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Autor: Eduardo Fagundes

  • Curtailment Não é Cisne Negro: Lições Estratégicas para Conselhos de Administração

    Curtailment Não é Cisne Negro: Lições Estratégicas para Conselhos de Administração

    Resumo Executivo

    O setor elétrico brasileiro atravessa um ponto de inflexão. A expansão acelerada da geração eólica, fotovoltaica e distribuída consolidou o país como líder em energias renováveis, mas trouxe consigo um efeito colateral de magnitude inédita: o curtailment — cortes deliberados de geração por razões energéticas, de confiabilidade ou restrições de rede. Somente em agosto de 2025, mais de 4,4 TWh de energia limpa foram descartados, equivalentes a cerca de um quarto da produção do período.

    Ao contrário da percepção corrente, o curtailment não é um “cisne negro”. Trata-se de um risco previsível, já observado em mercados como Califórnia, Alemanha, China e Índia, e identificado por relatórios técnicos do ONS. Ignorar esse fenômeno nas análises de viabilidade significa subestimar vulnerabilidades estruturais e comprometer a responsabilidade fiduciária dos conselhos de administração.

    Além da sobreposição entre geração e carga, o Brasil enfrenta um desafio adicional: a rápida expansão da micro e minigeração distribuída (MMGD). Em setembro de 2025, essa modalidade já somava 42,3 GW de potência instalada, quase toda proveniente de energia solar fotovoltaica, com forte predominância do setor residencial. Projeções oficiais indicam que esse número pode chegar a até 97,8 GW em 2035, ampliando ainda mais a pressão sobre as usinas centralizadas e a necessidade de cortes.

    As decisões de investimento em renováveis precisam, portanto, incorporar cenários de corte em seus modelos financeiros e em seus processos de governança. Esse movimento é essencial para preservar a rentabilidade dos projetos, a credibilidade dos fundos e a confiança de investidores institucionais que buscam exposição a ativos sustentáveis.

    Paralelamente, multiplicam-se as soluções propostas para mitigar o curtailment: baterias (BESS), hidrogênio verde (H2V), usinas reversíveis (PHS) e demand side management (DSM). Todas oferecem oportunidades estratégicas, mas também escondem armadilhas. Custos elevados, ausência de regulação clara, prazos longos de maturação e incertezas de mercado podem transformar promessas em novos focos de frustração.

    Este artigo traz lições estratégicas para conselhos de administração: compreender que o curtailment não é um imprevisto, mas uma realidade estrutural; adotar uma postura de prudência diante de soluções emergentes; e alinhar decisões de investimento a uma governança robusta, capaz de antecipar riscos e fortalecer a resiliência corporativa frente aos dilemas da transição energética.

    O que é o Curtailment e por que ele importa

    Curtailment é o termo técnico utilizado para descrever a redução deliberada da geração de energia, mesmo quando os recursos naturais — vento ou sol — estão disponíveis em abundância. Em outras palavras, trata-se de “desligar” parte da produção de usinas eólicas e fotovoltaicas, não por falha tecnológica, mas por limitações do sistema elétrico ou pela necessidade de manter a confiabilidade da rede.

    No Brasil, o Operador Nacional do Sistema (ONS) classifica os cortes em três categorias:

    • Razões energéticas: quando há sobreoferta de geração em relação à carga do sistema.
    • Razões de confiabilidade: quando é necessário preservar a segurança operativa, respeitando limites de transmissão e estabilidade.
    • Indisponibilidade externa: quando restrições ou falhas externas à usina impedem o escoamento da energia.

    Esse fenômeno deixou de ser marginal. Apenas em agosto de 2025, o curtailment somou 4,458 TWh, cerca de 25% de toda a geração eólica e solar do mês. Em alguns conjuntos de usinas, os cortes superaram 60% da produção potencial. Esse quadro ameaça a rentabilidade de projetos em operação e compromete a viabilidade de investimentos futuros.

    O impacto é duplo:

    • Econômico-financeiro: receitas projetadas deixam de se materializar, pressionando contratos de PPA, financiamentos e retornos esperados por fundos.
    • Reputacional e regulatório: cortes sucessivos expõem contradições — enquanto energia renovável é desperdiçada, térmicas seguem despachadas e tarifas sobem. Esse desalinhamento mina a confiança de investidores e sociedade.

