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Autor: Eduardo Fagundes

  • MVNOs Corporativos no Brasil: Conectividade como Ativo Estratégico para a Indústria, Energia e Agronegócio

    MVNOs Corporativos no Brasil: Conectividade como Ativo Estratégico para a Indústria, Energia e Agronegócio

    Introdução: O Paradoxo da Conectividade no Brasil

    O Brasil se encontra em uma encruzilhada estratégica em sua trajetória rumo à digitalização plena. Por um lado, o país assiste a um avanço expressivo em tecnologias emergentes, como inteligência artificial, automação industrial, internet das coisas e soluções voltadas à governança ambiental, social e corporativa. Por outro, continua enfrentando limitações severas na camada mais elementar e essencial de qualquer arquitetura digital moderna: a conectividade. Este descompasso revela um paradoxo preocupante. A infraestrutura de dados, que deveria funcionar como base silenciosa da transformação digital, muitas vezes se torna um obstáculo estrutural à eficiência, à inovação e à competitividade.

    Essa fragilidade se manifesta de forma especialmente crítica em setores estratégicos para a economia nacional. No agronegócio, que representa quase 25% do PIB brasileiro, operações cada vez mais automatizadas ainda dependem de sinais instáveis de internet móvel ou de soluções improvisadas em áreas rurais remotas. Na indústria, que busca integrar sistemas de produção inteligentes e sensores interconectados, é comum a coexistência de redes Wi-Fi limitadas, cabos obsoletos e falhas recorrentes de comunicação entre equipamentos. No setor energético, o monitoramento de subestações, usinas e redes de distribuição ainda depende de canais frágeis, com baixa confiabilidade e alto tempo de resposta. Em logística e infraestrutura, a rastreabilidade de cargas, a manutenção preditiva de ativos e a integração de cadeias de suprimento esbarram na escassez de redes de dados robustas, especialmente fora dos grandes centros urbanos.

    Essa realidade contrasta com a narrativa predominante sobre a chegada do 5G ao Brasil. Embora o país tenha implementado parte da infraestrutura necessária e esteja em fase de expansão da cobertura, os benefícios plenos da quinta geração de redes móveis ainda estão longe de serem sentidos de forma sistêmica. O 5G, por definição, permite velocidades elevadas, latência ultrabaixa e alta densidade de dispositivos conectados. No entanto, na prática, esses atributos não se materializam automaticamente. A infraestrutura física pode existir, mas o modelo de negócios predominante — baseado em operadoras tradicionais que oferecem planos genéricos para milhões de consumidores — não atende às particularidades de empresas com operações críticas, dispersas ou de alta complexidade.

    É neste ponto que surge uma nova proposta, ainda pouco explorada no Brasil, mas com enorme potencial transformador: o modelo de operadora móvel virtual corporativa — ou, em inglês, Corporate MVNO (Mobile Virtual Network Operator). Trata-se de um arranjo institucional e técnico que permite que uma empresa opere sua própria rede de telecomunicações móveis, sem a necessidade de construir torres, licenciar espectro ou adquirir infraestrutura pesada. Em vez disso, a organização firma parcerias com operadoras tradicionais ou com agregadores de rede (MVNAs), assumindo o controle da camada lógica da conectividade — aquela responsável por definir prioridades de tráfego, latência, segurança e qualidade de serviço.

    Esse modelo já é consolidado em países da Europa, Ásia e América do Norte, especialmente em ambientes industriais, agrícolas, portuários e energéticos. Nessas regiões, empresas utilizam MVNOs corporativos para controlar o fluxo de dados entre sensores, máquinas, sistemas de gestão e plataformas de inteligência artificial. O resultado é um ambiente digital autônomo, com maior previsibilidade, segurança e capacidade de integração entre ativos físicos e digitais. O ganho não é apenas técnico — é estratégico. Ao controlar sua rede, a empresa passa a ter uma base sólida para reduzir perdas, acelerar processos, inovar em produtos e até mesmo criar novas fontes de receita por meio da oferta de serviços embarcados.

    No Brasil, iniciativas como a do Nubank, com o lançamento da NuCel, mostram que o modelo MVNO pode ser viável economicamente, inclusive em escala. Embora o foco da NuCel seja o consumidor final, o mesmo princípio pode ser adaptado e aplicado com ainda mais impacto em setores empresariais. Em vez de planos de telefonia para pessoas físicas, trata-se de oferecer conectividade sob medida para máquinas, sensores, aplicações críticas e dados operacionais — em outras palavras, de transformar a comunicação digital em uma plataforma estratégica de negócios.

    Diante desse cenário, este artigo se propõe a apresentar de forma técnica e acessível o conceito de MVNO corporativo, contextualizando sua relevância no ambiente brasileiro, explorando seus modelos de implantação, desafios regulatórios e oportunidades de monetização. Ao longo do texto, serão discutidos casos práticos, projeções econômicas e caminhos possíveis para que empresas assumam o controle de sua conectividade, transformando um gargalo invisível em ativo estruturante. O leitor encontrará, assim, não apenas um diagnóstico das limitações atuais, mas uma proposta concreta de superação e liderança na nova economia digital.

    Panorama Global e Local das MVNOs

    O conceito de operadora móvel virtual — ou MVNO, na sigla em inglês para Mobile Virtual Network Operator — surgiu no final dos anos 1990 como uma inovação regulatória para promover concorrência no setor de telecomunicações. Em vez de exigir que novas operadoras construíssem suas próprias redes de torres, cabos e espectro, os modelos MVNO permitiram que empresas licenciadas oferecessem serviços móveis ao consumidor final utilizando a infraestrutura já existente de operadoras tradicionais. Esse arranjo aumentou a diversidade de ofertas, criou nichos de mercado e, principalmente, descentralizou o acesso à conectividade móvel, até então restrita a um pequeno grupo de grandes players.

    Na sua origem, os MVNOs eram vistos como soluções comerciais voltadas ao varejo: empresas que compravam capacidade de rede em atacado e revendiam pacotes de dados, voz e SMS com marcas próprias, estratégias de marketing específicas e modelos de fidelização voltados a segmentos como jovens, igrejas, imigrantes ou instituições financeiras. Essa primeira geração de MVNOs prosperou em países como Reino Unido, França, Alemanha e Estados Unidos, onde a regulação favorecia a entrada de novos operadores e os mercados consumidores apresentavam maturidade suficiente para diferenciar entre propostas de valor distintas. Nos anos seguintes, o modelo se expandiu para outras regiões, ganhando versões mais sofisticadas e técnicas, especialmente em contextos empresariais.

    A evolução mais recente dos MVNOs internacionais está diretamente associada à chegada de tecnologias como o 5G, a internet das coisas e a virtualização de redes. Com a possibilidade de fragmentar a infraestrutura de rede por meio de técnicas como network slicing, tornou-se viável criar instâncias de rede independentes, altamente seguras e configuráveis para aplicações específicas. Essa mudança permitiu que empresas de setores estratégicos — como saúde, portos, energia, segurança pública e manufatura — adotassem redes móveis virtuais privadas para operar seus próprios ambientes digitais críticos.

    Na Alemanha, por exemplo, grandes fabricantes do setor automotivo, como a BMW e a Volkswagen, já utilizam redes privadas 5G operadas por integradores que funcionam como MVNOs industriais. Esses ambientes permitem controle preciso sobre a comunicação entre robôs industriais, sensores de linha de montagem, câmeras de segurança e sistemas de gestão. No Japão, operadoras de saúde usam MVNOs especializados para transmitir dados de pacientes entre ambulâncias, hospitais e centros de emergência com baixa latência e alta confiabilidade. No Reino Unido, projetos em portos e hubs logísticos implementaram MVNOs voltados ao controle de contêineres, guindastes automatizados, drones de inspeção e rastreamento em tempo real.

    Esses exemplos ilustram que o modelo de operadora móvel virtual deixou de ser uma alternativa comercial para se tornar um componente estratégico da infraestrutura digital de nações industrializadas. A chave para essa evolução foi a percepção, tanto por parte dos reguladores quanto das empresas, de que a conectividade móvel é mais do que um serviço — é um vetor de transformação, eficiência e soberania digital.

    No Brasil, o cenário ainda é marcadamente distinto. Embora a Anatel tenha regulamentado a operação de MVNOs desde 2010, por meio da Resolução nº 550, a adoção do modelo seguiu uma trajetória limitada e concentrada no público de consumo final. As operadoras móveis virtuais brasileiras mais conhecidas atuam majoritariamente em nichos de varejo: a Correios Celular oferece planos básicos vinculados aos serviços postais; a Surf Telecom licencia sua tecnologia para marcas diversas, como o grupo Jequiti; e a mais recente NuCel, do Nubank, integra serviços de conectividade a sua plataforma financeira digital, oferecendo pacotes simples de dados para clientes do banco.

    Apesar de inovadoras, essas iniciativas não representam o potencial total do modelo MVNO. Elas permanecem no campo do B2C, com foco em planos pré-pagos, marketing digital e fidelização de cliente final. Ainda não há no Brasil um movimento estruturado e escalável de adoção do MVNO como plataforma de conectividade empresarial — especialmente para resolver os desafios complexos de setores como o agronegócio, a energia elétrica, a logística e a indústria de base. Esses setores operam com ativos dispersos, ambientes remotos, sistemas críticos e exigências regulatórias que tornam o modelo tradicional de conectividade — baseado em redes públicas e planos genéricos — inadequado e ineficiente.

    O que se observa, portanto, é uma lacuna estratégica: de um lado, há uma infraestrutura crescente de redes móveis de quinta geração, com capacidade técnica de suportar aplicações de missão crítica; de outro, há uma demanda reprimida por redes personalizadas, seguras e sob controle empresarial, que permanece desatendida por ausência de modelos de negócio apropriados. No meio desse vácuo, o MVNO corporativo aparece como a ponte possível — e necessária — para conectar as capacidades técnicas da nova geração de redes às reais necessidades dos setores produtivos brasileiros.

    É importante destacar que o Brasil tem todas as condições para replicar as experiências internacionais bem-sucedidas. A regulação da Anatel é moderna, permitindo operação tanto no modelo light (com dependência operacional das MNOs) quanto no modelo full (com mais independência de gestão e infraestrutura lógica). Existem empresas habilitadas a atuar como agregadoras de rede (MVNAs), que podem facilitar o acesso ao modelo para organizações que não desejam ou não podem se credenciar diretamente como MVNO. Além disso, o mercado já conta com integradores de soluções IoT, especialistas em edge computing, fornecedores de dispositivos industriais e plataformas de analytics — todos os elementos necessários para compor um ecossistema de conectividade empresarial autônoma.

    O que falta, ainda, é um movimento coordenado entre visão estratégica, liderança corporativa e vontade de inovar na base da infraestrutura digital. É necessário que empresas líderes nos seus segmentos percebam a conectividade não como um custo inevitável, mas como um ativo gerador de vantagem competitiva. É preciso, também, que conselhos de administração, CIOs e CTOs coloquem o tema na pauta executiva, alinhando tecnologia a resultado e conectividade a propósito de negócio.

    Este artigo pretende contribuir com esse movimento, oferecendo uma análise técnica e estratégica sobre o potencial do modelo MVNO para uso corporativo no Brasil. A próxima seção explora em maior detalhe os aspectos regulatórios, modelos operacionais e alternativas para implantação.

    Infraestrutura, Regulação e Modelos de Negócio

    A infraestrutura de telecomunicações é historicamente um campo intensivo em capital, regulado com rigor e sujeito a concessões públicas. Por muito tempo, isso criou barreiras quase intransponíveis para empresas que desejavam atuar como fornecedoras de conectividade móvel. Esse paradigma começou a mudar de forma estruturada com a introdução do modelo de operadoras móveis virtuais, e no Brasil essa transformação ganhou marco normativo com a publicação da Resolução nº 550 da Anatel, em 22 de novembro de 2010.

