanência e co-benefícios.

    Baiz (2024) ressalta que a padronização e interoperabilidade desses processos são chave para o reconhecimento dos créditos em mercados internacionais.

    Etapa 5: Monetização, parcerias e reinvestimento

    A etapa final envolve colocar os créditos no mercado com máxima eficiência, transparência e impacto:

    • Avaliação do preço justo por meio de modelos preditivos;
    • Inserção dos créditos em marketplaces digitais ou leilões;
    • Parcerias com compradores institucionais, fundos ESG ou empresas com metas net-zero;
    • Reinvestimento do capital obtido em novas áreas do projeto ou em soluções sociais no território.

    Essa abordagem cria um ciclo virtuoso: quanto maior a credibilidade e o impacto do projeto, maior o valor de mercado dos créditos e mais capacidade de reinvestimento local.

    Comentário do autor:

    Ao seguir este plano, empresas brasileiras poderão sair da posição de fornecedoras pontuais de créditos e assumir um papel estratégico como desenvolvedoras de infraestrutura climática inteligente. A proposta aqui apresentada mostra que é possível estruturar um projeto tecnicamente viável, ambientalmente robusto e com alto potencial de retorno — ambiental, social e econômico.

    Conclusão

    A transição para uma economia de baixo carbono exige mais do que boas intenções: demanda sistemas robustos, confiáveis e escaláveis que transformem emissões evitadas ou capturadas em ativos ambientais com valor reconhecido. Neste artigo, apresentamos os principais desafios que ainda comprometem a credibilidade dos créditos de carbono e mostramos como a inteligência artificial, aliada a blockchain e sensoriamento ambiental, pode oferecer soluções práticas e de alto impacto para superá-los.

    As aplicações já estão em curso ao redor do mundo, com resultados concretos em redução de custos, aumento da transparência e melhoria da governança ambiental. O Brasil, com sua diversidade ecológica, capacidade científica e avanço regulatório recente, está em posição privilegiada para liderar uma nova geração de projetos de carbono com infraestrutura digital embarcada.

    No entanto, não basta replicar tecnologias: é preciso garantir que esses sistemas respeitem princípios de justiça territorial, ética algorítmica e engajamento social. Por isso, propusemos também um plano de ação que articula inovação tecnológica com governança responsável — incluindo critérios de certificação, padronização e monetização inteligente dos créditos.

    O caminho está aberto. Com uma abordagem estruturada e transparente, empresas brasileiras podem se tornar protagonistas na criação de um mercado de carbono inteligente, confiável e globalmente valorizado — e, ao fazê-lo, contribuir de forma concreta para os objetivos climáticos nacionais e internacionais.

    Glossário

    TermoDefinição
    GEE (Gases de Efeito Estufa)Gases que retêm o calor na atmosfera terrestre, contribuindo para o aquecimento global. Incluem CO₂, CH₄ (metano), N₂O (óxido nitroso) e outros.
    Crédito de CarbonoUnidade padronizada que representa a redução ou remoção de 1 tonelada de CO₂ equivalente da atmosfera. Pode ser negociada em mercados regulados ou voluntários.
    Sequestro de CarbonoProcesso natural ou induzido de captura e armazenamento de dióxido de carbono, geralmente por florestas, solos ou tecnologias industriais.
    AdicionalidadePrincípio segundo o qual um projeto só é elegível para gerar créditos de carbono se sua realização for motivada diretamente pelo financiamento climático.
    PermanênciaTempo durante o qual o carbono removido ou evitado permanece fora da atmosfera. Projetos devem demonstrar baixa probabilidade de reversão.
    IA (Inteligência Artificial)Campo da computação que desenvolve sistemas capazes de aprender com dados, identificar padrões e tomar decisões ou prever eventos automaticamente.
    Machine Learning (Aprendizado de Máquina)Técnica de IA que permite a computadores aprenderem com dados históricos e melhorar seu desempenho sem serem explicitamente programados.
    Random ForestAlgoritmo de aprendizado de máquina baseado em múltiplas árvores de decisão. É eficaz para classificação, previsão e detecção de padrões complexos.
    XGBoostModelo avançado de machine learning baseado em árvores de decisão, conhecido por sua precisão e velocidade em problemas estruturados.
    Support Vector Regression (SVR)Algoritmo de regressão que busca encontrar uma função que melhor se ajuste aos dados com margem mínima de erro. Utilizado em previsão de preços e séries temporais.
    Visão ComputacionalSubcampo da IA que utiliza imagens (como as de satélite) para extrair informações úteis, como identificação de cobertura vegetal ou desmatamento.
    LiDAR (Light Detection and Ranging)Tecnologia de sensoriamento remoto que usa feixes de laser para medir a distância entre o sensor e o solo, criando modelos 3D detalhados da superfície e da vegetação.
    IoT (Internet das Coisas)Conjunto de sensores e dispositivos interconectados que coletam e transmitem dados ambientais, meteorológicos ou operacionais em tempo real.
    BlockchainEstrutura digital descentralizada que registra dados e transações em blocos criptografados, garantindo integridade, segurança e rastreabilidade.
    Smart Contract (Contrato Inteligente)Código executável registrado em blockchain que automatiza regras e condições de um acordo, como liberação de crédito após verificação ambiental.
    MRV (Medição, Reporte e Verificação)Procedimento padronizado para quantificar e validar emissões evitadas ou removidas em projetos de carbono.
    TokenizaçãoProcesso de transformar ativos físicos ou intangíveis (como créditos de carbono) em representações digitais únicas (tokens) que podem ser negociadas em plataformas.
    Marketplace de CarbonoPlataforma digital onde créditos de carbono são listados, avaliados, vendidos e comprados por empresas ou investidores.
    VERRAUma das principais organizações certificadoras de créditos de carbono no mundo. Administra o padrão Verified Carbon Standard (VCS).
    Gold StandardCertificadora internacional de créditos de carbono, com foco em benefícios socioambientais além da redução de emissões.
    ISO 14064Conjunto de normas internacionais que estabelece princípios e requisitos para quantificação, monitoramento e verificação de emissões de GEE.
    R² (R-quadrado)Medida estatística que indica o grau de ajuste de um modelo preditivo aos dados observados. Valores próximos de 1 indicam alta precisão.
    Agricultura RegenerativaSistema agrícola que busca restaurar a saúde do solo, aumentar a biodiversidade e capturar carbono por meio de práticas como rotação de culturas, plantio direto e compostagem.
    GreenwashingEstratégia em que uma empresa exagera ou distorce seus compromissos ambientais para parecer mais sustentável do que realmente é.
    Carbono InteligenteAbordagem que combina IA, blockchain, sensores e análise de dados para garantir que os créditos de carbono sejam reais, rastreáveis, auditáveis e comercializáveis com segurança.