    Internacionalmente, o curtailment é visto como um sinal de que a transição energética avançou além da capacidade de adaptação do sistema elétrico. Na Califórnia, na Alemanha e na China, os cortes cresceram rapidamente quando a penetração renovável atingiu determinados patamares. No Brasil, o alerta está dado: o curtailment não é anomalia, mas consequência estrutural da combinação entre expansão acelerada de fontes variáveis, defasagem da transmissão e ausência de instrumentos de flexibilidade.

    Para conselhos de administração, compreender esse conceito é crucial. Não se trata apenas de um detalhe técnico, mas de um risco estratégico que pode comprometer margens, reduzir o valor de mercado das empresas investidas e expor falhas na governança de risco. Incorporar o curtailment no radar da alta administração é, portanto, uma condição básica para decisões responsáveis em energia renovável.

    Experiências Internacionais: lições aprendidas

    A trajetória de outros países demonstra que o curtailment não é uma peculiaridade brasileira, mas uma consequência recorrente da expansão acelerada das fontes renováveis variáveis. Examinar esses casos permite identificar padrões e lições valiosas para os conselhos de administração que buscam avaliar investimentos com visão de longo prazo.

    Califórnia: o “duck curve” e os cortes solares

    Na Califórnia, a rápida expansão da energia solar criou o fenômeno conhecido como “duck curve”: durante o dia, a geração solar supera a demanda, mas à noite o sistema volta a depender fortemente de térmicas. Esse descompasso levou a cortes massivos de geração fotovoltaica. A resposta regulatória foi a realização de leilões dedicados de armazenamento e programas de demand response, criando novos mecanismos de flexibilidade para integrar a energia solar. Ainda assim, os cortes permanecem relevantes, mostrando que o problema não se resolve apenas com baterias.

    Alemanha: limites de rede e integração regional

    Na Alemanha, o desafio decorre principalmente da distância entre os parques eólicos do norte e os centros consumidores do sul. Gargalos de transmissão resultaram em cortes frequentes, apesar da alta participação de renováveis na matriz. A solução encontrada foi intensificar a integração regional, expandindo interconexões com países vizinhos e ajustando os mercados para absorver excedentes. Mesmo assim, subsistem pressões políticas e econômicas sobre quem arca com os custos do curtailment.

    China e Índia: cortes massivos e falhas regulatórias

    Na China, regiões como Xinjiang e Gansu chegaram a registrar taxas de curtailment superiores a 30% da produção eólica. A principal causa foi a falta de coordenação entre a velocidade da expansão renovável e a construção de linhas de transmissão. A Índia viveu dilema semelhante, com cortes significativos de solar em estados como Rajasthan e Gujarat, agravados por falhas regulatórias e dificuldades financeiras das distribuidoras. Nos dois casos, ajustes de mercado e políticas corretivas reduziram parcialmente o problema, mas não eliminaram a desconfiança dos investidores.

    Principais ensinamentos para o Brasil

    Os exemplos convergem em três lições centrais para conselheiros:

    • Curtailment cresce com a penetração renovável – quanto mais rápido o avanço, maior a probabilidade de cortes.
    • Tecnologias sozinhas não resolvem – baterias, hidrogênio verde ou usinas reversíveis ajudam, mas não substituem a necessidade de gestão integrada.
    • Integração regulatória e planejamento sistêmico são decisivos – sem ajustes na governança, nos sinais de mercado e na infraestrutura de rede, as soluções tecnológicas correm o risco de se tornar paliativos caros e ineficazes.

    Assim, a mensagem-chave é clara: conselhos de administração não devem interpretar o curtailment como uma anomalia local, mas como uma tendência global previsível, que exige prudência, diversificação e pressão por políticas públicas consistentes.

    O caso brasileiro segundo o ONS

    O fenômeno do curtailment no Brasil ganhou relevância após a perturbação ocorrida em 15 de agosto de 2023, quando falhas na resposta dinâmica de usinas eólicas e fotovoltaicas evidenciaram discrepâncias entre o desempenho real das plantas e os modelos matemáticos fornecidos pelos agentes. Esse episódio marcou um ponto de inflexão: a partir dele, o Operador Nacional do Sistema (ONS) passou a adotar critérios mais conservadores e restrições adicionais, reduzindo a capacidade de escoamento do sistema e elevando os cortes de geração .