    A norma estabelece as regras para credenciamento, operação e relacionamento entre os diversos atores envolvidos no ecossistema MVNO. De forma geral, ela permite que empresas operem como prestadoras de Serviço Móvel Pessoal (SMP) sem necessidade de licença de espectro ou infraestrutura própria, desde que estabeleçam acordos comerciais com uma operadora móvel com rede própria — a chamada MNO (Mobile Network Operator). Com isso, torna-se viável que terceiros — como bancos, indústrias, universidades, empresas de energia ou integradores de tecnologia — criem redes móveis personalizadas e operem comercialmente pacotes de dados, voz e SMS com sua marca e configuração específica.

    A regulamentação brasileira reconhece três formas principais de atuação:

    1. MVNO Full: é o modelo mais autônomo. A operadora virtual possui controle completo sobre os sistemas de suporte ao negócio (billing, CRM, provisionamento) e mantém servidores, plataformas e ambientes próprios. Ela depende apenas da operadora de rede para o transporte do sinal e uso do espectro. Esse modelo exige maior capacidade técnica e investimento inicial, mas proporciona flexibilidade total na definição de produtos, serviços e planos.
    2. MVNO Light: neste caso, a operadora virtual utiliza a infraestrutura lógica da MNO, incluindo plataformas de suporte, sistemas de tarifação e gerenciamento. Sua atuação é mais limitada, mas o custo de entrada é significativamente menor, e a responsabilidade regulatória é compartilhada com a operadora anfitriã. Esse modelo tem sido o mais comum no Brasil até o momento, especialmente em iniciativas do varejo e de instituições financeiras.
    3. MVNA (Mobile Virtual Network Aggregator): trata-se de um modelo intermediário, no qual uma empresa agregadora intermedeia o acesso entre a operadora de rede (MNO) e diversas MVNOs menores, facilitando a entrada de novos operadores no mercado sem que estes precisem negociar diretamente com as grandes operadoras. O MVNA oferece infraestrutura compartilhada e serviços de suporte como um pacote pronto para empresas que desejam atuar como MVNOs com rapidez e menor complexidade. Esse modelo tende a ganhar protagonismo à medida que empresas industriais e agrícolas passem a demandar soluções sob medida.

    Independentemente do modelo adotado, a arquitetura técnica de uma MVNO pode ser altamente adaptável. Em vez de trabalhar com planos genéricos de conectividade, a empresa que atua como MVNO corporativo pode definir seus próprios parâmetros de serviço com base em requisitos operacionais. Isso inclui, por exemplo, a priorização de tráfego entre unidades fabris, a configuração de latência ultrabaixa para aplicações de controle em tempo real, a segmentação de redes por função ou área geográfica, o controle de volume de dados para sensores de campo e a definição de políticas de segurança e privacidade em conformidade com a LGPD.

    Na prática, isso significa que a empresa passa a operar a camada lógica da rede, embora continue dependendo fisicamente da infraestrutura da MNO. A rede passa a ser não apenas um serviço contratado, mas uma plataforma moldável, alinhada à sua realidade operacional. Com a chegada do 5G e de tecnologias como slicing dinâmico, redes privadas e edge computing, essa capacidade de configuração ganha ainda mais relevância, permitindo que o MVNO entregue experiências sob medida para múltiplas aplicações, muitas delas críticas.

    Do ponto de vista econômico, o modelo é especialmente atrativo porque elimina a necessidade de investimento em ativos físicos como antenas, torres, licenças de espectro e enlaces de backhaul. O CAPEX é mínimo, e o OPEX pode ser dimensionado com base em volume de uso ou receita gerada. A maioria dos acordos entre MNOs e MVNOs funciona com base em revenue share — a operadora virtual repassa uma porcentagem da receita obtida ao provedor da rede. Esse modelo de divisão permite que o negócio escale progressivamente, sem comprometer o fluxo de caixa inicial, e com forte previsibilidade de custos. Alternativamente, o MVNO pode contratar pacotes de capacidade em atacado (modelo wholesale) e criar seus próprios planos de revenda.

    Adicionalmente, há ganhos intangíveis associados ao controle da infraestrutura lógica de conectividade. Uma empresa que opera seu próprio MVNO corporativo ganha autonomia para adaptar a rede às suas prioridades, mitiga riscos de indisponibilidade, reduz a dependência de SLA genérico e, principalmente, cria um ativo que pode ser monetizado de diversas formas. A conectividade deixa de ser um centro de custo inerte e passa a ser parte ativa do modelo de negócios. Em empresas com ativos distribuídos geograficamente, como cooperativas agrícolas, concessionárias de energia, operadores logísticos ou cadeias industriais integradas, essa autonomia pode ser o diferencial entre eficiência operacional e exposição a falhas sistêmicas.

    Vale destacar que o modelo MVNO é especialmente indicado para aplicações de missão crítica. Em ambientes onde a falha de comunicação compromete a operação — como o controle de válvulas em uma usina, o envio de dados de um drone de pulverização ou a leitura em tempo real de sensores em linhas de transmissão — não se pode depender de redes públicas com latência variável ou de suporte genérico. A MVNO corporativa, nesse contexto, não é apenas uma alternativa de conectividade: é um pilar de resiliência e continuidade operacional.

    Ao mesmo tempo, a implantação de uma MVNO não precisa ser complexa nem dispendiosa. Com planejamento adequado, é possível iniciar com um projeto-piloto restrito a uma unidade ou região, testando as condições de operação, o modelo de negócios e a resposta da infraestrutura. A partir daí, expande-se de forma modular, aproveitando os mesmos contratos e plataformas para atender diferentes áreas da empresa — ou mesmo criar produtos de conectividade para terceiros, como no caso de cooperativas oferecendo rede para seus associados.

    Nos tópicos seguintes, exploraremos como essa estrutura pode ser aplicada em setores específicos, com casos de uso e projeções de ganho operacional. Veremos também quais são os principais gargalos enfrentados pelas empresas para adotar esse modelo e quais caminhos podem ser seguidos para superá-los de forma pragmática.

    Aplicações Reais por Vertical

    O potencial do modelo MVNO corporativo se revela com clareza quando observamos suas aplicações em setores específicos da economia real. Em todos os casos, a conectividade móvel tradicional — baseada em redes públicas genéricas — tem se mostrado insuficiente para suportar a crescente demanda por automação, rastreabilidade, inteligência operacional e integração digital. Com o avanço do 5G, do edge computing e da internet das coisas, tornou-se imperativo que empresas passem a enxergar a comunicação como um componente estratégico da infraestrutura de produção, e não mais como um serviço auxiliar. A seguir, exploramos como o MVNO corporativo pode atuar como base de sustentação para essa transformação em quatro verticais prioritárias: indústria, agronegócio, energia e logística.

    Indústria

    A indústria de transformação vive um processo profundo de digitalização. As plantas modernas operam com sensores em tempo real, máquinas conectadas, sistemas de controle avançado e plataformas de análise preditiva que consomem e produzem dados continuamente. Esse ecossistema — conhecido como Indústria 4.0 — exige uma infraestrutura de comunicação confiável, segura e altamente responsiva. Muitas empresas, no entanto, ainda se apoiam em redes Wi-Fi limitadas, enlaces cabeados frágeis ou mesmo sinais de telefonia celular pública que não oferecem garantia de qualidade de serviço. Em um ambiente industrial, essas deficiências podem comprometer a eficiência produtiva e, em alguns casos, até a segurança dos trabalhadores.

    Ao operar como uma MVNO, a empresa industrial adquire capacidade de orquestrar sua própria rede lógica, isolando as aplicações críticas do tráfego comum, priorizando dados sensíveis e criando políticas de segurança sob medida. Por exemplo, um fabricante pode configurar fatias específicas da rede para controlar robôs industriais, outro segmento para gerenciar sensores de temperatura e vibração, e uma terceira camada para monitoramento de câmeras de segurança com análise por IA. Esse controle refinado é essencial para evitar congestionamentos, reduzir latência e garantir resposta em tempo real.

    Além disso, o MVNO viabiliza a implantação de digital twins — réplicas digitais de equipamentos físicos que exigem troca constante de dados entre os ativos e a nuvem. Com conectividade dedicada e confiável, torna-se possível simular falhas, testar cenários de manutenção e otimizar processos produtivos de forma contínua. A manutenção preditiva, por sua vez, depende de sensores que capturam pequenas variações de operação, como ruídos, temperatura ou pressão. Sem uma rede estável e com baixa latência, esses dados perdem valor operacional. O MVNO resolve esse gargalo, transformando a conectividade em parte do processo industrial, e não em uma externalidade sujeita a falhas.

    Agronegócio

    O agronegócio brasileiro é um dos setores mais sofisticados do mundo em termos de aplicação tecnológica. Máquinas agrícolas operam com GPS, sensores de solo realizam medições contínuas, estações meteorológicas alimentam modelos preditivos de clima, e drones mapeiam lavouras com alta resolução. No entanto, a maioria dessas operações ocorre em áreas remotas, com baixa cobertura de redes móveis e grande distância entre os ativos. A conectividade, nesse caso, não é apenas limitada — ela é intermitente ou inexistente. Isso cria uma contradição: temos tecnologia embarcada de ponta em tratores e colheitadeiras, mas uma infraestrutura de dados incapaz de suportar sua operação em tempo real.

    É justamente nesse cenário que o modelo MVNO mostra seu valor. Por meio de parcerias com operadoras e uso de infraestrutura compartilhada ou dedicada, cooperativas, usinas e produtores rurais podem estabelecer redes móveis privadas adaptadas à topografia e à necessidade operacional da fazenda. Com estações rádio-base estrategicamente distribuídas, conectadas a enlaces de backhaul via fibra ou satélite, a MVNO entrega cobertura onde a rede tradicional não chega. Mais que isso, permite priorizar a comunicação entre sensores, configurar alertas críticos, armazenar dados localmente com redundância e encaminhar apenas o necessário para a nuvem — reduzindo custos e otimizando o uso da banda disponível.

    Com isso, o produtor pode tomar decisões mais rápidas e precisas sobre irrigação, adubação, colheita e controle de pragas. Os drones podem transmitir imagens em tempo real para análise agronômica. Equipamentos podem ser rastreados com precisão, evitando perdas e otimizando rotas. Em termos ambientais, a conectividade sob controle permite reduzir o uso de insumos, água e combustíveis, aumentando a eficiência do hectare e a sustentabilidade da operação.

    Energia

    O setor de energia elétrica é caracterizado por ativos dispersos, operação contínua, sensibilidade a falhas e forte regulação. Subestações, linhas de transmissão, usinas geradoras e centros de controle precisam trocar dados em tempo real para garantir estabilidade de rede, despacho eficiente e resposta a eventos. Em áreas remotas ou com baixa densidade populacional, muitas dessas instalações contam com links instáveis, operando com VPNs frágeis, rádios analógicos ou conexões móveis sem priorização de tráfego. Isso representa um risco sistêmico — uma falha de comunicação pode impedir o desligamento remoto de um circuito, atrasar o diagnóstico de uma falha ou inviabilizar a gestão de carga em tempo real.

    A adoção de uma MVNO no setor elétrico permite que a concessionária controle sua própria rede lógica de dados, priorizando os fluxos operacionais, criando redundância inteligente e garantindo segurança da informação. A comunicação entre equipamentos SCADA, sensores de medição, relés de proteção e dispositivos de automação pode ser isolada do tráfego geral, com níveis distintos de latência, criptografia e banda. Além disso, a operadora virtual pode integrar dados operacionais a sistemas de previsão de carga, resposta à demanda e integração com fontes renováveis variáveis — como solar e eólica — aumentando a inteligência da rede.

    Com a expansão das usinas distribuídas e o avanço de sistemas de armazenamento, será cada vez mais necessário que os operadores de rede tenham visibilidade granular dos ativos. O MVNO torna isso possível, conectando até os pontos mais isolados da rede com controle pleno sobre como, quando e com que prioridade os dados circulam. Em ambientes híbridos — com fibra óptica, rádio e satélite — a flexibilidade de configurar a rede de forma lógica é uma vantagem operacional incontestável.