    Referências Bibliográficas Utilizadas

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    MATUS, Kira J. M.; VEALE, Michael. Certification systems for machine learning: lessons from sustainability. Regulation & Governance, v. 16, p. 177–196, 2022. DOI: 10.1111/rego.12417.

    PAWAR, Utkarsha P. Empowering carbon markets: carbon footprint analytics for enhanced transparency, trust and sustainable emissions management. International Journal for Research in Applied Science and Engineering Technology, v. 13, n. 7, p. 35–42, 2025. Disponível em: https://www.ijraset.com/best-journal/empowering-carbon-markets-carbon-footprint. Acesso em: 27 jul. 2025.

    WOO, Junghoon et al. AI in carbon trading: enhancing market efficiency and risk management. ResearchGate, 2025. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/391731741. Acesso em: 27 jul. 2025.

  • Governança Algorítmica no Setor Elétrico: Capacitação Estratégica para Conselhos e Alta Direção

    Governança Algorítmica no Setor Elétrico: Capacitação Estratégica para Conselhos e Alta Direção

    Introdução

    Por que conselhos de empresas de energia precisam incorporar a governança algorítmica em sua agenda estratégica

    A inteligência artificial e os sistemas algorítmicos já operam silenciosamente no coração das empresas de energia. Da automatização de subestações ao atendimento virtual de milhões de clientes, dos modelos preditivos de manutenção às ferramentas de precificação e trading, os algoritmos deixaram de ser promessa tecnológica para se tornarem infraestruturas invisíveis de decisão.

    Nesse novo cenário, os conselhos de administração – órgãos máximos de governança das companhias – enfrentam um desafio inédito: exercer seu papel de supervisão e direcionamento estratégico sobre tecnologias que são, ao mesmo tempo, complexas, opacas e dinâmicas.

    Este estudo parte de uma constatação objetiva: o setor elétrico brasileiro já avançou significativamente na aplicação da IA, mas a governança algorítmica ainda não está institucionalizada no nível dos conselhos. A análise de 14 empresas listadas na B3 revela um panorama robusto de iniciativas com IA, mas com pouca ou nenhuma referência a mecanismos formais de supervisão colegiada desses algoritmos.

    Nesse contexto, este trabalho se propõe a:

    • Identificar as lacunas e oportunidades na interface entre conselhos e algoritmos;
    • Apresentar o conceito e os pilares da governança algorítmica;
    • Sistematizar boas práticas já observadas em empresas nacionais e internacionais;
    • Recomendar caminhos viáveis para capacitação continuada dos conselheiros;
    • Propor uma estratégia institucional e setorial para elevar o tema à agenda de governança.

    Mais do que um alerta, este estudo é um convite à ação. Os conselhos que assumirem a liderança na governança da inteligência algorítmica estarão posicionados para conduzir suas empresas com mais responsabilidade, confiança e legitimidade em um setor cada vez mais automatizado, regulado e orientado por dados.

    Sumário Executivo

    EixoPrincipais Destaques
    Diagnóstico14 empresas de energia analisadas com iniciativas de IA consolidadas, porém sem mecanismos formais de supervisão pelos conselhos.
    Cenário AtualAlgoritmos operando decisões críticas sem estrutura de governança dedicada. Conselho atua de forma reativa ou dependente de pareceres técnicos.
    Proposta CentralCapacitação contínua dos conselheiros e institucionalização da governança algorítmica como parte da agenda estratégica, de riscos e ESG.
    Conceito-ChaveGovernança algorítmica: conjunto de princípios, processos e responsabilidades para supervisionar sistemas algorítmicos de alto impacto.
    Boas PráticasInclusão de IA na matriz de competências, relatórios periódicos, comitês técnicos, código de conduta algorítmico e fóruns de capacitação.
    Recomendações SetoriaisCriação de diretrizes compartilhadas por ABRADEE, ANEEL e associações; integração com ESG; formação de comunidade de prática executiva.

    Educação Continuada para a Alta Governança: Uma Alavanca para a Maturidade Algorítmica

    A transformação digital no setor elétrico não é mais uma promessa futura — é um processo em curso, consolidado por uma agenda concreta de automação inteligente, inteligência artificial (IA), digitalização de ativos e decisões orientadas por algoritmos. O volume e a sofisticação dessas iniciativas aumentam a cada ciclo, exigindo uma nova camada de capacitação dos órgãos máximos de governança.