    Projeções 2026–2029: cortes crescentes

    Segundo o relatório RT DGL-ONS 0189/2025, a tendência é de agravamento. Se todas as usinas com Contrato de Uso do Sistema de Transmissão (CUST) entrarem em operação, os cortes médios podem chegar a 10% da geração eólica e ultrapassar 20% da geração solar até 2029 . Em horários de maior insolação, os cortes podem superar dezenas de gigawatts, transformando o desperdício de energia limpa em fenômeno estrutural.

    Particularidades nacionais

    O contexto brasileiro apresenta desafios próprios que ampliam o impacto do curtailment:

    • Forte crescimento da MMGD/GD – em setembro de 2025, a capacidade instalada de micro e minigeração distribuída (MMGD) atingiu aproximadamente 42,3 GW, com aumento de mais de 5 GW apenas nos primeiros sete meses do ano. A grande maioria dessa potência (98,9%) é proveniente da energia solar fotovoltaica, sendo o setor residencial o dominante, com cerca de 80% das usinas em operação. Estados como São Paulo, Minas Gerais e Mato Grosso lideram o crescimento em potência instalada. Projeções do MME e da EPE indicam que a MMGD pode alcançar entre 61,4 GW e 97,8 GW até 2035, ampliando ainda mais seu peso no sistema. Como não está sob controle direto do ONS, sua expansão reduz a carga atendida por usinas centralizadas e amplia a necessidade de cortes sobre estas últimas.
    • Gargalos de transmissão – embora o país tenha avançado em leilões de linhas, a expansão da rede segue defasada em relação ao crescimento da geração renovável, sobretudo no Nordeste, região que concentra os maiores parques.
    • Deficiências de modelagem e suporte dinâmico – os modelos fornecidos pelos agentes não refletiam adequadamente o desempenho das usinas em condições reais, o que fragilizou o planejamento. A necessidade de reforços como compensadores síncronos no Rio Grande do Norte é exemplo de como o sistema ainda depende de ajustes estruturais .

    Síntese para conselhos

    O diagnóstico do ONS é inequívoco: o curtailment deixou de ser uma anomalia conjuntural e passou a ser um elemento estrutural da operação do SIN. Para os conselhos de administração, isso significa que qualquer decisão de investimento em eólica e solar no Brasil deve considerar o risco de cortes significativos como parte integrante da equação financeira e estratégica. Ignorar esse alerta seria repetir os erros de avaliação observados em outros mercados.

    Governança de Investimentos: pontos de atenção para conselhos

    A governança corporativa tem papel central na condução de investimentos em energia renovável. No entanto, observa-se que muitos conselhos de administração e comitês de investimento enfrentam lacunas de avaliação estratégica ao analisar projetos de eólica e solar. Essas lacunas não decorrem de má-fé, mas de excesso de otimismo e da ausência de cenários adversos nos modelos financeiros.

    • Risco de avaliações incompletas: Grande parte das análises de viabilidade desconsidera ou minimiza o impacto do curtailment. Em muitos casos, os estudos assumem cortes marginais de 5% a 10%, quando a realidade recente já evidencia taxas muito mais elevadas. Essa omissão compromete o realismo dos fluxos de caixa projetados e cria expectativas desalinhadas com a operação.
    • Excesso de confiança no regulador: Outro ponto recorrente é a crença de que o marco regulatório brasileiro, historicamente robusto, corrigiria rapidamente os desequilíbrios entre expansão da geração e da transmissão. Esse “otimismo regulatório” levou muitos investidores a assumir que a rede elétrica sempre se expandiria no mesmo ritmo da geração renovável, o que não ocorreu.
    • Atração pelo selo ESG: O apelo de projetos de energia renovável, muitas vezes alavancados por sua aderência às agendas ESG, tem levado conselhos a aprovarem investimentos sem a devida realização de stress tests financeiros. A narrativa positiva da transição energética, ainda que legítima, não deve suplantar a disciplina técnica da avaliação de riscos.
    • Responsabilidade fiduciária: Para além da questão econômica, há o aspecto de responsabilidade fiduciária. Conselheiros têm o dever de diligência, lealdade e transparência perante seus acionistas e cotistas. Incorporar cenários de curtailment, avaliar impactos regulatórios e exigir planos de mitigação não são apenas boas práticas — são obrigações inerentes à função. A omissão diante de riscos conhecidos pode ser interpretada como descuido estratégico e comprometer a credibilidade institucional.