    Logística e Portos

    O setor logístico depende de informações em tempo real para operar com eficiência. Do rastreamento de veículos à gestão de armazéns, passando pelo controle de cargas refrigeradas e pela inspeção de ativos críticos, tudo gira em torno de dados que precisam fluir com precisão e agilidade. Em ambientes portuários, a complexidade se intensifica: há tráfego intenso de pessoas, equipamentos e veículos, com operação contínua e exigência de segurança. A comunicação precisa ser robusta, confiável e protegida contra interferências externas.

    O modelo MVNO oferece uma resposta clara a esses desafios. Com uma rede privada operando sob controle da autoridade portuária ou do operador logístico, é possível interligar sensores de monitoramento de contêineres, leitores RFID, câmeras com análise de imagem, sistemas de despacho e plataformas de gestão integrada. A rede pode ser configurada com níveis de qualidade de serviço específicos para cada aplicação: dados críticos com prioridade máxima, comunicação entre veículos com latência ultrabaixa, vídeos em alta resolução com largura de banda dedicada. Em um porto, isso significa maior fluidez nas operações, menor risco de acidentes, rastreamento preciso e maior integração com os sistemas da Receita Federal, da Marinha e de parceiros logísticos.

    Em transporte rodoviário e ferroviário, o MVNO permite rastrear a posição e o estado de cada veículo em tempo real, detectar desvios de rota, comunicar eventos emergenciais e integrar os dados a plataformas preditivas de manutenção. Em cadeias refrigeradas, sensores de temperatura e umidade conectados via rede móvel privada podem emitir alertas automáticos em caso de desvios, evitando perdas milionárias e preservando a qualidade da carga.

    Barreiras e Riscos Percebidos pelas Empresas

    Apesar do avanço das tecnologias digitais e do claro potencial do modelo MVNO corporativo, a adoção dessa abordagem ainda enfrenta resistência em muitas organizações brasileiras. Essas barreiras não são, em sua maioria, de natureza tecnológica. A infraestrutura básica para implementação já existe, e os modelos regulatórios são relativamente estáveis. O que predomina é um conjunto de percepções, dúvidas e incertezas que acabam por paralisar iniciativas que, sob uma análise objetiva, teriam viabilidade econômica e relevância estratégica.

    A primeira barreira identificável é a falta de conhecimento técnico sobre o modelo MVNO. Em muitas empresas, especialmente fora dos setores de telecomunicações e TI, a sigla ainda é pouco conhecida, e seu significado é mal compreendido. Há a crença comum de que operar uma rede de telecomunicações, mesmo virtual, exige um nível elevado de complexidade e obrigações regulatórias impossíveis de serem cumpridas por organizações que não sejam grandes operadoras. Isso gera uma inércia institucional, com o tema sendo descartado antes mesmo de uma análise aprofundada.

    Outro ponto sensível é a percepção de que o MVNO está restrito ao mercado de consumo final. Como a maior parte dos exemplos brasileiros conhecidos está vinculada a operadoras virtuais que atuam no varejo (como Surf, Correios Celular e NuCel), muitos gestores concluem, equivocadamente, que o modelo não se aplica a contextos empresariais. Essa visão limita a capacidade de inovação e impede que áreas técnicas e operacionais proponham soluções mais aderentes à realidade de seus setores. Em empresas industriais, logísticas, energéticas ou agroindustriais, a ausência de cases nacionais de referência cria um ambiente de conservadorismo, mesmo diante de gargalos crônicos de comunicação.

    Há também barreiras organizacionais e culturais. Iniciativas relacionadas à conectividade costumam estar concentradas nas áreas de TI, que historicamente têm foco em segurança da informação, redes internas e suporte aos sistemas corporativos. Já as áreas operacionais — que enfrentam os desafios reais de conectividade em campo — nem sempre têm acesso às decisões sobre infraestrutura de rede. Isso gera uma lacuna de alinhamento estratégico: a necessidade é percebida no chão de fábrica, no campo ou na logística, mas a decisão é tomada em ambientes distantes da realidade operacional. Quando não há diálogo transversal entre áreas técnicas, TI, inovação e liderança executiva, oportunidades como o MVNO acabam se perdendo na estrutura organizacional.

    Outro fator que gera hesitação é a preocupação com a viabilidade econômica e o retorno sobre investimento. Muitos executivos ainda associam projetos de telecomunicações a investimentos altos, prazos longos e payback incerto. Essa percepção é fruto de experiências passadas com implantação de redes privadas, enlaces dedicados ou projetos de automação complexos. No entanto, o modelo MVNO, quando bem estruturado, apresenta um perfil completamente diferente. Ele se baseia em parcerias com operadoras, modelo de divisão de receita (revenue-share) e infraestrutura lógica, com custos iniciais reduzidos. Ainda assim, a ausência de simulações claras e estudos de caso locais impede que essa informação chegue à alta gestão de forma convincente.

    A insegurança regulatória é outra barreira relevante, embora em grande parte infundada. A Anatel possui diretrizes claras e acessíveis para o credenciamento de MVNOs. O processo pode ser conduzido com apoio de parceiros especializados, e há alternativas simplificadas, como a atuação via MVNAs, que permitem às empresas operar redes sob suas marcas com responsabilidade compartilhada. Ainda assim, muitas organizações temem se envolver em processos burocráticos, acreditando que isso possa acarretar riscos jurídicos ou exigências fora de seu escopo de atuação. Esse temor é agravado pela falta de interlocução entre os setores produtivos e os órgãos reguladores.

    Em paralelo, observa-se uma carência de provedores integradores com foco em MVNOs corporativos verticais. Empresas que oferecem soluções de conectividade customizadas para o setor industrial, agrícola ou energético ainda são raras no Brasil. Isso contrasta com o ecossistema existente para ERP, automação industrial e consultorias ESG, por exemplo. Quando uma organização identifica o problema de conectividade e deseja resolver por meio de um MVNO, muitas vezes ela não encontra um parceiro técnico que compreenda simultaneamente as necessidades do seu setor e os requisitos da arquitetura de rede. Essa lacuna de oferta inibe a geração de projetos e restringe o acesso ao modelo, especialmente por empresas de médio porte ou de estrutura mais enxuta.

    Além das barreiras objetivas, existem também riscos percebidos que influenciam negativamente a tomada de decisão. Entre eles, destacam-se:

    • A dúvida sobre a sustentabilidade do modelo a longo prazo, caso haja mudança no relacionamento com a MNO parceira;
    • O receio de que o MVNO não acompanhe a evolução tecnológica, como a chegada de novas bandas, protocolos e exigências de interoperabilidade;
    • A preocupação com a gestão de múltiplas tecnologias simultâneas — como Wi-Fi industrial, LoRa, Bluetooth e redes móveis — em um ambiente híbrido de conectividade;
    • A resistência de fornecedores internos de TI, que podem ver o modelo como um “desvio” das políticas tradicionais de infraestrutura.

    Todas essas barreiras e riscos, embora legítimos do ponto de vista da percepção, podem ser enfrentados com uma abordagem estruturada. O primeiro passo é ampliar o conhecimento técnico e estratégico sobre o modelo, com foco na sua aplicação setorial. O segundo é criar projetos-pilotos com escopo restrito, que permitam testar hipóteses, calcular ROI e construir casos internos de sucesso. O terceiro é estabelecer alianças com integradores especializados, que conheçam tanto o universo MVNO quanto as dores do setor atendido. Por fim, é fundamental que o tema chegue ao nível estratégico da empresa, para que a decisão não seja tomada apenas com base em critérios técnicos, mas com visão de futuro e posicionamento competitivo.

    Na próxima seção, exploraremos como estruturar a implantação de um MVNO corporativo, detalhando as fases recomendadas, os atores envolvidos e os caminhos regulatórios mais eficazes.

    Estratégias de Implantação: Como Estruturar um MVNO Corporativo

    A adoção de um modelo MVNO corporativo, apesar de parecer ousada à primeira vista, pode ser conduzida de forma progressiva, controlada e com riscos reduzidos, desde que a implantação siga uma estratégia bem definida. A chave está em compreender que esse tipo de projeto não exige uma transformação completa e imediata da infraestrutura de comunicação da empresa. Pelo contrário: ele pode — e deve — começar pequeno, com um piloto bem planejado, para então evoluir conforme os aprendizados acumulados, as economias demonstradas e as oportunidades de monetização identificadas.

    A estruturação de um MVNO corporativo passa, geralmente, por cinco fases principais: diagnóstico, definição do modelo operacional, formalização dos parceiros e contratos, implantação técnica do piloto, e expansão estratégica. A seguir, cada etapa é detalhada, com sugestões práticas para organizações interessadas em liderar esse movimento.

    Fase 1: Diagnóstico das Dores e Oportunidades de Conectividade

    O ponto de partida é identificar, de forma clara e objetiva, onde estão os gargalos de comunicação dentro da organização. Esses gargalos podem se manifestar como falhas recorrentes em unidades produtivas, latência alta em operações remotas, ineficiências logísticas causadas por perda de rastreabilidade, ausência de visibilidade em ativos agrícolas ou dificuldade de integrar dados de campo com sistemas analíticos e ERPs.

    Esse diagnóstico não deve se limitar a uma análise técnica da cobertura de rede atual. É necessário entender o impacto dessas falhas sobre os processos-chave da empresa, sobre a tomada de decisão e sobre a experiência do cliente. Também é útil mapear quais tecnologias dependem de comunicação confiável — como sensores, drones, sistemas SCADA, câmeras de segurança, equipamentos autônomos, aplicações móveis e plataformas de IA.

    Com base nesse mapeamento, define-se a área ou processo prioritário para o piloto. O ideal é escolher uma operação com impacto relevante, mas escopo controlável — uma planta industrial, uma fazenda, uma subestação, um armazém logístico, ou mesmo uma célula crítica dentro de um processo maior.

    Fase 2: Escolha do Modelo Operacional e Regime Regulatória

    A segunda etapa consiste em definir qual será o formato jurídico e técnico da operação MVNO. Como vimos anteriormente, existem três caminhos principais:

    • MVNO Full, com maior autonomia, controle e responsabilidades regulatórias;
    • MVNO Light, com infraestrutura de suporte compartilhada com a operadora parceira;
    • MVNO via MVNA, utilizando estrutura agregadora, que oferece uma solução “pronta para operar”.

    A escolha dependerá da maturidade tecnológica da empresa, da sua estrutura organizacional, da urgência do projeto e da natureza do setor. Empresas com equipe de TI robusta e histórico de gestão de infraestrutura própria podem optar por modelos mais independentes. Já organizações de médio porte ou com menos familiaridade com regulação e telecomunicações podem se beneficiar do modelo light ou da intermediação de um MVNA.

    Essa etapa também inclui a análise de requisitos regulatórios junto à Anatel. O processo de credenciamento, embora burocrático, é viável e pode ser conduzido com apoio de escritórios jurídicos e consultores especializados. O uso de MVNA reduz significativamente essa complexidade, sendo uma alternativa eficaz para quem deseja testar o modelo antes de formalizar uma operação regulada própria.

    Fase 3: Seleção dos Parceiros Técnicos e Comerciais

    O sucesso da implantação depende diretamente da escolha dos parceiros envolvidos. Três tipos de parceria são fundamentais:

    1. Operadora de Rede (MNO): responsável por prover a infraestrutura física (espectro, torres, backhaul). O contrato com a MNO pode ser de revenda (wholesale), compartilhamento de receita (revenue-share) ou via intermediário.
    2. Integrador de Soluções MVNO: empresa responsável por desenhar a arquitetura lógica da rede, selecionar os equipamentos (gateways, antenas, servidores, eSIMs), configurar as regras de priorização, latência, segurança e provisionamento.
    3. Parceiros de dispositivos e aplicações: fornecedores de sensores, módulos IoT, plataformas de analytics, sistemas operacionais industriais, SCADA, ERPs, e conectores de IA que irão utilizar a rede.

    É altamente recomendável buscar parceiros que compreendam a linguagem do setor em que a empresa atua. Um integrador que conheça as demandas de uma fábrica, de uma fazenda ou de uma distribuidora de energia será mais eficiente na definição dos parâmetros de rede do que um especialista genérico em telecom.