    Em uma análise conduzida sobre 14 relatórios de sustentabilidade e relatórios integrados das principais empresas de energia elétrica listadas na B3, constatamos a presença expressiva de projetos com IA, machine learning, algoritmos preditivos e automação estratégica. Esses projetos envolvem desde o atendimento ao cliente até a operação de redes elétricas, comercialização de energia e controle de ativos críticos.

    A seguir, uma síntese das iniciativas:

    EmpresaIniciativas com IA e AlgoritmosDestaques Estratégicos
    CEMIGEnergy GPT, visão computacional, satélites com IAPrimeira IA generativa do setor elétrico brasileiro
    Eletrobraseletro.ia, centro de excelência, 25 frentes estruturadasGovernança própria e capacitação estratégica (Programa 220)
    COPELIA climática com Simepar, Smart Grid com IAIA como ferramenta para resiliência de rede
    NeoenergiaIdentificação de perdas, equipamentos inteligentes com IAPremiada pela CIER por inovação com foco em descarbonização
    CelescADMS, WFM, automação de decisões, cibersegurança com IAProjeto de 30 meses com foco em decisão inteligente
    ENGIE BrasilModelos de machine learning para comercialização e tradingIA para precificação e previsão de demanda
    ENEL BrasilAlgoritmos para manutenção preditiva e atendimento digitalAplicações em redes inteligentes
    EnergisaRobôs e algoritmos de triagem de dados, leitura de imagensIA em detecção de fraudes e atendimento virtual com milhões de interações
    CPFL EnergiaRobô Paula, atendimento automatizado, analytics de serviçosFoco na experiência do cliente com IA integrada
    AurenAnalytics avançado, previsão de geração, controle com IAIA aplicada à operação de usinas renováveis
    TAESADigital twins, algoritmos para manutenção e operaçãoIA como apoio à confiabilidade de ativos críticos
    CELESCInteligência operacional via ADMS e WFM com AccentureSuporte à decisão em rede elétrica
    AluparAlgoritmos preditivos para operação e eficiênciaIA com foco em performance
    EMAEMonitoramento digital inteligente, previsão hidrológicaIntegração de dados para operação remota

    O conselho como catalisador da maturidade institucional

    A presença crescente dessas iniciativas indica, por si só, que os conselhos de administração estão atuando com visão estratégica, aprovando e sustentando investimentos com potencial transformador. No entanto, essa mesma expansão tecnológica exige um novo patamar de atualização e alinhamento conceitual contínuo — não por déficit, mas por coerência com a própria agenda da inovação.

    A formação acadêmica predominante nos conselhos — engenharia, economia, administração, direito — oferece uma base lógica, analítica e institucional valiosa. Essa base é compatível com os desafios da governança algorítmica. O que se impõe, portanto, não é uma mudança estrutural, mas um programa de educação executiva sob medida, que atualize repertórios, integre visões tecnológicas e estimule o debate estratégico no colegiado.

    Educação continuada: eixo de equilíbrio entre inovação e governança

    Empresas como Neoenergia, Eletrobras, TAESA, COPEL e ENGIE Brasil já demonstram compromisso com a formação contínua de seus conselheiros, com trilhas sobre ESG, riscos climáticos, geopolítica e transformação regulatória. O próximo passo natural é incorporar conteúdos estruturados sobre inteligência artificial, ética algorítmica, curadoria de dados e risco digital.

    Em linha com as melhores práticas internacionais, a educação continuada dos conselheiros e de aspirantes a conselheiros (formação de pipeline) é a chave para assegurar:

    • supervisão estratégica qualificada sobre projetos de IA, automação e plataformas digitais;
    • autonomia decisória informada, sem dependência excessiva de pareceres técnicos;
    • governança proativa e alinhada ao futuro regulatório, sobretudo em temas como transparência algorítmica, proteção de dados, accountability e ESG digital.

    Um novo compromisso para a governança do setor elétrico

    Investir na capacitação permanente dos conselhos é proteger e ampliar o valor gerado pela digitalização. É garantir que os algoritmos que passam a tomar decisões dentro das empresas sejam compreendidos, supervisionados e validados por quem detém, em última instância, o poder fiduciário sobre a organização.

    O setor elétrico brasileiro está fazendo sua parte na adoção tecnológica. Cabe agora transformar essa inovação em vantagem institucional — com conselhos preparados, atualizados e estratégicos.

    O Que é Governança Algorítmica

    A transformação digital impôs uma nova camada de complexidade às decisões corporativas: os algoritmos passaram a influenciar — e, em muitos casos, determinar — processos decisórios centrais. No setor elétrico, isso se manifesta no controle de redes inteligentes, no despacho automatizado de cargas, na precificação de energia via modelos preditivos, no atendimento inteligente e até na gestão de ativos com apoio de digital twins.

    Diante disso, emerge um novo campo de atuação estratégica para conselhos e comitês de alta governança: a governança algorítmica.

    Governança algorítmica ≠ Governança de TI

    Embora frequentemente confundida com a governança tradicional de tecnologia da informação (TI), a governança algorítmica representa um salto qualitativo. Ela não trata apenas de infraestrutura, segurança da informação ou gestão de projetos digitais, mas da capacidade institucional de supervisionar sistemas autônomos que tomam decisões em nome da organização.