    Assim, o papel dos conselhos não é apenas aprovar projetos pela atratividade imediata, mas garantir que os investimentos estejam sustentados por análises realistas, prudentes e alinhadas à complexidade do setor elétrico em transformação.

    Soluções em debate: oportunidades e armadilhas

    A pressão causada pelo curtailment tem colocado uma série de tecnologias no centro das discussões estratégicas. Elas são apresentadas como instrumentos capazes de absorver excedentes de energia, estabilizar a rede e viabilizar o crescimento sustentável da matriz renovável. Contudo, nenhuma delas é isenta de limitações. Conselhos precisam compreender seus fundamentos para formular as perguntas certas e evitar decisões baseadas apenas em narrativas de mercado.

    BESS (Battery Energy Storage Systems)

    Entre as soluções mais difundidas no debate setorial, os sistemas de armazenamento em baterias ocupam posição de destaque, especialmente pelo apelo de flexibilidade e pela velocidade de resposta que oferecem.

    • Como funciona: armazena energia em baterias (tipicamente de íon-lítio), permitindo liberar eletricidade em horários de maior demanda ou quando o sistema precisa de suporte.
    • Aplicações práticas: regulação de frequência, reserva de capacidade, suavização da intermitência, arbitragem de preços.
    • Benefícios: resposta quase imediata, modularidade, possibilidade de instalação próxima aos parques eólicos/solares ou nos centros de carga.
    • Limitações: alto custo de investimento (LCOS entre US$ 190–430/MWh em estudos recentes), rápida obsolescência tecnológica, vida útil em torno de 10–15 anos, dependência de regulamentação para monetizar serviços ancilares.
    • Perguntas para conselheiros: O projeto tem modelo de remuneração sustentável? Os custos consideram reposição tecnológica? Existe arcabouço regulatório que reconheça o valor do armazenamento?

    H2V (Hidrogênio Verde)

    O hidrogênio verde desponta como um dos vetores mais promissores da transição energética, frequentemente associado a novos mercados e exportações de alto valor agregado.

    • Como funciona: utiliza eletricidade renovável para alimentar eletrolisadores que quebram a molécula da água em oxigênio e hidrogênio. O H2 pode ser armazenado, transportado ou usado em processos industriais e geração elétrica.
    • Aplicações práticas: descarbonização de siderurgia, química, fertilizantes, transporte pesado e geração elétrica em células a combustível.
    • Benefícios: armazenamento de longo prazo, potencial de criar uma nova cadeia de valor exportadora, complementaridade com projetos renováveis de grande porte.
    • Limitações: custos ainda elevados (US$ 3–6/kg, contra <US$ 2/kg como meta de competitividade), ausência de mercado doméstico estruturado, necessidade de infraestrutura logística (dutos, portos, tanques).
    • Perguntas para conselheiros: Há mercado contratual para absorver a produção de H2V? O projeto depende de incentivos governamentais ou subsídios internacionais? Qual a estratégia de saída em caso de atraso regulatório?

    PHS (Pumped Hydro Storage – Usinas Reversíveis)

    As usinas reversíveis se destacam pelo potencial de armazenamento em grande escala e pela robustez técnica, mas exigem visão de longo prazo e forte coordenação regulatória.

    • Como funciona: bombeia água para um reservatório elevado em horários de sobra de energia e a libera em turbinas quando há maior demanda.
    • Aplicações práticas: armazenamento em grande escala, suporte ao despacho noturno, substituição de térmicas em parte do sistema.
    • Benefícios: vida útil longa (40–60 anos), escala relevante (centenas a milhares de MW), tecnologia madura.
    • Limitações: prazos longos de licenciamento e construção (8–12 anos), impactos socioambientais significativos, necessidade de condições geográficas específicas.
    • Perguntas para conselheiros: O cronograma do projeto é compatível com a urgência do problema? Existe clareza sobre licenciamento ambiental? Há mecanismos de remuneração de longo prazo para justificar o CAPEX elevado?