    Fase 4: Implantação Técnica e Execução do Projeto-Piloto

    Com os parceiros definidos, inicia-se a fase de implantação. Ela envolve:

    • A instalação de equipamentos de rede local (quando necessário), como small cells, torres móveis, roteadores industriais ou gateways IoT;
    • A configuração da rede virtual, incluindo slicing, qualidade de serviço, segmentação e provisionamento de dispositivos;
    • A emissão de SIM cards físicos ou virtuais (eSIMs) para os equipamentos conectados;
    • A integração com os sistemas de gestão da empresa, como plataformas de supervisão, dashboards, alarmes e interfaces de usuário.

    O projeto-piloto deve ter metas claras de desempenho: latência, cobertura, confiabilidade, volume de dados, tempo de resposta, custos operacionais e impacto nos indicadores do processo. Com isso, é possível construir uma linha de base para comparação com o modelo anterior e validar a viabilidade do MVNO como solução estrutural.

    É importante envolver os usuários da operação desde o início — operadores de planta, supervisores, técnicos agrícolas, engenheiros de manutenção, motoristas ou analistas. Isso garante feedback direto sobre o funcionamento da rede e aumenta a chance de sucesso no uso prático.

    Fase 5: Avaliação e Expansão Estratégica

    Finalizado o piloto e avaliados seus resultados, a empresa estará apta a decidir os próximos passos. Em geral, existem três direções possíveis:

    • Escalar para outras unidades ou regiões, replicando o modelo com ajustes;
    • Integrar novos serviços à rede MVNO, como câmeras, sensores adicionais, dashboards preditivos ou APIs abertas;
    • Oferecer conectividade como serviço para terceiros — por exemplo, uma cooperativa agrícola pode prover rede privada para seus cooperados; uma distribuidora pode monetizar o acesso de parceiros logísticos ao seu sistema; uma indústria pode oferecer pacotes integrados a fornecedores ou clientes.

    Essa fase também permite refinar os contratos, renegociar condições com MNOs, avaliar novas tecnologias (como 5G SA, NB-IoT, LTE-M) e criar novos modelos de negócio internos. A empresa pode, inclusive, considerar o MVNO como uma nova linha estratégica — uma unidade de negócio digital — com autonomia orçamentária e metas próprias.

    Ao estruturar a implantação com base nesse roteiro, a empresa reduz riscos, aumenta a clareza entre as áreas envolvidas e transforma uma inovação técnica em uma alavanca estratégica concreta. No próximo tópico, exploraremos como essa transformação pode se converter em ganhos econômicos tangíveis e em novos modelos de monetização recorrente.

    Projeções Econômicas e Monetização

    Uma das principais vantagens do modelo MVNO corporativo é que ele permite à empresa transformar o que historicamente foi considerado um custo fixo de infraestrutura — a conectividade — em um vetor direto de retorno econômico e geração de receita. Ao assumir o controle da rede móvel lógica e adaptá-la à sua operação, a organização não apenas melhora sua eficiência operacional, como também abre espaço para explorar novos modelos de negócio baseados em serviços digitais, dados e inteligência embarcada.

    O impacto financeiro da adoção de um MVNO pode ser avaliado sob três dimensões complementares: economia operacional (OPEX), valorização de ativos e monetização direta. Em cada uma delas, os ganhos potenciais são relevantes e, em muitos casos, subestimados no planejamento tradicional.

    1. Redução de Custos Operacionais e Aumento de Eficiência (Economia de OPEX)

    A substituição de redes públicas frágeis por redes virtuais controladas pela empresa gera economia imediata em diversas frentes. Em ambientes industriais, agrícolas ou energéticos, a indisponibilidade da rede de dados compromete diretamente a produtividade. Um tempo de resposta elevado, por exemplo, pode significar horas de paralisação em linhas de produção, atraso no despacho de cargas ou falha na aplicação de insumos em lavouras.

    Ao configurar uma rede sob medida — com qualidade de serviço garantida, latência ultrabaixa, protocolos de priorização e redundância inteligente — a empresa passa a operar com maior previsibilidade e menor risco de interrupção. Isso se traduz em:

    • Redução de paradas não planejadas;
    • Menor necessidade de deslocamento de equipes técnicas para manutenção;
    • Otimização do consumo de recursos como água, energia e insumos agrícolas;
    • Diminuição de perdas em cadeias logísticas e operações de campo;
    • Automatização de tarefas com apoio de sensores e IA embarcada.

    Estudos de caso internacionais indicam que a economia operacional gerada por redes móveis privadas varia entre 15% e 35% do custo atual de conectividade tradicional, dependendo da aplicação e da maturidade digital da operação. No agronegócio, por exemplo, sensores conectados por rede 5G privada permitiram a redução de 30% no uso de água e de 20% em fertilizantes, além da diminuição de até 90% na aplicação de herbicidas por pulverização direcionada. Esses ganhos não dependem de grandes volumes de tráfego de dados — dependem de confiabilidade, segurança e integração contínua, atributos viabilizados por uma MVNO bem estruturada.

    1. Valorização de Ativos e Ganhos Intangíveis

    Ao controlar a própria rede lógica de comunicação, a empresa passa a integrar seus ativos operacionais a um sistema de monitoramento em tempo real e a uma camada de inteligência que aumenta seu valor de uso. Em outras palavras, o ativo físico — seja ele um trator, uma turbina ou uma esteira transportadora — torna-se um ativo digital, com visibilidade, rastreabilidade e otimização contínua.

    Essa transformação é relevante para:

    • Aumentar a vida útil dos equipamentos, por meio de manutenção preditiva;
    • Reduzir riscos operacionais, com sistemas de alerta precoce e desligamento automático;
    • Facilitar auditorias e certificações, especialmente em processos com exigências regulatórias;
    • Melhorar indicadores de ESG, ao permitir medição e rastreabilidade em tempo real;
    • Aumentar a transparência frente a investidores, fornecedores e autoridades reguladoras.

    Esses ganhos são frequentemente desconsiderados em análises de payback tradicionais, mas têm impacto direto sobre valuation, compliance e reputação institucional. Em setores pressionados por padrões internacionais — como energia, alimentos e logística — essa valorização pode ser o diferencial na manutenção de contratos, conquista de novos mercados ou acesso a financiamento.

    1. Geração de Receita com Novos Produtos e Serviços (Monetização Direta)

    Talvez o aspecto mais inovador do modelo MVNO corporativo seja a possibilidade de criar novas fontes de receita recorrente, estruturadas sobre a conectividade digital. A empresa que opera uma rede móvel própria não está limitada ao uso interno da infraestrutura. Ela pode, com a devida modelagem jurídica e técnica, vender serviços sobre essa rede, criar pacotes integrados e lançar produtos digitais com valor agregado.

    Algumas possibilidades incluem:

    • Agro-as-a-service: cooperativas e grupos agrícolas podem oferecer conectividade, sensores e análise de dados como pacote para seus cooperados, transformando a rede em um insumo operacional.
    • Manutenção remota conectada: fabricantes podem vender contratos com manutenção preditiva via rede MVNO integrada aos seus equipamentos, com alertas automáticos e diagnósticos à distância.
    • Rastreamento e telemetria como produto: operadores logísticos e de transporte podem comercializar soluções de rastreabilidade para parceiros e clientes, usando sua própria rede como diferencial.
    • ESG-as-a-service: empresas que precisam reportar indicadores ambientais e sociais podem utilizar redes privadas para medir emissões, consumo, descarte e rastreabilidade, oferecendo esses dados como serviço para terceiros (ex: supermercados, governos, exportadores).
    • Data sharing com parceiros de cadeia: redes MVNO podem incluir sensores em produtos, embalagens ou ativos, cujos dados são compartilhados com parceiros estratégicos (fornecedores, transportadores, varejistas), gerando inteligência coletiva e monetizável.

    Esse movimento reposiciona a empresa como provedora de soluções digitais, indo além da produção ou distribuição física. Em termos práticos, isso permite que a receita da organização cresça sem necessariamente depender de aumento de volume físico ou ampliação da estrutura produtiva. É uma forma de capturar valor no “espaço digital” que se abre entre os dados operacionais e a tomada de decisão inteligente.

    Vale destacar que a monetização pode ocorrer tanto com terceiros como internamente, por meio de reorganização de centros de custo. Por exemplo, a área de operações pode contratar da área de infraestrutura digital (a operadora MVNO interna) um pacote de serviços com SLA definido, orçamento previsível e métricas de desempenho claras. Essa lógica é comum em grandes grupos empresariais e permite a profissionalização da gestão da conectividade como serviço interno, com ganhos em controle, accountability e governança.

    Considerações Finais sobre a Viabilidade Econômica

    Ao contrário do que muitos executivos imaginam, a criação de uma MVNO corporativa não exige grandes investimentos iniciais. Com modelos baseados em compartilhamento de receita e uso de MVNAs, é possível iniciar com CAPEX reduzido e expandir com base em ROI comprovado. Além disso, os benefícios não se limitam ao custo da rede em si — eles se estendem a todo o ecossistema de automação, gestão, eficiência e inovação.

    Em um cenário de pressão por resultados, redução de desperdícios e diferenciação competitiva, o controle sobre a infraestrutura de comunicação pode ser o divisor de águas entre empresas que apenas reagem e aquelas que lideram. Na seção seguinte, exploraremos como essa liderança se consolida quando a empresa assume a conectividade como ativo estratégico.

    Conclusão: A Conectividade Como Ativo Estratégico

    Durante décadas, a conectividade foi tratada pelas empresas como um item de infraestrutura auxiliar — um serviço contratado a terceiros, com baixa diferenciação, gerido por departamentos técnicos com escassa visibilidade estratégica. Essa visão está sendo desafiada por um novo contexto tecnológico, econômico e competitivo. No centro dessa transformação está o reconhecimento de que a comunicação de dados não é mais um meio para viabilizar processos: ela se tornou um componente essencial do próprio modelo de negócio. E, como tal, deve ser tratada como ativo estratégico.

    O modelo de operadora móvel virtual corporativa (MVNO) materializa essa mudança de paradigma. Ele permite que empresas de qualquer setor — e não apenas grandes operadoras de telecomunicações — assumam o controle de sua camada lógica de conectividade. Com isso, tornam-se capazes de personalizar redes, priorizar dados críticos, isolar fluxos operacionais, garantir segurança, otimizar custos e, sobretudo, criar novas formas de capturar valor a partir da inteligência embutida em seus ativos.

    Ao longo deste artigo, mostramos que a aplicação prática desse modelo já é realidade em países que lideram a transformação digital em setores industriais, logísticos, portuários, energéticos e agrícolas. Mais do que viável, o MVNO corporativo se mostra eficaz, escalável e alinhado com as diretrizes de eficiência operacional, sustentabilidade e inovação exigidas pelos mercados contemporâneos. Os casos internacionais indicam uma curva clara: organizações que internalizam a gestão da conectividade ganham agilidade, reduzem riscos, aumentam a resiliência e ampliam suas margens operacionais.

    No Brasil, esse movimento ainda está em fase embrionária. A regulação permite, os parceiros técnicos existem, a infraestrutura 5G avança — mas falta articulação estratégica. Falta visão. A maioria das empresas ainda hesita diante do desconhecido, ancorada em modelos legados e em receios infundados sobre regulação, complexidade ou retorno econômico. Essa hesitação, no entanto, representa uma oportunidade clara para quem agir primeiro.

    Empresas que adotarem o modelo MVNO de forma estruturada poderão não apenas resolver gargalos crônicos de conectividade — como perdas logísticas, falhas em redes SCADA, baixa visibilidade de ativos ou limitação de automação — mas também lançar novos produtos digitais, monetizar dados operacionais, estruturar serviços por assinatura e criar plataformas integradas com parceiros de cadeia de valor. Isso não é teoria. É prática aplicada, sustentada por tecnologias disponíveis e modelos jurídicos reconhecidos.

    Mais que uma alternativa técnica, o MVNO corporativo é uma ferramenta de posicionamento. Ele permite que a empresa não dependa de planos genéricos, torres distantes ou suporte impessoal. Permite que ela estabeleça seus próprios parâmetros de desempenho, segurança e escala. Permite, ainda, que a conectividade deixe de ser um gargalo invisível e se torne parte do portfólio estratégico — como já ocorre com energia, dados e propriedade intelectual.