    Governança de TI TradicionalGovernança Algorítmica
    Foco em infraestrutura e processosFoco em decisões automatizadas e inteligência aplicada
    Segurança da informaçãoÉtica, explicabilidade e risco digital
    Gestão de ativos de TISupervisão estratégica de sistemas autônomos
    Apoio operacionalDeliberação estratégica sobre lógica algorítmica

    Definição Executiva

    Governança algorítmica é o conjunto de mecanismos institucionais que garante que o uso de algoritmos, modelos de IA e sistemas autônomos seja alinhado à estratégia da organização, ético em sua aplicação, transparente em seus critérios e responsável em seus impactos.

    Ela abrange desde a aprovação de investimentos em IA até a definição de limites para sua atuação, passando por mecanismos de auditoria algorítmica, curadoria de dados e avaliação de riscos emergentes.

    Por que isso é relevante para conselhos?

    Nos próximos anos, conselhos de administração e comitês de auditoria estarão diante de questões como:

    • Podemos confiar na decisão tomada por este algoritmo?
    • Como garantir que não há viés sistêmico no modelo?
    • Quem responde legalmente por uma decisão automatizada?
    • A empresa tem curadoria adequada dos dados que alimentam esses sistemas?
    • Como explicar ao regulador, ou ao mercado, por que um cliente ou ativo foi priorizado por uma IA?

    Responder a essas questões exige mais do que conhecimento técnico — exige governança com capacidade de formular, questionar e supervisionar com base em critérios estratégicos e éticos.

    Princípios da Governança Algorítmica

    Para apoiar esse processo, algumas diretrizes internacionais e práticas emergentes já delineiam os fundamentos que devem nortear a atuação do conselho e da alta direção:

    PrincípioAplicação na Prática
    Supervisão EstratégicaO conselho deve compreender os objetivos do uso de IA e sua aderência à estratégia
    Ética e EquidadeModelos não podem reproduzir discriminações ou favorecer interesses opacos
    AccountabilityÉ preciso definir claramente quem responde por decisões automatizadas
    TransparênciaA lógica de funcionamento dos algoritmos deve ser compreensível a decisores e partes interessadas
    Risco DigitalAlgoritmos podem gerar riscos operacionais, regulatórios e reputacionais

    Esses princípios estão cada vez mais presentes em orientações internacionais de governança — da OECD à Deloitte, da Harvard Law School ao World Economic Forum — e serão, cedo ou tarde, incorporados à regulação setorial e aos marcos de responsabilidade fiduciária.

    Uma oportunidade estratégica para conselhos visionários

    Conselhos que se antecipam e assumem um papel ativo na governança algorítmica:

    • ganham maior autonomia e assertividade nas decisões sobre IA;
    • reduzem riscos de imagem, passivos regulatórios e dependência de terceiros;
    • e posicionam suas empresas na vanguarda da maturidade digital com responsabilidade institucional.

    Mais do que uma obrigação técnica, a governança algorítmica é um novo vetor de vantagem competitiva, especialmente em setores críticos como o de energia.

    Panorama Atual: Maturidade em IA no Setor Elétrico

    A análise dos 14 relatórios de sustentabilidade e relatórios integrados das principais empresas de energia elétrica listadas na B3 revelou um cenário claro: a inteligência artificial já está incorporada às operações centrais do setor, com aplicações que vão da manutenção de ativos à comercialização de energia, passando por atendimento automatizado, redes inteligentes e suporte à decisão.

    O uso de algoritmos e modelos preditivos deixou de ser uma iniciativa experimental e passou a ocupar posição estratégica nas engrenagens operacionais e comerciais das empresas. A transformação digital não é mais um plano — é realidade.

    Classificação por Eixo de Aplicação

    As iniciativas mapeadas podem ser agrupadas em cinco grandes eixos, com diferentes graus de maturidade tecnológica e implicações de governança:

    Eixo de AplicaçãoDescriçãoExemplos Observados
    Automação OperacionalAplicação de IA para controle autônomo de ativos, despacho inteligente e redes adaptativasDigital twins, ADMS, WFM, controle preditivo
    Precificação e TradingModelos preditivos de mercado, algoritmos de precificação dinâmica e previsão de cargaMachine learning para comercialização e trading
    Atendimento InteligenteUso de IA generativa, assistentes virtuais, triagem automatizada de solicitaçõesRobôs cognitivos, análise de linguagem natural
    Eficiência TécnicaDiagnóstico automatizado de falhas, identificação de perdas, manutenção preditivaIA climática, sensores inteligentes, visão computacional
    Governança EstratégicaEstruturação de centros de excelência em IA, programas de capacitação e governança de dadosCentros de IA, programas como eletro.ia, Energy GPT

    Essa distribuição mostra que a IA atua hoje tanto no front operacional quanto no núcleo estratégico das empresas de energia. Em muitos casos, os algoritmos têm capacidade real de influenciar ou substituir decisões humanas, com impactos diretos na eficiência, segurança, receita e reputação da companhia.

    Grau de Maturidade e Governança

    Embora o uso de IA já esteja consolidado em áreas críticas — como comercialização de energia, redes inteligentes, manutenção preditiva e atendimento digital —, a análise dos relatórios de sustentabilidade e documentos públicos disponíveis não identificou a existência de estruturas formais de supervisão algorítmica no âmbito dos conselhos de administração.

    Mais especificamente:

    • Não foram encontradas menções a comitês de inovação, digitalização ou supervisão de IA com assento no conselho;
    • As matrizes de competências dos conselhos divulgadas não incluem, até o momento, habilidades relacionadas a algoritmos, explicabilidade, ciência de dados ou risco digital;
    • Relatórios de governança, ESG ou estratégia não fazem referência à deliberação colegiada sobre critérios éticos, regulatórios ou operacionais associados a IA.