    DSM (Demand Side Management) e Eficiência Energética

    As medidas de gestão do lado da demanda e de eficiência energética são muitas vezes subestimadas, mas oferecem benefícios consistentes e sustentáveis quando integradas ao planejamento do setor.

    • Como funciona: desloca ou reduz o consumo em horários de sobra de energia, usando tarifas dinâmicas, automação e incentivos. Inclui também medidas permanentes de eficiência energética em edifícios, indústrias e iluminação.
    • Aplicações práticas: resposta da demanda em horários de pico, flexibilização do consumo industrial, uso de veículos elétricos como cargas moduláveis.
    • Benefícios: baixo custo relativo, impactos consistentes na redução de demanda, ganhos sociais (menor pressão tarifária).
    • Limitações: menor apelo para investidores institucionais, já que não gera ativos físicos escaláveis; depende de forte regulação e engajamento do consumidor.
    • Perguntas para conselheiros: Há estrutura regulatória para remunerar consumidores que flexibilizam carga? O investimento em eficiência tem ROI comparável a projetos de geração? Como monetizar essa flexibilidade no mercado de energia?

    Risco de substituição de problemas

    Cada uma dessas tecnologias pode, se mal avaliada, transformar o dilema atual em uma nova fonte de risco. O conselho deve evitar a armadilha de apostar em “balas de prata” e, em vez disso, adotar uma visão integrada que considere:

    • ciclo de vida do ativo,
    • maturidade regulatória,
    • riscos de mercado,
    • prazos de implementação,
    • e complementaridade entre tecnologias.

    Práticas recomendadas para conselhos

    O desafio do curtailment exige que os conselhos de administração adotem uma postura ativa e criteriosa na supervisão dos investimentos em renováveis. A responsabilidade fiduciária não se limita a aprovar projetos com boa narrativa ESG; é necessário garantir que riscos previsíveis sejam devidamente mapeados e mitigados. A seguir, destacam-se práticas recomendadas que podem ser incorporadas à agenda dos conselhos:

    • Exigir cenários adversos em due diligence: Qualquer análise de viabilidade deve incluir cenários de corte de 20% a 30%, refletindo a realidade já observada no Brasil. Essa simulação deve impactar projeções de fluxo de caixa, indicadores de rentabilidade (IRR, payback) e contratos de financiamento. Ignorar essa variável equivale a projetar retornos em terreno instável.
    • Avaliar diversificação tecnológica: Os conselhos devem questionar se o portfólio de investimentos está excessivamente concentrado em eólica e solar. PCHs, biomassa e projetos híbridos (que combinam renováveis com armazenamento) podem oferecer firmeza, previsibilidade e complementaridade. A diversificação tecnológica não elimina o risco, mas reduz a exposição a cortes simultâneos e melhora a resiliência da carteira.
    • Cobrar transparência regulatória e monitoramento ativo: É fundamental que a administração mantenha diálogo contínuo com o ONS e a ANEEL, reportando regularmente o impacto dos cortes e a evolução das regras. Conselhos devem solicitar relatórios periódicos sobre riscos regulatórios e acompanhar de perto consultas públicas que possam alterar a dinâmica de remuneração ou o rateio do curtailment.
    • Estimular PPAs com cláusulas de flexibilidade: Os contratos de longo prazo precisam evoluir. Ao invés de PPAs estáticos, conselhos devem incentivar a adoção de contratos que incluam cláusulas de flexibilidade, seja para compensação de cortes, seja para hibridização futura. Essa adaptação protege receitas e amplia a margem de manobra diante de mudanças regulatórias ou tecnológicas.
    • Monitorar a evolução regulatória: Temas como a integração ONS–DSO e o rateio da geração distribuída (GD/MMGD) estão em debate e podem alterar profundamente a forma como o ônus do curtailment é distribuído. Conselheiros devem se posicionar de forma proativa, orientando suas empresas a participar das discussões regulatórias e antecipar possíveis impactos sobre a governança dos projetos.

    Assim, os conselhos deixam de ser meros aprovadores de projetos e passam a atuar como guardiões da sustentabilidade financeira e regulatória das decisões de investimento em renováveis.