    O momento para agir é agora. A digitalização dos setores críticos da economia brasileira não acontecerá plenamente com redes públicas instáveis, planos de telefonia voltados ao consumidor final ou soluções improvisadas no campo ou no chão de fábrica. Será preciso ousar. Será preciso criar redes próprias, digitais, inteligentes e integradas ao propósito de cada organização.

    Para isso, não é necessário reinventar a roda, mas sim adaptar com inteligência modelos já testados. Iniciar com um piloto. Medir com rigor. Escalar com segurança. Monetizar com criatividade. E, acima de tudo, construir uma nova cultura em que a conectividade seja vista como o que realmente é: um ativo estratégico para o século XXI.

  • Setor Elétrico em Transição: O que Mudam as MPs 1.300 e 1.304 para a Geração, o Gás Natural e os Encargos

    As Medidas Provisórias nº 1.300 e nº 1.304, publicadas em maio e julho de 2025, mudam de forma concreta a lógica de planejamento, investimento e financiamento do setor elétrico. De forma coordenada, elas substituem a contratação obrigatória de térmicas a gás natural por leilões de PCHs e impõem um teto para os encargos da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), além de criar um novo encargo específico para quem se beneficia de subsídios.

    Essas medidas não são apenas correções técnicas: elas reposicionam o papel do gás natural, apertam o controle sobre subsídios e reorganizam o fluxo de recursos do setor. Para conselheiros e executivos, isso exige atenção redobrada — não apenas na análise regulatória, mas na revisão de portfólios, contratos e estratégias de atuação institucional.

    1. O que dizem as MPs

    A MP 1.300/2025 revoga a cláusula da Lei da Eletrobras que obrigava a contratação de 8 GW de térmicas a gás em regiões sem infraestrutura adequada. Em vez disso, prevê até 3 GW em Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), com leilões a partir de 2025 e entrada em operação até 2032.

    Já a MP 1.304/2025 limita o crescimento da CDE — fundo que sustenta os subsídios do setor — e cria um encargo para os próprios beneficiados. Isso inclui geradores com descontos em TUST/TUSD, cooperativas de geração distribuída e projetos incentivados por políticas anteriores.

    As duas MPs têm força de lei imediata, mas precisam ser aprovadas pelo Congresso em até 120 dias. Ainda estão em tramitação inicial, com centenas de emendas protocoladas e pressões vindas de vários setores.

    1. Quem Ganha e Quem Perde

    As medidas reorganizam forças no setor. A tabela abaixo resume os efeitos diretos para os principais grupos:

    Grupo afetadoImpacto principal
    Térmicas a gás naturalPerdem contratos garantidos e enfrentam risco de ociosidade
    Petroleiras e operadores de gásPerdem previsibilidade de demanda firme para justificar infraestrutura
    PCHsGanham espaço nos leilões, mas passam a pagar encargo
    Geradores com subsídiosPrecisam rever estrutura de retorno diante de nova cobrança
    Grandes consumidores (ACL)Tendem a se beneficiar com menor pressão tarifária e mais previsibilidade
    DistribuidorasGanham estabilidade na repasse tarifário, mas precisam se adaptar
    1. O que muda no papel do gás natural

    Antes das MPs, o gás natural era considerado peça obrigatória no crescimento da geração elétrica. Essa demanda forçada justificava investimentos em usinas, gasodutos e terminais. Agora, o gás passa a ser usado de forma mais flexível — apenas quando necessário — como recurso de apoio ao sistema. Isso muda sua atratividade financeira. Projetos baseados em uso contínuo precisam ser revistos. O foco se desloca para aplicações industriais, cogeração, datacenters e backup de cargas críticas.

    1. Novas Regras para Subsídios e Encargos

    A CDE, que bancava os descontos e incentivos para fontes renováveis, passa a ter um teto. Isso significa que seu crescimento será limitado a partir de 2026, o que traz alívio para os consumidores — especialmente os do mercado livre. Em paralelo, os beneficiários desses subsídios passam a ser cobrados por um novo encargo. Isso inclui PCHs, projetos de geração distribuída, eólica offshore e biomassa com incentivo. O objetivo é corrigir distorções e evitar que o peso da conta recaia sobre quem não participa dos benefícios.

    TemaAntes das MPsCom as MPs 1.300 e 1.304
    Térmicas inflexíveisObrigatórias por lei, mesmo sem mérito econômicoSubstituídas por leilões de PCHs com menor custo global
    Gás natural no setor elétricoDemanda estruturante e inflexívelUso pontual, como flexibilidade ou backup
    Conta CDESem limite real, crescia com cada novo subsídioPassa a ter teto orçamentário
    SubsídiosCustos bancados por todos os consumidoresEncargo específico para os agentes beneficiados
    1. Riscos na Tramitação: Conflitos e Pressões

    No Congresso, as MPs enfrentam pressões de vários grupos com interesses distintos. Parlamentares ligados às térmicas, petroleiras, cooperativas de energia e projetos regionais buscam alterar os textos com emendas. Por outro lado, entidades como ABRAGEL, ABRACE, ABRADEE e parte do governo tentam manter o núcleo da proposta — com foco em eficiência econômica, previsibilidade tarifária e transição energética ordenada.

    A disputa gira em torno de três pontos principais:

    1. Reintrodução das térmicas por razões regionais ou políticas.
    2. Flexibilização do teto da CDE por meio de exceções.
    3. Redução ou suspensão do encargo para beneficiados por subsídios.
    1. Plano de Ação Recomendado

    Para conselheiros e executivos, este é o momento de agir com clareza e visão de médio prazo. As decisões regulatórias estão abertas e podem mudar o equilíbrio do setor nos próximos anos.

    Ações recomendadas:

    • Revisar o portfólio de geração, com atenção especial para ativos térmicos e projetos de gás com demanda inflexível.
    • Atualizar projeções de retorno de empreendimentos subsidiados, já considerando o novo encargo e o teto da CDE.
    • Recalibrar estratégias de expansão com foco em fontes híbridas, flexíveis e competitivas no mérito técnico-econômico.
    • Acompanhar de perto a tramitação no Congresso, inclusive com mapeamento de parlamentares e monitoramento das comissões mistas.
    • Engajar-se institucionalmente por meio das entidades representativas (ABRAGEL, ABRACE, ABRADEE, ABRAGET, ABEEólica, ABIOGÁS, ABSOLAR), reforçando posicionamentos técnicos baseados em dados e modicidade tarifária.
    • Reforçar a comunicação com investidores, conselhos e diretoria, destacando riscos regulatórios, transição estratégica e oportunidades de realinhamento de capital.
    1. Conclusão

    As MPs 1.300 e 1.304 inauguram uma nova fase de transição regulatória no setor elétrico. Elas colocam fim a obrigações distorcidas, abrem espaço para fontes mais competitivas e trazem mais responsabilidade fiscal para a estrutura de encargos. O momento exige leitura estratégica, agilidade e posicionamento técnico. Quem entender o novo jogo mais cedo poderá realinhar seu portfólio com vantagem — e evitar ser surpreendido por ativos obsoletos ou contratos insustentáveis.

  • As MPs 1.300 e 1.304/2025 e a Nova Engenharia Regulatória do Setor Elétrico Brasileiro

    As MPs 1.300 e 1.304/2025 e a Nova Engenharia Regulatória do Setor Elétrico Brasileiro

    Análise Tática para Gestores Técnicos e Administrativos

    Introdução: A Transição de um Setor Regulado para um Setor com Mérito Econômico

    O setor elétrico brasileiro vive, em 2025, um dos momentos mais significativos de reorganização institucional desde a reformulação introduzida pela Lei nº 10.848/2004. A publicação das Medidas Provisórias nº 1.300 e nº 1.304, respectivamente em maio e julho deste ano, marca não apenas uma revisão de políticas públicas anteriores, mas um movimento coordenado para redefinir os fundamentos sobre os quais o setor opera — especialmente no que diz respeito à expansão da oferta, à gestão dos encargos setoriais e à previsibilidade dos custos para os consumidores.

    As duas MPs atuam em frentes complementares, mas profundamente interligadas. A MP nº 1.300 revoga dispositivos da Lei nº 14.182/2021 (a chamada Lei da Eletrobras), que obrigavam a contratação de 8 GW de usinas termelétricas a gás natural em regiões carentes de infraestrutura, independentemente de critérios técnicos de despacho, localização ou custo marginal. A nova diretriz substitui essa obrigação por leilões de reserva de capacidade baseados em menor custo global, priorizando Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) com entrada em operação prevista a partir de 2032. O objetivo declarado é realinhar o planejamento da expansão à lógica econômica e operacional do Sistema Interligado Nacional (SIN), rompendo com decisões anteriores motivadas por articulações políticas regionais e compromissos orçamentários externos ao setor.

    Já a MP nº 1.304 responde à crescente pressão sobre a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), que nos últimos anos passou a abrigar uma série de incentivos, subsídios e compensações para fontes renováveis, consumidores rurais, programas sociais e obrigações setoriais. Ao estabelecer um teto para o crescimento dos encargos e criar um encargo adicional a ser pago pelos próprios agentes beneficiados, essa medida introduz um novo paradigma de responsabilidade fiscal e equilíbrio setorial. A mudança ocorre em meio à controvérsia gerada pela derrubada de vetos à Lei das Eólicas Offshore (Lei nº 14.403/2022), que havia ampliado os subsídios sem o devido ajuste nos mecanismos de financiamento.

    Mais do que alterações pontuais, essas MPs representam uma transição clara: o setor elétrico caminha de um modelo em que decisões estratégicas eram condicionadas por imposições regulatórias, obrigações de contratação e incentivos pouco transparentes, para um ambiente no qual o mérito econômico, a previsibilidade tarifária e a disciplina fiscal tornam-se princípios estruturantes. O planejamento deixa de ser orientado por reservas obrigatórias, e passa a considerar critérios de otimização técnica e financeira — abrindo espaço para um mercado mais eficiente, mas também mais exigente em termos de análise de risco, modelagem de investimentos e governança regulatória.

    Para os gerentes técnicos e administrativos, essa transição exige não apenas uma atualização do repertório regulatório, mas uma atuação ativa na reestruturação de carteiras de projetos, revisão de contratos de suprimento, recalibragem de projeções de viabilidade e monitoramento sistemático das decisões que virão do Congresso Nacional, da ANEEL, da CCEE e do Ministério de Minas e Energia (MME). Em muitos casos, caberá a essas áreas fornecer o suporte analítico necessário para que diretores e conselheiros compreendam os impactos financeiros, operacionais e reputacionais associados à aprovação — ou eventual modificação — dessas medidas.

    O presente artigo, estruturado de forma aplicada, busca apoiar esse trabalho. Ao longo das seções seguintes, abordaremos os efeitos práticos das duas MPs sobre ativos térmicos, contratos de gás natural, projetos com subsídios, modelagem tarifária e estratégias de posicionamento institucional. A ideia central é oferecer um instrumento técnico para diagnóstico interno e planejamento de ações, capaz de fortalecer a capacidade das empresas em navegar um cenário regulatório que, ao mesmo tempo em que se torna mais racional, também se mostra mais competitivo e sujeito a disputas políticas relevantes.

    Panorama Geral das MPs e os Efeitos para a Governança Interna

    As Medidas Provisórias nº 1.300 e nº 1.304 não operam isoladamente. Elas representam dois movimentos articulados: o primeiro visa corrigir distorções no planejamento da expansão da oferta de energia; o segundo, reequilibrar a base de financiamento do setor elétrico. Combinadas, essas mudanças afetam diretamente o núcleo da governança interna das empresas — do planejamento energético ao compliance regulatório, passando por decisões de CAPEX, renegociação contratual e revisões de modelagem de retorno financeiro.

    Para os gerentes das áreas técnicas e administrativas, compreender essas medidas em detalhe é essencial para antecipar riscos, ajustar estratégias de médio prazo e alinhar a empresa a um novo ciclo regulatório mais pautado por eficiência e transparência.