    Essas evidências sugerem que, embora haja forte avanço técnico nas empresas, a supervisão sobre projetos com IA ainda está concentrada nas diretorias executivas ou nas áreas técnicas, sem que o conselho atue como instância estratégica de validação ou acompanhamento formal dessas tecnologias.

    Essa constatação não aponta falha — mas sim uma oportunidade clara de fortalecimento da governança, à medida que algoritmos passam a exercer influência real sobre decisões operacionais e corporativas.

    A Importância da Governança Executiva

    O setor elétrico lida com variáveis críticas — segurança energética, universalização, modicidade tarifária e estabilidade regulatória. A introdução massiva de sistemas inteligentes precisa ser acompanhada por:

    • decisões deliberadas sobre o uso de IA, com critérios claros de finalidade, supervisão e avaliação;
    • capacitação dos conselhos para interpretar e acompanhar projetos com algoritmos autônomos;
    • integração da IA às políticas de risco, compliance, ESG e estratégia corporativa.

    A maturidade algorítmica não se esgota na implementação da tecnologia. Ela exige governança integrada, capaz de alinhar o valor gerado pelos algoritmos aos compromissos fiduciários da companhia.

    Setor pronto para avançar

    Apesar dos desafios, os dados mostram que o setor elétrico brasileiro tem base institucional propícia para absorver os princípios da governança algorítmica:

    • Conselhos com perfil técnico-analítico consistente (engenheiros, economistas, gestores);
    • Políticas estruturadas de autoavaliação, como nas empresas TAESA, Neoenergia, Eletrobras, ENGIE Brasil e COPEL;
    • Tradição em responder a transformações regulatórias com velocidade e rigor.

    A próxima etapa é incorporar a dimensão algorítmica da transformação digital à pauta permanente da alta governança — com linguagem executiva, instrumentos claros e formação continuada.

    Perfil dos Conselhos de Administração: Quem Decide sobre IA?

    Ao discutir a governança algorítmica no setor elétrico, é essencial compreender quem são os responsáveis pelas decisões estratégicas que legitimam — direta ou indiretamente — o uso de inteligência artificial nas empresas. Mesmo que a aplicação de IA esteja frequentemente situada nas áreas técnicas ou operacionais, é o conselho que aprova diretrizes, orçamentos e prioridades que permitem (ou limitam) sua expansão.

    Com base na análise dos relatórios de sustentabilidade e governança das 14 principais empresas de energia listadas na B3, foi possível traçar um retrato consistente da composição e funcionamento dos conselhos de administração do setor.

    Composição e Estrutura

    Os conselhos são majoritariamente formados por profissionais com sólida formação em engenharia, economia, direito e administração — com média de idade entre 50 e 60 anos. A presença feminina ainda é limitada, mas algumas empresas têm adotado políticas ativas de diversidade, incluindo critérios de raça, idade e representatividade regional.

    Algumas companhias, como COPEL, CELESC e EMAE, garantem assentos específicos a representantes dos empregados ou acionistas preferencialistas. Já a ENGIE e a TAESA vêm implementando boas práticas como a limitação de mandatos, prevenção de sobreposição de cargos (overboarding) e exigência de presença mínima para recondução.

    Seleção, Avaliação e Formação Contínua

    Os processos de seleção priorizam a experiência no setor elétrico, em finanças e em governança de riscos — mas ainda não incluem, de forma explícita, critérios relacionados a competências digitais ou tecnológicas. Em contrapartida, há sinais claros de evolução:

    • Empresas como Eletrobras, Neoenergia, ENGIE e TAESA adotam autoavaliação anual estruturada, com apoio externo em alguns casos;
    • As avaliações têm incorporado dimensões como efetividade, colegialidade e alinhamento estratégico;
    • Há investimentos crescentes em programas de desenvolvimento contínuo, abordando temas como ESG, riscos climáticos, compliance e geopolítica — o que cria um ambiente fértil para a futura inclusão de temas como inteligência artificial, algoritmos e ética digital.

    Capacidade de Absorção da Pauta Algorítmica

    Apesar de não haver, nos documentos analisados, qualquer menção direta à atuação dos conselhos sobre algoritmos, IA ou plataformas digitais, o perfil dos conselheiros demonstra um alto potencial de assimilação da pauta algorítmica. Em outras palavras:

    • Os conselhos já possuem formação analítica e visão estratégica suficiente para lidar com o tema, desde que apresentado com clareza e alinhado às responsabilidades do colegiado;
    • Há espaço institucional para a inclusão progressiva de competências digitais nas matrizes de avaliação;
    • A governança de riscos — já consolidada — pode ser o canal natural para acolher a discussão sobre riscos algorítmicos e éticos, sem criar novas estruturas ou complexidade excessiva.

    Por que os conselhos já são corresponsáveis por decisões de IA?

    Mesmo que as decisões técnicas sobre IA sejam tomadas no nível executivo, os conselhos exercem papel indireto, porém crítico, sobre:

    • A aprovação de projetos estruturantes que envolvem algoritmos (como smart grids, trading automatizado, atendimento digital e monitoramento preditivo);
    • O acompanhamento de métricas afetadas por IA (como qualidade do fornecimento, segurança cibernética, eficiência operacional e satisfação do cliente);
    • A responsabilização por eventuais riscos regulatórios, reputacionais ou legais associados ao uso indevido de algoritmos.