    Checklist estratégico para Conselheiros

    A experiência internacional e o diagnóstico recente do ONS demonstram que o curtailment deixou de ser um risco marginal e se tornou uma realidade estrutural da operação elétrica. Nesse cenário, o papel dos conselhos de administração vai muito além da aprovação de investimentos em projetos renováveis. Cabe aos conselheiros garantir que as decisões estejam ancoradas em análises realistas, que contemplem cenários adversos, riscos regulatórios e a maturidade das soluções tecnológicas em debate.

    Entretanto, a complexidade técnica do setor elétrico frequentemente distancia conselheiros — profissionais com sólida experiência em finanças, estratégia e governança — das questões operacionais mais específicas. Isso abre espaço para decisões enviesadas, seja pelo excesso de confiança nos reguladores, seja pela atração de narrativas sedutoras ligadas ao ESG.

    O Checklist estratégico apresentado a seguir foi elaborado para servir como uma ferramenta prática de governança. Ele permite que conselhos formulem as perguntas certas, orientem suas diretorias executivas e cobrem relatórios consistentes sobre riscos e oportunidades. Ao adotar esse roteiro, os conselheiros assumem uma postura proativa de guardião da resiliência financeira e regulatória dos investimentos em energia renovável, evitando armadilhas e fortalecendo a confiança de investidores e acionistas.

    EtapaPergunta-chaveObjetivo da Reflexão
    1. Stress test financeiroO curtailment foi considerado no stress test (20–30%)?Garantir realismo nas projeções de retorno e evitar surpresas de fluxo de caixa.
    2. Planos de mitigaçãoHá plano de mitigação tecnológico e/ou regulatório?Avaliar se a administração está estruturando alternativas concretas (híbridos, PPAs flexíveis, diálogo com regulador).
    3. Diversificação do portfólioO portfólio está diversificado ou concentrado em ativos vulneráveis?Reduzir exposição a cortes simultâneos e equilibrar riscos entre diferentes tecnologias.
    4. Armadilhas tecnológicasHá riscos de “armadilhas tecnológicas” nos projetos de mitigação (ex.: BESS sem arcabouço, H2V sem mercado)?Evitar investimentos baseados em soluções emergentes sem maturidade regulatória ou financeira.
    5. Monitoramento regulatórioO conselho está acompanhando a evolução regulatória (ex.: integração ONS–DSO, rateio da GD/MMGD)?Antecipar impactos sobre contratos, tarifas e remuneração de ativos.
    6. Sinais de mercadoHá análise sobre PLD, bandeiras tarifárias e despacho térmico em paralelo ao curtailment?Entender distorções de preço e seus impactos sobre a receita líquida dos projetos.
    7. Cenários de transmissãoA expansão da rede de transmissão acompanha a capacidade dos projetos contratados?Evitar investir em ativos que podem ficar “ilhados” por gargalos de escoamento.
    8. Governança de riscoHá comitê ou estrutura dedicada para monitorar riscos energéticos no portfólio?Institucionalizar a gestão de riscos, reduzindo dependência de análises pontuais.
    9. Engajamento setorialA empresa participa ativamente de consultas públicas e associações setoriais?Influenciar marcos regulatórios e proteger interesses de longo prazo.
    10. Estratégia de saídaExiste plano de desinvestimento ou reposicionamento caso os cortes se agravem?Garantir flexibilidade estratégica em cenários adversos.

    Conclusão

    O crescimento acelerado da geração eólica e solar no Brasil trouxe conquistas inegáveis em termos de descarbonização e diversificação da matriz elétrica. Contudo, os cortes de geração — que somaram recordes históricos em 2025 — expõem uma realidade incontornável: o curtailment não é um acidente, tampouco um evento imprevisível. Ele não é um “cisne negro”, mas sim um risco previsível, recorrente e mensurável, já documentado em diferentes mercados internacionais e amplamente reconhecido pelos estudos do ONS.

    Para os conselhos de administração, essa constatação tem implicações diretas. Aprovar projetos renováveis sem incorporar cenários realistas de corte significa assumir uma exposição desnecessária, que compromete a rentabilidade, a credibilidade e a própria responsabilidade fiduciária perante acionistas e investidores. O dever de diligência exige que o curtailment seja tratado como variável estrutural nas análises de viabilidade, nos PPAs e na gestão de portfólio.