    MP 1.300: Fim da Obrigação das Térmicas Inflexíveis e Redefinição da Expansão

    A Medida Provisória nº 1.300/2025 revoga o artigo 5º da Lei nº 14.182/2021, que estabelecia a obrigatoriedade de contratação de 8 GW de usinas termelétricas movidas a gás natural, em localizações específicas (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Norte de MG e ES), com operação inflexível e obrigatória até 2036. Essas usinas seriam contratadas fora da lógica de despacho por mérito, o que implicava operação constante, mesmo quando não fossem competitivas economicamente.

    Com a MP, essa obrigação é substituída por até 3 GW de PCHs a serem contratadas por leilões na modalidade de reserva de capacidade, orientados por menor custo global — conceito que considera não apenas o preço da energia ofertada, mas também o custo sistêmico de operação, perdas, serviços ancilares e impacto tarifário agregado. A entrada em operação das novas unidades está prevista para o período entre 2032 e 2036, respeitando o horizonte originalmente previsto para as térmicas, mas com uma lógica contratual e operacional distinta.

    Conceito chave: O que são térmicas inflexíveis?

    São usinas que, por contrato ou por imposição regulatória, devem operar continuamente, independentemente do custo do despacho. Diferem das térmicas por mérito, que só operam quando o preço da energia no mercado justifica sua ativação. A inflexibilidade reduz a eficiência do sistema, aumenta o custo marginal e gera sobrecontratação de energia, impactando diretamente a tarifa.

    Implicações operacionais e contratuais para as empresas:

    • Empresas com projetos térmicos já contratados ou em processo de licenciamento perdem o lastro legal que garantia demanda certa.
    • Contratos de suprimento de gás natural (sobretudo take-or-pay) perdem sustentação, com risco de judicialização ou renegociação compulsória.
    • Financiadores e investidores que calcularam retorno com base em PPA garantido precisam revisar premissas de viabilidade.
    • Empresas integradas verticalmente (gás-geração) enfrentam risco de ociosidade da cadeia de suprimento.

    A MP 1.300 reorienta o planejamento da expansão para fontes com menor impacto ambiental, maior competitividade e menor custo sistêmico. Ela também introduz o conceito de leilão por eficiência e, indiretamente, favorece ativos com flexibilidade operacional — como PCHs, usinas híbridas, cogeração e ativos despacháveis sob demanda.

    MP 1.304: Teto para a CDE e Novo Encargo para Beneficiários de Subsídios

    A Medida Provisória nº 1.304/2025, por sua vez, trata do financiamento do setor. Ela surge após a repercussão da derrubada de vetos à Lei nº 14.403/2022, que aumentou os incentivos à geração eólica offshore e a outras fontes incentivadas, pressionando o orçamento da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE). Com os custos da CDE se aproximando de R$ 35 bilhões ao ano — e crescendo em ritmo superior à inflação —, cresceu a demanda por uma reforma que limitasse sua expansão desordenada e redistribuísse os encargos com mais equidade.

    A MP impõe um teto financeiro à CDE a partir de 2026. O valor exato será fixado anualmente na Lei Orçamentária, com base em projeções do Ministério de Minas e Energia e da ANEEL, mas não poderá ultrapassar os limites estabelecidos pela MP. O teto visa trazer previsibilidade tarifária para consumidores e distribuidoras, além de forçar maior disciplina na concessão de novos subsídios.

    Mais importante ainda, a MP cria um novo encargo específico a ser pago por agentes que se beneficiam de incentivos custeados pela própria CDE. Entre esses agentes, destacam-se:

    • Geradores incentivados (com desconto em TUST/TUSD);
    • Cooperativas e consórcios de geração distribuída;
    • Produtores independentes com isenções regionais;
    • Usinas eólicas offshore com tratamento especial.

    Implicações diretas para a estrutura financeira das empresas:

    • Redução da margem líquida de projetos com subsídio, já que parte do benefício será compensado por um novo encargo;
    • Necessidade de revisão dos fluxos de caixa projetados, sobretudo em modelos que consideram retorno de longo prazo com base em incentivos mantidos indefinidamente;
    • Risco de mudança na estrutura de PPAs — contratos já assinados poderão sofrer reequilíbrio se a alteração regulatória for considerada relevante;
    • Impacto na precificação de novos projetos, com necessidade de refletir o encargo nos lances de leilões e nos contratos com consumidores finais.

    A proposta atende à demanda histórica de grandes consumidores e associações como a ABRACE por maior justiça tarifária, uma vez que os subsídios antes bancados por toda a coletividade passam a ser parcialmente internalizados pelos próprios beneficiários. Do ponto de vista da política pública, representa uma tentativa de compatibilizar incentivos à transição energética com responsabilidade fiscal e sustentabilidade do modelo setorial.

    TemaSituação anterior às MPsSituação após as MPs 1.300/1.304
    Contratação de térmicas a gásObrigatória por lei (8 GW) até 2036, com operação inflexívelSubstituída por até 3 GW em PCHs via leilões de reserva de capacidade
    Expansão da CDESem teto, com crescimento acelerado e sem correção de origemTeto financeiro fixado; CDE passa a obedecer a limites orçamentários
    Benefício a fontes incentivadasBenefício líquido garantido, sem contrapartida financeira diretaNovo encargo criado para beneficiados diretos dos subsídios
    Papel do gás naturalCentral e obrigatório no planejamento de expansãoReposicionado como fonte de flexibilidade e segurança marginal

    Diagnóstico Interno: Quais São os Ativos e Contratos Sensíveis

    A reconfiguração regulatória imposta pelas MPs 1.300 e 1.304 exige um movimento interno de reavaliação estratégica nas empresas do setor elétrico, e também naquelas que consomem energia ou mantêm participação em projetos incentivados. Esse diagnóstico não se limita à análise de impacto regulatório genérico, mas deve ser conduzido com profundidade operacional, envolvendo áreas técnicas, regulatórias, financeiras e jurídicas.

    Mais do que compreender a mudança, é essencial identificar como ela se reflete nos ativos reais e nas estruturas contratuais da empresa — seja no lado da geração, seja no consumo industrial ou nas operações de autoprodução. Essa etapa é a base para qualquer plano de reestruturação de carteira, revisão de contratos de suprimento, reprecificação de PPAs ou adequação de estruturas societárias.

    Avaliação Técnica de Ativos Térmicos e Projetos Gás-dependentes

    A MP 1.300 elimina a garantia legal de contratação de térmicas inflexíveis a gás, exigindo uma nova lógica de análise para ativos térmicos — operacionais, em construção ou em fase de estruturação. Isso afeta diretamente a viabilidade econômica de projetos com base em operação contínua, e compromete o racional de investimento de termelétricas localizadas em áreas remotas, antes viabilizadas por imposição legal.

    Abaixo, apresentamos um conjunto de perguntas críticas que devem guiar esse diagnóstico técnico:

    Checklist de análise operacional – Ativos térmicos e gás

    • A empresa opera ou possui projetos de térmicas com base em despacho inflexível (obrigatório)?
    • Os contratos de suprimento de gás natural associados são do tipo take-or-pay (volume mínimo garantido)? Qual é a exposição contratual em termos de volume e tempo?
    • A usina apresenta competitividade em cenários de despacho por mérito, considerando o custo variável unitário (CVU)?
    • Há obrigações regionais assumidas por meio de convênios, protocolos de intenção ou contrapartidas vinculadas à operação da térmica (como ICMS, emprego, royalties)?

    Essas perguntas ajudam a quantificar o risco de obsolescência contratual e a necessidade de reposicionamento estratégico de ativos. A lógica da expansão muda: térmicas que antes operavam continuamente agora precisam competir com fontes mais baratas e flexíveis. O gás natural, nesse novo contexto, deixa de ser âncora da expansão e passa a ser fonte de flexibilidade — algo que exige outros modelos operacionais e contratuais.

    Ação recomendada:

    • Desenvolver cenários de curto e médio prazo, simulando a viabilidade do ativo em condições reais de despacho por mérito (sazonalidade, pico de carga, resposta à renovável intermitente).
    • Revisar os contratos de fornecimento de gás, considerando renegociação de cláusulas de volume mínimo, flexibilização de entrega ou transformação em contrato interruptível.
    • Avaliar a possibilidade de reposicionar a planta como backup ou geração complementar, considerando oportunidades em mercados específicos como datacenters, indústrias eletrointensivas, ou sistemas isolados com carência de capacidade firme.

    Revisão de Projetos com Subvenção Cruzada (PCHs, GD, Renováveis)

    A MP 1.304 traz uma mudança relevante na forma como os benefícios setoriais são financiados. Até agora, agentes que se beneficiavam de isenções — como descontos em TUST/TUSD, compensação integral de energia ou incentivos regionais — não arcavam diretamente com os custos desses subsídios. Com a introdução de um novo encargo direcionado especificamente aos beneficiários, será necessário recalcular o valor líquido desses incentivos.

    Esse impacto é especialmente sensível para PCHs, usinas incentivadas do PROINFA, empreendimentos de geração distribuída sob o modelo de cooperativas e consórcios, além de geradores regionais com tratamento fiscal diferenciado.

    O diagnóstico deve começar por responder às seguintes questões:

    Itens críticos para avaliação – Projetos incentivados

    • Qual é a parcela do retorno do projeto que depende do desconto em TUST/TUSD ou de outros subsídios via CDE?
    • A empresa atua em geração distribuída incentivada (Art. 26 da Lei 14.300)? Está vinculada a cooperativas ou consórcios que operam sob o regime de compensação integral?
    • Qual o peso efetivo da CDE na estrutura de custos operacionais ou no fluxo de caixa do projeto? Existe uma linha de receita comprometida com isenções?
    • A empresa ou o projeto estão sujeitos à nova cobrança setorial sobre agentes beneficiados, conforme previsto na MP 1.304?

    Projetos com retorno estreito ou alta dependência de incentivos cruzados podem perder viabilidade. A antecipação dessa análise é crítica para empresas que atuam na originação ou comercialização de projetos renováveis, fundos de investimento e integradores de GD. Além disso, a criação do encargo sobre os beneficiários introduz um novo fator de incerteza regulatória nos modelos de precificação de energia e estruturação de PPAs de longo prazo.

    Ação recomendada:

    • Recalcular todos os indicadores financeiros chave (TIR, VPL, payback), incorporando o impacto estimado do novo encargo. Considerar variações por tipo de ativo e faixa de potência.
    • Reavaliar o pipeline de projetos em desenvolvimento, priorizando empreendimentos com menor dependência de subsídios ou maior margem operacional.
    • Revisar cláusulas de PPAs já assinados, especialmente aquelas relativas à mudança de legislação e equilíbrio econômico-financeiro.
    • Considerar modelos híbridos (ex.: PCH + bateria, GD com armazenamento) que possam oferecer maior valor sistêmico e segurança regulatória em leilões futuros.

    Cálculos Operacionais para Apoio à Alta Direção

    A consolidação das MPs 1.300 e 1.304 no arcabouço regulatório não exige apenas entendimento jurídico ou estratégico. Ela demanda, sobretudo, capacidade de modelar os efeitos reais sobre a tarifa, o fluxo de caixa dos projetos e a competitividade das fontes incentivadas.

    As áreas técnicas e administrativas devem se antecipar aos efeitos financeiros, tarifários e regulatórios por meio de simulações paramétricas, ajustando projeções de longo prazo, revisando PPAs e integrando riscos regulatórios à análise de sensibilidade. A seguir, são apresentados dois blocos de cálculo prioritários para apoiar a alta gestão.

    Modelagem de Impacto da MP 1.304 sobre a CDE

    A criação de um teto financeiro para a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) exige reavaliação das curvas de custo de energia, pois limita o volume de subsídios setoriais repassados aos consumidores. Isso interfere diretamente no valor das tarifas para os consumidores cativos e, indiretamente, no custo de energia de referência do mercado livre.

    Embora o valor exato do teto seja definido anualmente, a MP antecipa uma tendência de crescimento nominal moderado, abaixo da inflação e condicionado à capacidade fiscal da União.