    Portanto, a governança algorítmica não é uma pauta futura, mas uma responsabilidade já presente, que precisa ser compreendida e estruturada com maior clareza nos fóruns decisórios mais elevados.

    Uma Oportunidade Institucional

    O setor elétrico brasileiro possui conselhos tecnicamente qualificados, com governança sólida e abertura à formação contínua. O desafio agora é reconhecer formalmente a centralidade da IA nas decisões estratégicas, e preparar os conselheiros para atuarem com segurança, discernimento e legitimidade nesse novo contexto.

    A educação executiva e a estruturação de trilhas formativas personalizadas — tanto para conselheiros em exercício quanto para aspirantes a cargos de governança — são os próximos passos naturais para consolidar uma governança algorítmica sólida, ética e funcional.

    Riscos da Ausência de Governança Algorítmica

    A adoção crescente de inteligência artificial no setor elétrico brasileiro — já presente em pelo menos 14 empresas listadas na B3 — transforma a natureza das decisões estratégicas. O uso de algoritmos passou a impactar diretamente áreas sensíveis como precificação, operação, atendimento, compliance, manutenção e reputação corporativa. Ainda assim, a maioria das empresas não possui mecanismos formais de supervisão algorítmica no nível do conselho.

    Ignorar essa lacuna representa um risco material — não apenas tecnológico, mas também regulatório, ético, reputacional e, em última instância, estratégico.

    1. Riscos Estratégicos
    • Assimetria decisória: a alta administração aprova projetos que envolvem algoritmos sofisticados, mas sem instrumentos para entender os impactos de médio e longo prazo desses sistemas.
    • Obstrução à inovação: na ausência de diretrizes claras, projetos inovadores podem ser adiados ou vetados por insegurança jurídica, reputacional ou técnica.
    • Diluição de responsabilidade: sem atribuições formais, a supervisão de algoritmos se pulveriza entre áreas — sem que nenhuma instância tenha accountability clara.
    1. Riscos Reputacionais e Éticos
    • Discriminação algorítmica: sistemas automatizados de corte de energia, atendimento digital ou crédito de carbono podem reproduzir vieses estruturais.
    • Omissão deliberativa: a ausência de posicionamento dos conselhos sobre o uso de IA em áreas críticas pode ser percebida como negligência institucional.
    • Desalinhamento com valores ESG: decisões automatizadas sem transparência nem supervisão podem colidir com compromissos públicos de ética, diversidade ou equidade.
    1. Riscos Regulatórios e Jurídicos
    • Nova legislação em curso: o Projeto de Lei nº 2.338/2023, que tramita no Congresso, estabelece obrigações para sistemas de IA em setores de risco, como energia.
    • Dever de diligência: a ausência de controles pode ser interpretada como violação de boas práticas de governança, com implicações para a responsabilidade fiduciária dos conselheiros.
    • Auditorias e sanções: autoridades reguladoras — nacionais e internacionais — tendem a exigir rastreabilidade, explicabilidade e mitigação de riscos em sistemas algorítmicos críticos.
    1. Riscos Operacionais
    • Falhas silenciosas: algoritmos que aprendem de forma autônoma podem gerar erros cumulativos ou distorções sistêmicas, difíceis de detectar a tempo.
    • Dependência de fornecedores: a terceirização do desenvolvimento ou uso de IA pode criar dependência tecnológica sem salvaguardas contratuais robustas.
    • Insegurança cibernética: modelos treinados com dados sensíveis, se mal protegidos, se tornam alvos de ataques com impactos operacionais e reputacionais severos.
    1. Riscos de Omissão Institucional

    Um risco menos tangível, mas igualmente crítico, é a erosão da autoridade institucional dos conselhos. Quando algoritmos passam a decidir sobre temas tradicionalmente deliberados por lideranças humanas — como desligamento de redes, investimentos ou avaliação de desempenho — a omissão do conselho na supervisão pode ser interpretada como uma renúncia de função.

    Neste cenário, a falta de governança algorítmica compromete não apenas a operação da empresa, mas também a legitimidade do próprio modelo de governança corporativa.

    Considerações adicionais

    A ausência de governança algorítmica não é apenas uma lacuna técnica — é um risco estratégico de alta magnitude, cuja natureza exige resposta no nível mais elevado de decisão. O conselho de administração precisa evoluir para incluir, de forma consciente, estruturada e contínua, as competências, instrumentos e protocolos necessários para supervisionar sistemas baseados em IA.

    Esse movimento não se faz por modismo ou pressão externa, mas sim por responsabilidade institucional, visão de longo prazo e preservação do valor da empresa diante de um novo ciclo tecnológico.

    Proposta de Valor: Capacitação e Consultoria para Conselhos

    A adoção de inteligência artificial no setor de energia já é uma realidade consolidada, como demonstram os relatórios de sustentabilidade de empresas listadas na B3. No entanto, a ausência de estruturas formais de supervisão algorítmica no nível do conselho impõe um desafio claro: como alinhar inovação tecnológica com responsabilidade institucional?

    Para isso, conselhos precisam incorporar novos princípios e boas práticas de governança algorítmica, que complementem — e não substituam — os pilares tradicionais da governança corporativa.

    Princípios Fundamentais da Governança Algorítmica

    A literatura especializada e as diretrizes internacionais (OCDE, UE, UNESCO, ISO/IEC 42001) convergem para cinco princípios-chave que os conselhos devem adotar:

    PrincípioDescrição Executiva
    Supervisão EstratégicaOs algoritmos devem estar sujeitos à mesma vigilância dos projetos estratégicos da empresa.
    Ética e ResponsabilidadeToda decisão automatizada deve estar alinhada aos valores e compromissos públicos da companhia.
    TransparênciaAlgoritmos críticos devem ser auditáveis, com critérios de explicabilidade adequados ao risco.
    AccountabilityDevem existir instâncias formais de responsabilização por decisões baseadas em IA.
    Gestão de Riscos DigitaisO uso de IA deve ser integrado aos frameworks já existentes de gestão de riscos e compliance.