    Da mesma forma, as soluções tecnológicas hoje apresentadas como resposta — baterias, hidrogênio verde, usinas reversíveis, eficiência e gestão da demanda — não devem ser vistas como panaceias. Elas oferecem oportunidades concretas, mas carregam riscos próprios de custo, regulação, tempo de maturação e viabilidade de mercado. Para não trocar um problema por outro, os conselhos precisam adotar uma abordagem integrada, questionadora e prudente.

    O curtailment é, acima de tudo, um teste de governança. Ele separa as organizações que compreendem a transição energética como processo complexo, sistêmico e regulatório, daquelas que a enxergam apenas como selo ESG para atrair capital. O desafio não está em identificar o problema — hoje amplamente visível —, mas em estruturar mecanismos de decisão capazes de antecipar riscos, diversificar soluções e fortalecer a resiliência corporativa.

    Assim, o recado final aos conselheiros é claro: não se deixem surpreender por um fenômeno que já se consolidou como realidade. Incorporar o curtailment no radar estratégico não é pessimismo, é prudência. A verdadeira falha não está no corte em si, mas em tratá-lo como surpresa. O “cisne negro” já foi desmascarado; agora, cabe aos conselhos transformar essa consciência em ação estratégica para proteger valor e garantir a sustentabilidade dos investimentos em renováveis.

  • Energia e datacenters no Brasil: como evitar a armadilha da commodity

    Energia e datacenters no Brasil: como evitar a armadilha da commodity

    A nova fronteira do consumo de energia

    O mercado de datacenters cresce em ritmo acelerado e está no centro da nova economia digital. Em 2024, essas infraestruturas consumiram cerca de 415 TWh de eletricidade em todo o mundo, representando aproximadamente 1,5% da demanda global. As projeções indicam que esse consumo poderá dobrar ou mesmo triplicar até 2028, impulsionado principalmente pela inteligência artificial, pela expansão da computação em nuvem e pela multiplicação de serviços digitais. Diante desse cenário, surge uma questão crítica para o setor elétrico: como as empresas de energia podem se manter relevantes e estratégicas, em vez de se tornarem apenas fornecedoras de um insumo básico.

    A lição das telecomunicações

    A experiência das telecomunicações oferece uma lição valiosa. No passado, as operadoras chegaram a liderar o mercado de datacenters, mas optaram por vender seus ativos e focar apenas na conectividade. Esse movimento abriu espaço para players especializados e para os hyperscalers, como Amazon, Google e Microsoft, que expandiram seus próprios parques tecnológicos, ao mesmo tempo em que utilizam colocation de empresas como Equinix, Digital Realty e CyrusOne. O resultado foi a transformação das telecomunicações em commodity: ainda fundamentais, mas facilmente substituíveis por qualquer outro provedor de rede. O risco para a energia é repetir a mesma trajetória, sendo tratada apenas como megawatts contratáveis no mercado livre.

    Oportunidade e desafio para o Brasil

    O desafio é particularmente relevante para o Brasil, que se prepara para implementar o ReData, programa de incentivos e regras para a instalação de datacenters. Essa iniciativa pode posicionar o país como hub estratégico de infraestrutura digital na América Latina. No entanto, para que as utilities brasileiras aproveitem essa oportunidade, será necessário um reposicionamento profundo da proposta de valor. A energia precisa ser apresentada não como um insumo indiferenciado, mas como um diferencial competitivo que garante resiliência, sustentabilidade, inteligência e viabilidade financeira aos datacenters.

    Quatro pilares estratégicos

    O primeiro pilar dessa transformação é a resiliência operacional. Datacenters exigem energia contínua, com níveis de disponibilidade equivalentes a padrões internacionais como Tier IV. No exterior, já existem exemplos emblemáticos, como o projeto do Google na Bélgica, que transformou sistemas de UPS e baterias em recursos ativos para a rede elétrica, participando de programas de regulação de frequência. No Brasil, há espaço para utilities estruturarem ofertas que combinem subestações dedicadas, redundância de linhas de transmissão e soluções híbridas integrando fontes renováveis, armazenamento em baterias e backup a gás ou hidrogênio verde.

    O segundo pilar é a sustentabilidade certificada. Energia renovável já não é diferencial, mas requisito mínimo para qualquer operação global de datacenter. O que gera valor é a rastreabilidade e a transparência. Na União Europeia, datacenters acima de 500 kW precisam reportar indicadores de eficiência energética e emissões, criando um padrão de comparação público. Para utilities brasileiras, a resposta está em oferecer pacotes completos de “Net Zero as a Service”, combinando energia renovável certificada, créditos de carbono auditados e relatórios alinhados a padrões como TCFD e ISSB.