    Abaixo, uma estrutura simplificada com projeções nominais da CDE para os próximos anos:

    AnoTeto CDE (R$ bilhões)% Crescimento MáximoComentário
    202635,00%Teto nominal fixo inicial
    202736,02,9%Correção moderada
    202837,02,8%Estabilidade gradual
    202938,13,0%Alinhado à inflação de meta
    203039,33,1%Projeção com base conservadora

    Esses valores devem ser comparados com os cenários pré-MP, em que o crescimento da CDE superava 8% ao ano, em função de novas políticas públicas, incentivos setoriais, compensações sociais e expansão da GD sem cobrança integral de encargos.

    Simulação recomendada para as empresas:

    • Projetar o custo médio da energia (R$/MWh) para consumidores cativos e livres, considerando dois cenários:
      • (a) manutenção da tendência anterior da CDE (sem teto);
      • (b) aplicação do novo teto e redistribuição do encargo aos beneficiários.
    • Avaliar impacto nas tarifas de uso (TUSD/TUST) e nos encargos repassados às comercializadoras e consumidores industriais, especialmente em contratos indexados a custos regulatórios.
    Cenário Tarifário – ACL (projeção 2026)CDE sem tetoCDE com teto (MP 1.304)
    Encargo médio estimado (R$/MWh)47,0036,00
    Redução esperada na tarifa final (%)~5%

    Esse tipo de modelagem é essencial para consumidores livres, autoprodutores e comercializadoras, que precisam precificar ofertas futuras e avaliar competitividade frente a PPAs convencionais ou novos modelos híbridos.

    Estimativa de Custo Efetivo dos Novos Encargos por Fonte

    A outra frente de cálculo prático introduzida pela MP 1.304 diz respeito ao novo encargo aplicado diretamente aos agentes que recebem incentivos da CDE. Essa medida, inédita no setor, rompe com o histórico de subsídios não onerados e estabelece um novo parâmetro: quem recebe, contribui.

    Essa lógica exige o recálculo dos benefícios líquidos que justificam projetos em operação e em estruturação. O impacto será diferente conforme a fonte, o volume do subsídio, o porte da planta e o regime tributário envolvido.

    Com a criação do novo encargo setorial proposto pela MP 1.304/2025 — a ser aplicado diretamente aos agentes que se beneficiam de subsídios financiados pela Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) — torna-se essencial estimar os impactos líquidos dessa mudança sobre diferentes perfis de projetos incentivados. A tabela a seguir apresenta uma projeção preliminar do efeito econômico esperado por tipo de fonte, comparando o benefício regulatório atualmente usufruído (como isenções de TUST/TUSD e repasses via CDE) com o encargo adicional previsto a partir de 2026. Embora os valores sejam indicativos e sujeitos à regulamentação específica, eles fornecem uma base útil para simulações internas de viabilidade, reprecificação de PPAs e reavaliação do portfólio. Trata-se de um exercício estratégico que visa antecipar a redistribuição de encargos e apoiar a gestão na tomada de decisões alinhadas ao novo equilíbrio regulatório.

    Fonte IncentivadaBenefício Atual EstimadoNovo Encargo (2026)Efeito Líquido Esperado
    PCHR$ 120/MWh (TUST + isenção CDE)R$ 20/MWhRedução de margem operacional, mas ainda viável
    Eólica offshoreR$ 160/MWh (benefícios específicos)R$ 30/MWhNecessidade de reprecificação e revisão de PPAs
    GD cooperativaR$ 100/MWh (compensação integral)R$ 15/MWhRisco de retração em regiões com baixa escala

    Esses valores são apenas indicativos e variam conforme a localização, arranjo contratual, volume de energia produzida e estrutura societária.

    Ação recomendada:

    • Atualizar planilhas de viabilidade com o encargo incorporado aos custos operacionais. Avaliar impacto no retorno esperado (TIR) e no VPL residual.
    • Identificar o ponto de equilíbrio econômico após o novo encargo — o que pode afetar decisões de continuidade de projetos, venda de ativos ou realocação de CAPEX.
    • Incluir margens regulatórias adicionais em novos contratos (PPAs, fornecimento, consórcios) como forma de precaução frente à volatilidade regulatória e à possível judicialização do encargo.
    • Preparar notas explicativas para os conselhos com a nova estrutura de custos e riscos, acompanhadas de cenários realistas para os próximos cinco anos.

    Conclusão

    A racionalização da CDE e a redistribuição dos encargos promovem um novo modelo de custos setoriais mais previsível, mas exigem mudança de postura na análise de viabilidade. Projetos que antes eram considerados rentáveis apenas pelo volume de subsídio agora devem sustentar-se com eficiência operacional, flexibilidade e integração tecnológica.

    As empresas que anteciparem esses cálculos e incorporarem esses parâmetros aos seus modelos terão vantagem competitiva, evitarão surpresas contratuais e conseguirão apresentar aos seus conselhos um plano estratégico robusto e compatível com o novo marco regulatório.

    Monitoramento Político-Regulatório: O que Observar

    A aprovação das Medidas Provisórias nº 1.300 e nº 1.304 até novembro de 2025 exigirá não apenas sustentação técnica, mas também articulação política e institucional ativa. Ambas as MPs foram publicadas com força de lei imediata, conforme prevê o artigo 62 da Constituição Federal, mas sua continuidade depende da aprovação pelo Congresso Nacional dentro do prazo de 120 dias — prorrogável automaticamente por mais 60. Findo esse prazo sem deliberação, as MPs perdem eficácia, com risco de retorno automático ao marco anterior ou judicialização.

    Neste contexto, o monitoramento político-regulatório passa a ser uma função crítica nas empresas do setor energético — tanto no planejamento estratégico como na atuação tática de curto prazo. Não se trata apenas de acompanhar o processo legislativo, mas de interpretar corretamente as correlações de forças, os riscos de emendas desestruturantes e as oportunidades de alinhamento institucional com agentes favoráveis à modernização do setor.

    Pressões em Jogo: Onde Estão os Conflitos?

    As MPs tocam em temas sensíveis que mobilizam diferentes frentes parlamentares, setores econômicos e interesses regionais. A seguir, destacam-se os principais grupos que vêm exercendo pressão sobre a tramitação legislativa:

    Grupo de PressãoMotivação Principal
    Parlamentares de estados com térmicasReação à perda de projetos locais, investimentos esperados e obrigações contratuais associadas ao gás
    Frentes cooperativistas e do agroDefesa da geração distribuída rural com compensação integral e isenção total de encargos
    Empresas com subsídios regionais/setoriaisPreservação de regimes especiais (ex: Sudam, Sudene, Proinfra, GD incentivada, eólicas offshore)
    Governos estaduais e prefeitosPressão por manutenção de obras, empregos e ICMS vinculados a térmicas e infraestrutura de gás

    Esses grupos tendem a apresentar emendas que reintroduzem obrigações de contratação de térmicas, criam exceções ao teto da CDE, ou atenuam o encargo para beneficiários de subsídios. Algumas dessas propostas possuem forte apelo político regional, mesmo que contrárias à lógica técnica das MPs.

    O Que Deve Ser Monitorado Diariamente

    Para apoiar a diretoria e os conselhos em decisões oportunas, as áreas técnicas, jurídicas e de relações institucionais devem acompanhar quatro frentes prioritárias no Congresso:

    1. Designação dos relatores das comissões mistas

    A escolha dos relatores é crítica, pois define a condução política da tramitação. Relatores alinhados à agenda de modernização tendem a manter o texto original com ajustes pontuais. Já relatores oriundos de estados térmicos ou ligados a cooperativas podem apresentar relatórios substitutivos com alto risco de desconfiguração.

    Recomendação: identificar os nomes cotados para relatoria e verificar histórico de votações, discursos públicos e vínculos regionais com os setores afetados.

    1. Número e conteúdo das emendas apresentadas

    Mais de 600 emendas já foram protocoladas à MP 1.300, muitas com intuito de reverter o fim da obrigação das térmicas ou preservar regimes de exceção para agentes específicos. Algumas propõem até a criação de novos subsídios.

    Recomendação: mapear emendas por tema e impacto potencial, criando uma matriz de risco com base no grau de alteração da MP, apoio parlamentar e efeito tarifário.

    1. Participação da Casa Civil e Ministério da Fazenda nas articulações

    A presença ativa do Executivo — especialmente da equipe econômica e da Casa Civil — é decisiva para manter o foco fiscal das MPs. O apoio técnico da ANEEL, da CCEE e do MME também será relevante nas audiências públicas.

    Recomendação: acompanhar comunicados oficiais e bastidores de reuniões com lideranças da base governista, entidades do setor e parlamentares estratégicos.

    1. Audiências públicas e posicionamentos das associações técnicas

    Associações como ABRAGEL, ABRACE, ABRADEE, ABRAGET, ABEEólica, ABIOGÁS e ABSOLAR desempenham papel relevante na sustentação técnica da MP. Suas manifestações em audiências públicas, notas técnicas e articulações junto ao Congresso ajudam a balizar o debate e contrabalançar pressões setoriais.

    Recomendação: participar, acompanhar ou apoiar tecnicamente essas entidades; preparar position papers internos e eventualmente contribuições escritas às comissões.

    Sinais de Risco: O Que Pode Desconfigurar a MP

    Embora a MP 1.300 traga racionalidade ao planejamento elétrico e a MP 1.304 introduza equilíbrio fiscal, ambas podem ser desfiguradas por dispositivos como:

    • Reintrodução da obrigatoriedade de contratação de térmicas, sob novo nome (ex: “flexibilidade regional” ou “projetos estruturantes”);
    • Criação de exceções ao teto da CDE para fontes ou regiões específicas;
    • Exclusão de certos agentes do novo encargo, enfraquecendo o princípio de equidade;
    • Inclusão de novas obrigações de compra ou reserva para distribuidoras, desestabilizando o modelo do ACL.

    Por isso, o acompanhamento do texto substitutivo do relator é crucial. A aprovação de uma MP alterada pode gerar efeito inverso ao desejado pelo governo — ampliando encargos, criando insegurança jurídica e reduzindo previsibilidade para investidores.

    Apoio à Alta Gestão e Conselhos: Como Levar a Discussão

    A aprovação ou rejeição das MPs 1.300 e 1.304 não é apenas uma questão legislativa — trata-se de um ponto de inflexão com potencial de afetar diretamente o valor de ativos, a viabilidade de contratos e a lógica de expansão de empresas no setor energético. Nesse contexto, os gerentes técnicos, regulatórios e administrativos assumem um papel central na qualificação do debate interno e na preparação de insumos para conselheiros e executivos seniores.

    A atuação dessas áreas não se limita à coleta de dados ou monitoramento regulatório passivo. Pelo contrário: é esperado que funcionem como hubs analíticos e interpretativos, traduzindo o ambiente normativo em cenários comparáveis, planos de ação práticos e recomendações justificadas, alinhadas à estratégia corporativa.

    A seguir, organizamos quatro frentes de trabalho fundamentais para levar essa discussão à alta gestão com consistência, clareza e foco em decisão.

    Construção de Cenários de Risco Regulatório

    Uma das perguntas mais críticas a ser feita em reuniões com conselhos e comitês executivos é:

    “O que acontece com o retorno esperado dos nossos projetos se as MPs forem modificadas ou rejeitadas?”

    Responder a essa questão exige cenários parametrizados, que considerem:

    • A permanência ou não da obrigação de contratação de térmicas;
    • A manutenção, revisão ou exclusão do novo encargo proposto na MP 1.304;
    • O teto da CDE sendo aprovado, desfigurado ou revertido por pressão parlamentar.

    Esses cenários devem ser estruturados com modelagem de impacto nos principais ativos, combinando indicadores financeiros (VPL, TIR, payback) com sensibilidade a custos regulatórios e mudanças contratuais.