    Esses princípios não demandam a criação de novas estruturas, mas sim a evolução das práticas existentes.

    Boas Práticas para Conselhos

    Abaixo, um conjunto de recomendações práticas — de rápida adoção — para conselhos que desejam incorporar a pauta algorítmica com legitimidade e efetividade.

    Boa PráticaDescrição Executiva
    1. Incluir IA na matriz de competências do conselhoAvaliar e incorporar competências digitais e algorítmicas nos critérios de seleção, avaliação e desenvolvimento dos conselheiros.
    2. Mapear e classificar algoritmos utilizadosSolicitar o inventário de algoritmos em uso, com classificação por criticidade, impacto e grau de autonomia decisória.
    3. Integrar IA aos comitês já existentesAtribuir a supervisão de algoritmos a comitês como os de Riscos, Auditoria ou Inovação, evitando a fragmentação do tema.
    4. Solicitar relatórios periódicos sobre algoritmosIncluir indicadores algorítmicos em dashboards executivos: decisões automatizadas, taxa de erro, vieses, conformidade, impacto financeiro e operacional.
    5. Instituir código de conduta para algoritmosAdotar princípios mínimos de ética, explicabilidade e segurança aplicáveis a todos os modelos em uso, com base em frameworks reconhecidos internacionalmente.
    6. Fomentar formação continuada sobre IA e riscos digitaisPromover trilhas executivas, sessões de capacitação e fóruns com especialistas sobre IA, riscos digitais, ESG algorítmico e tendências regulatórias.

    Governança Algorítmica como Diferencial

    A boa governança algorítmica não é apenas um mecanismo de proteção — é um diferencial competitivo e reputacional. Empresas que tratam IA com seriedade no nível do conselho demonstram:

    • Capacidade de inovação com responsabilidade;
    • Maturidade institucional para operar tecnologias críticas;
    • Compromisso público com ética, transparência e eficiência.

    Para conselheiros, trata-se de um novo campo de atuação — estratégico, legítimo e necessário.

    Propostas para Formação de Conselheiros

    O cenário atual exige que conselhos de administração evoluam de uma postura apenas fiscalizadora para uma atuação estratégica sobre os temas mais transformadores da agenda corporativa: inteligência artificial, digitalização e transição energética.

    Dada a relevância dos investimentos em plataformas digitais, automação e soluções descentralizadas — e a crescente delegação de decisões a sistemas algorítmicos —, torna-se imperativo investir na formação continuada dos conselheiros e também de seus futuros membros.

    A seguir, propomos um conjunto de ações estruturadas voltadas à educação executiva, com impacto imediato sobre a maturidade em governança e supervisão estratégica.

    Trilha 1 – Formação Essencial: IA, Digitalização e ESG Algorítmico

    MóduloConteúdo-Chave
    Fundamentos de IAO que é, como funciona e como é aplicada nos negócios.
    Algoritmos na prática empresarialCasos de uso no setor elétrico: previsão, manutenção, atendimento, automação.
    Riscos e dilemas éticosViés algorítmico, privacidade, transparência e accountability.
    ESG e algoritmosComo IA impacta os indicadores ambientais, sociais e de governança.
    Regulação e tendências globaisPadrões da OCDE, ISO/IEC 42001, Lei de IA da UE, posição da ANEEL.

    Trilha 2 – Supervisão Estratégica e Governança Algorítmica

    MóduloConteúdo-Chave
    Papéis e responsabilidades do conselhoComo supervisionar IA sem interferir na operação.
    Métricas algorítmicas para conselhosIndicadores críticos: acurácia, impacto financeiro, viés, aderência regulatória.
    Comitês e mecanismos de supervisãoEstruturas ágeis para acompanhar algoritmos em empresas de infraestrutura.
    Código de conduta algorítmicaComo construir e aprovar diretrizes para uso responsável da IA.

    Trilha 3 – Formação Avançada para Presidentes de Conselho e Comitês

    MóduloConteúdo-Chave
    Inteligência Estratégica com IAComo algoritmos geram vantagem competitiva e posicionamento institucional.
    Avaliação e capacitação do colegiadoMatrizes de competências digitais, overboarding e sucessão com foco em inovação.
    Simulações e estudos de casoCenários realistas com apoio de especialistas, para tomada de decisão em ambiente digitalizado.

    Caminho para a Implementação

    As trilhas sugeridas podem ser implementadas de forma modular ou como programas executivos customizados, em parceria com escolas de negócios, instituições do setor elétrico e consultorias especializadas.

    Também é possível estender esse modelo a:

    • Conselheiros fiscais e comitês de auditoria;
    • Diretores estatutários e comitês técnicos;
    • Jovens lideranças com potencial para futuros conselhos.

    A formação não visa tornar conselheiros especialistas técnicos, mas sim decisores preparados, com discernimento estratégico e noções claras de risco, oportunidade e responsabilidade no uso de tecnologias críticas.

    Recomendação Institucional e Caminhos de Adoção Setorial

    A análise das 14 empresas do setor elétrico listadas na B3 demonstra um avanço expressivo na aplicação de inteligência artificial e automação inteligente. No entanto, esse avanço ainda ocorre de forma pulverizada, com foco na eficiência operacional e sem mecanismos estruturados de supervisão algorítmica no nível do conselho.