    Exemplo de cenárioHipótese-chaveEfeito esperado
    BaseMPs aprovadas integralmenteRedução de encargos, viabilidade de novos PPAs
    Adverso 1Rejeição da MP 1.300Retorno da obrigação de térmicas; reativação de projetos ineficientes
    Adverso 2Teto da CDE desfigurado por exceçõesPressão tarifária contínua e redução de previsibilidade
    Adverso 3Encargo excluído para GDReforço de distorções e aumento do subsídio cruzado

     Análises de Sensibilidade: Do Custo Regulado à Receita do Projeto

    A aplicação do novo encargo setorial proposto pela MP 1.304, combinada ao teto da CDE, exige que gerentes apresentem análises de sensibilidade integradas aos modelos financeiros. Entre os parâmetros que devem ser simulados estão:

    • Variação do encargo entre R$ 10 e R$ 30/MWh;
    • Redução gradual da CDE em cenários de crescimento limitado;
    • Flutuações nos valores de TUST e TUSD para fontes incentivadas;
    • Exposição por faixas de potência e modalidade de contratação (mercado regulado ou ACL).

    Essas análises devem estar ligadas a dashboards de decisão, com visualização clara do ponto de ruptura da viabilidade econômica de cada ativo.

    Exemplo: Uma usina incentivada cuja TIR cai de 9,2% para 6,7% com a aplicação do encargo em R$ 25/MWh pode deixar de ser financiável por certos fundos de infraestrutura — esse alerta precisa estar claro para os decisores.

    Estruturação de Planos Alternativos por Perfil de Ativo

    Dada a incerteza sobre o texto final das MPs, é recomendável apresentar planos contingenciais por tipo de ativo, que permitam realocar esforços, renegociar contratos ou adaptar estratégias comerciais conforme o cenário que se materialize.

    Perfil de AtivoPlano Alternativo Sugerido
    Térmica com CVU altoReposicionamento como backup ou despacho emergencial no mercado livre
    PCH com incentivoReestruturação financeira com amortização do encargo via eficiência operacional
    GD cooperativaAvaliação de transição para geração compartilhada por assinatura
    Eólica offshore (licenciamento)Reprecificação e adiamento de PPA até definição final do modelo regulatório
    Comercialização com isenção parcialPrecificação de produtos com cláusulas de ajuste tarifário/regulatório

    Articulação Institucional e Contribuições Técnicas

    Finalmente, os gerentes devem fornecer subsídios técnicos para que a empresa — direta ou indiretamente — participe do debate público e institucional. Isso inclui:

    • Elaboração de contribuições técnicas para audiências públicas e comissões mistas no Congresso;
    • Apoio à formulação de posições institucionais coordenadas via entidades como ABRAGEL, ABRACE, ABRAGET, ABRADEE, ABIOGÁS, ABSOLAR, entre outras;
    • Proposta de posicionamento setorial com base em evidências — como impacto tarifário, atratividade de novos projetos, segurança regulatória.

    A ação institucional bem embasada, quando combinada com dados consistentes e cenários robustos, aumenta a legitimidade da empresa no debate e protege seu portfólio contra riscos de regressão normativa ou distorção setorial.

    Conclusão: Reagir com Agilidade à Nova Engenharia do Setor

    As Medidas Provisórias nº 1.300 e nº 1.304/2025 representam um ponto de virada na trajetória regulatória do setor elétrico brasileiro. Pela primeira vez em muitos anos, temos um movimento consistente em direção a um modelo baseado no mérito econômico, na disciplina fiscal e na eficiência sistêmica — rompendo com a lógica de contratação compulsória, subsídios indiscriminados e expansão orientada por decisões políticas regionais.

    Mais do que mudanças pontuais, essas MPs inauguram uma nova engenharia regulatória, que exige das empresas agilidade para interpretar, reagir e se reposicionar estrategicamente. A lógica da contratação passa a obedecer a critérios de custo global. O financiamento do setor deixa de depender apenas da coletividade e passa a incorporar a responsabilidade dos próprios beneficiários. E o gás natural, que antes ocupava um papel estrutural, é reposicionado como fonte de flexibilidade e resposta rápida — exigindo novos modelos operacionais, comerciais e jurídicos.

    Para os gestores técnicos e administrativos, essa transição impõe uma mudança de postura organizacional. Não basta monitorar o processo legislativo ou acompanhar publicações da ANEEL e da CCEE. É necessário atuar como ponte entre as áreas operacionais e os níveis estratégicos, traduzindo cenários regulatórios em simulações concretas, avaliando impactos sobre ativos e contratos, e estruturando alternativas de resposta para conselhos e comitês executivos.

    A missão agora é transformar esse novo ambiente regulatório em ação concreta. Isso significa:

    • Mapear riscos regulatórios e financeiros por tipo de projeto e perfil de ativo;
    • Recalcular fluxos de caixa com os novos encargos e tetos setoriais;
    • Preparar relatórios executivos com planos de contingência baseados em cenários legislativos possíveis;
    • Apoiar a atuação institucional com dados técnicos robustos e alinhamento setorial;
    • Articular operação, regulação, jurídico e finanças em torno de uma agenda única: proteger e reposicionar a empresa na nova lógica do setor.

    Empresas que conseguirem responder rapidamente às mudanças regulatórias estarão em posição de vantagem competitiva — seja na reestruturação de portfólios, na adaptação contratual ou na atração de novos investimentos. Já aquelas que esperarem por decisões definitivas sem preparar alternativas estarão mais expostas a riscos de obsolescência, judicialização ou perda de valor.

    As MPs 1.300 e 1.304 não apenas reorganizam o setor elétrico. Elas testam a maturidade regulatória, a capacidade de resposta e a qualidade da governança das empresas que nele atuam. E é nesse teste que a liderança técnica e administrativa poderá — ou não — transformar incerteza em vantagem.

  • Baterias de Concreto: A Revolução Silenciosa do Armazenamento de Energia

    O armazenamento de energia desempenha um papel estratégico na transição para matrizes energéticas mais sustentáveis e resilientes. Entre as tecnologias emergentes, o armazenamento gravitacional com blocos de concreto tem se destacado como uma alternativa promissora aos sistemas eletroquímicos, como baterias de íons de lítio. Baseada em princípios físicos elementares, essa tecnologia propõe o uso de massa, altura e gravidade como elementos centrais para a acumulação e liberação de energia, oferecendo eficiência, longevidade e independência de materiais críticos.

    O funcionamento da bateria gravitacional é relativamente simples. Em momentos de excesso de geração, como nos períodos de alta produção solar ou eólica, energia elétrica é utilizada para acionar guindastes ou elevadores motorizados que suspendem blocos de concreto de alta massa para alturas determinadas. Essa energia cinética é convertida em energia potencial gravitacional, armazenada pela posição elevada da massa. Quando há demanda por eletricidade, os blocos são descidos de forma controlada, movimentando motores regenerativos que convertem o movimento mecânico de volta em eletricidade. O ciclo é reversível e pode ser repetido milhares de vezes com perdas mínimas.

    Diferentemente das baterias químicas, que sofrem degradação com o tempo e dependem de materiais como lítio, cobalto e níquel, o armazenamento gravitacional se apoia em materiais largamente disponíveis e recicláveis. Os principais componentes são concreto, aço e sistemas eletromecânicos. Além disso, a eficiência operacional desses sistemas tem se mostrado competitiva, com valores entre 75% e 90%, dependendo do projeto e da qualidade dos mecanismos de conversão.

    Diversos projetos internacionais têm demonstrado a viabilidade técnica e econômica dessa abordagem. Um exemplo notável é a torre EVx desenvolvida pela empresa Energy Vault, que emprega blocos modulares de materiais compostos e opera com capacidade de armazenamento na faixa de 10 a 100 MWh. De acordo com o white paper da empresa, a torre possui eficiência superior a 80%, vida útil estimada em 35 anos e tempo de resposta inferior a dois segundos. Outra iniciativa relevante é a empresa escocesa Gravitricity, que desenvolve sistemas subterrâneos baseados em poços verticais, utilizando minas desativadas como infraestrutura de apoio. Seus estudos de viabilidade, financiados pelo governo britânico, apontam para eficiências superiores a 85% e mais de 25 mil ciclos operacionais.

    No contexto brasileiro, o armazenamento gravitacional apresenta vantagens singulares. O país possui um parque hidrelétrico amplo, com diversas usinas em regiões montanhosas ou com infraestrutura vertical significativa. Isso abre a possibilidade de integração de sistemas gravitacionais com usinas hidrelétricas reversíveis, conhecidas como UHRs. Nessas usinas, dois reservatórios em diferentes altitudes são usados para armazenar energia por meio do bombeamento de água. Embora eficazes, as UHRs exigem grandes obras civis, licenciamento ambiental complexo e investimentos elevados.

    A solução gravitacional com blocos pode atuar de forma complementar ou mesmo substitutiva em algumas situações, aproveitando estruturas já existentes, como torres de inspeção, casas de força elevadas ou encostas artificiais. Minas desativadas em estados como Minas Gerais, Goiás e Bahia também oferecem potencial de reaproveitamento. O uso dessas estruturas reduz significativamente o custo de implantação e o tempo de licenciamento, promovendo soluções locais de armazenamento que reforçam a estabilidade da rede e facilitam a integração de fontes intermitentes, como a solar e a eólica.

    Outro fator positivo é a possibilidade de industrialização nacional da tecnologia. O Brasil possui ampla capacidade instalada na indústria da construção civil, empresas especializadas em estruturas metálicas, guindastes e engenharia mecânica. A fabricação dos blocos, o desenvolvimento de torres e o fornecimento de componentes de automação podem ser realizados com alto grau de conteúdo local, gerando empregos e estimulando cadeias produtivas nacionais. Como não há necessidade de insumos importados ou metais raros, a solução é menos vulnerável a flutuações cambiais e crises geopolíticas.

    Do ponto de vista regulatório, a solução também apresenta vantagens. Sistemas de armazenamento mecânico não têm passivos ambientais associados a efluentes químicos ou risco de incêndios, o que facilita a obtenção de licenças. A modularidade permite que sejam instalados em escalas menores, próximas a centros de consumo ou em ambientes industriais com infraestrutura vertical, como silos, chaminés ou galpões.

    Apesar de seu alto potencial, é importante ressaltar que a tecnologia ainda se encontra em fase de consolidação. Embora as primeiras torres estejam operacionais, a literatura acadêmica ainda é escassa. Buscas realizadas no Google Scholar indicam que poucos artigos foram publicados sobre o tema, sendo a maioria das referências provenientes de white papers industriais, relatórios técnicos e estudos de viabilidade financiados por órgãos governamentais ou empresas privadas. Portanto, é fundamental que instituições de pesquisa brasileiras passem a se debruçar sobre o tema, desenvolvendo modelos matemáticos, testes experimentais e análises de integração com o sistema elétrico nacional.

    O estabelecimento de projetos-piloto em parceria com universidades, empresas de energia e fabricantes de equipamentos é uma etapa essencial para a validação da tecnologia no contexto nacional. Essa abordagem permitiria, por exemplo, comparar o desempenho do armazenamento gravitacional com outras alternativas, como baterias de segunda vida, sistemas hidrelétricos reversíveis de pequeno porte e bancos de baterias de lítio. Também seria possível avaliar o impacto regulatório, tarifário e logístico da adoção dessa tecnologia em regiões de baixa confiabilidade elétrica ou alta penetração de renováveis intermitentes.

    Considerando o atual estágio da transição energética brasileira, caracterizada pela necessidade de armazenamento modular, baixo custo e alta durabilidade, o armazenamento gravitacional com blocos de concreto surge como uma solução particularmente adequada. Sua combinação de robustez, escalabilidade, neutralidade ambiental e potencial de nacionalização a coloca como uma tecnologia a ser monitorada de perto por formuladores de políticas públicas, agências reguladoras e empresas do setor elétrico.

    À medida que novas instalações forem entrando em operação ao redor do mundo, é esperado que surjam mais dados sobre desempenho em campo, custos de manutenção e retorno sobre investimento. Esses dados serão valiosos para a tomada de decisão e para a promoção de políticas de incentivo. O Brasil, com seu perfil hidrelétrico, base industrial instalada e desafios logísticos regionais, está bem posicionado para liderar a implementação dessa tecnologia na América Latina, contribuindo para um sistema elétrico mais limpo, flexível e resiliente.