    Para transformar esse cenário, é necessário que a governança algorítmica seja incorporada institucionalmente às boas práticas do setor, respeitando as especificidades das empresas, o estágio de maturidade digital e os diferentes modelos de atuação (geração, transmissão, distribuição, comercialização).

    Propomos, a seguir, três caminhos convergentes:

    1. Criação de Diretrizes Setoriais para Conselhos

    Organizações como ABRADEE, ABRACEEL, ABRAGE, ABRAGEL, ABRAT, IBGC e ANEEL podem colaborar na elaboração de um conjunto de princípios orientadores para a supervisão algorítmica no setor elétrico, incluindo:

    • Diretrizes para inclusão de competências digitais nas matrizes dos conselhos;
    • Referenciais para mapeamento e classificação de algoritmos críticos;
    • Sugestões de mecanismos de supervisão colegiada (comitês, auditorias, relatórios executivos).

    Essas diretrizes podem seguir o modelo de “compromissos voluntários setoriais”, alinhados às boas práticas internacionais, como o AI Act da União Europeia ou as recomendações da OCDE sobre sistemas autônomos.

    1. Integração com Agendas de ESG e Riscos Estratégicos

    A governança algorítmica deve ser tratada como parte integrante da governança ambiental, social e corporativa (ESG) e dos processos de gerenciamento de riscos estratégicos. Isso implica:

    • Inclusão do tema nos relatórios integrados e de sustentabilidade;
    • Identificação dos algoritmos que impactam indicadores ESG (ex.: viés em atendimento digital, impactos ambientais simulados, decisões automatizadas com efeito social);
    • Deliberação colegiada sobre limites éticos, impactos regulatórios e expectativas de transparência.

    Com isso, a IA deixa de ser tratada como uma tecnologia emergente e passa a ser incorporada à lógica de accountability institucional.

    1. Formação de uma Comunidade de Prática em Governança de IA

    Empresas líderes do setor, em conjunto com universidades, consultorias e entidades de classe, podem constituir uma comunidade de prática interinstitucional sobre governança algorítmica, promovendo:

    • Compartilhamento de experiências e protocolos entre conselhos;
    • Desenvolvimento de benchmarks e indicadores comuns;
    • Apoio à formação continuada dos conselheiros;
    • Articulação com o poder público para proposições regulatórias equilibradas.

    Essa comunidade pode se tornar o núcleo de um pacto setorial de transparência e responsabilidade algorítmica, com forte poder reputacional, inclusive em relação a investidores, órgãos de controle e agências multilaterais.

    Uma Chamada à Ação Estratégica

    O setor elétrico brasileiro tem histórico de protagonismo técnico e regulatório. Agora, diante da complexidade dos algoritmos que já operam invisivelmente em decisões críticas, é chegada a hora de elevar esse protagonismo também à esfera da governança corporativa com visão de futuro.

    Ao adotar mecanismos de governança algorítmica no nível dos conselhos, o setor dá um passo decisivo rumo a uma transição energética que seja não apenas eficiente, mas também ética, transparente e socialmente legítima.

    Conclusão Executiva

    Governança Algorítmica: um novo mandato estratégico para conselhos no setor de energia

    A transformação digital no setor elétrico brasileiro já é um fato consolidado. Dos algoritmos que ajustam redes de distribuição em tempo real às plataformas que gerenciam milhões de interações com clientes, passando por sistemas de previsão climática e modelos de precificação, a inteligência artificial tornou-se um elemento estrutural da operação e da competitividade empresarial.

    A análise dos relatórios de sustentabilidade e integrados de 14 empresas listadas na B3 revela que as iniciativas com IA são hoje generalizadas, com aplicações em praticamente todas as etapas da cadeia elétrica. No entanto, essa maturidade técnica ainda não se reflete em mecanismos formais de supervisão por parte dos conselhos de administração.

    Esse desalinhamento cria um risco estratégico silencioso: conselhos altamente experientes e qualificados, mas sem acesso a trilhas de formação continuada específicas para os novos temas emergentes, podem ser forçados a decidir sobre investimentos e riscos de forma reativa, excessivamente dependentes de pareceres técnicos, ou até mesmo obstruindo avanços por falta de compreensão sistêmica.

    Ao invés de colocar em dúvida a capacidade dos conselheiros — que, em sua maioria, possuem sólida formação em engenharia, finanças e governança — este artigo propõe algo mais estruturante: o reconhecimento de que a governança algorítmica é hoje parte do core das boas práticas de governança corporativa, devendo ser tratada com o mesmo rigor, estratégia e transparência com que se tratam auditoria, riscos financeiros e sustentabilidade.

    O caminho sugerido inclui:

    • Criação de trilhas executivas de formação em IA, algoritmos e riscos digitais;
    • Incorporação do tema à matriz de competências dos conselhos e à agenda dos comitês técnicos;
    • Inclusão de indicadores algorítmicos nos dashboards estratégicos;
    • Adoção de princípios mínimos de conduta para sistemas automatizados;
    • Estruturação de diretrizes setoriais coordenadas por entidades como ANEEL, ABRADEE, ABRACEEL e associações empresariais.

    É chegada a hora de ampliar o olhar: a transição energética em curso é também uma transição de governança. E os conselhos que liderarem esse movimento estarão não apenas mitigando riscos — estarão abrindo espaço para inovações legítimas, sustentáveis e socialmente confiáveis.