    O terceiro pilar é a digitalização. Em um setor guiado por dados, faz pouco sentido que a relação entre datacenters e fornecedores de energia permaneça analógica. Estudos conduzidos pelo Lawrence Berkeley National Laboratory e pelo MIT mostram como a inteligência artificial pode otimizar contratos, prever picos de carga e melhorar a eficiência operacional. Utilities brasileiras podem transformar essa tendência em serviço, oferecendo plataformas de monitoramento em tempo real, gêmeos digitais para simulação e relatórios automáticos de desempenho energético.

    O quarto pilar é a inovação financeira. Os datacenters crescem de forma modular, expandindo conforme a demanda digital. Modelos contratuais rígidos não atendem a essa dinâmica. Por isso, começam a se consolidar práticas como os PPAs 24/7, que associam cada hora de consumo a uma geração específica de energia limpa, e programas seletivos como o DC-CFA de Singapura, que liberou capacidade sob critérios de sustentabilidade. Para o Brasil, a recomendação é criar estruturas contratuais flexíveis, com cláusulas de expansão e possibilidade de co-investimento em novas usinas.

    As dores dos datacenters e o papel das utilities

    Antes de aplicar as recomendações ao contexto brasileiro, é importante reconhecer que os datacenters compartilham um conjunto de dores universais que transcendem fronteiras. Questões como confiabilidade do suprimento, custos crescentes de energia, pressões ESG, eficiência operacional, integração com a rede, escalabilidade e aceitação social aparecem em diferentes mercados. Para que as utilities compreendam onde podem gerar valor estratégico, o quadro a seguir sintetiza essas dores e sugere como o setor de energia pode se posicionar como parceiro de soluções.

    Quadro — Principais dores dos datacenters e como as empresas de energia podem ajudar

    Dores dos DatacentersComo as Empresas de Energia Podem Ajudar
    Confiabilidade do suprimentoRedundância elétrica, subestações dedicadas, renováveis + BESS + backup a gás ou hidrogênio verde, SLAs Tier IV.
    Custos crescentes de energiaPPAs de longo prazo, autoprodução, co-investimento em plantas dedicadas.
    Pressões ESG e Net ZeroNet Zero as a Service com energia certificada, I-RECs, compensações auditadas e relatórios alinhados a padrões globais.
    Gestão de eficiência energéticaTelemetria, dashboards, gêmeos digitais, IA para previsão de demanda e otimização.
    Integração com a redeUPS e baterias em resposta à demanda e serviços ancilares.
    Planejamento de expansãoContratos flexíveis com cláusulas de escalabilidade.
    Aceitação social e impactos locaisReuso de calor, eficiência hídrica, contrapartidas socioambientais.

    Recomendações específicas para o Brasil

    O Brasil dispõe de vantagens competitivas inegáveis: matriz elétrica majoritariamente renovável, potencial extraordinário em solar e eólica, experiência regulatória consolidada e um mercado de datacenters em plena expansão. Para transformar esses ativos em vantagem estratégica, as utilities precisam agir em quatro frentes. Primeiro, usar o ReData como plataforma de integração, participando do planejamento de novos projetos desde o início. Segundo, explorar hubs regionais, aproveitando a vocação solar e eólica do Nordeste e a base hídrica e térmica do Sul e Sudeste. Terceiro, propor à ANEEL e ao ONS regras que incentivem a participação de datacenters em resposta à demanda e serviços ancilares, transformando-os em ativos de flexibilidade. Por fim, construir alianças de co-investimento com hyperscalers, replicando modelos europeus e norte-americanos.

    Conclusão

    Assim como ocorreu com as telecomunicações, a energia corre o risco de ser tratada como commodity se for oferecida apenas como megawatts indiferenciados. O reposicionamento é urgente. Empresas de energia precisam atuar como parceiras estratégicas, entregando resiliência, sustentabilidade, digitalização e inovação financeira. O Brasil, com sua matriz limpa e capacidade regulatória, tem a oportunidade de liderar a integração entre energia e datacenters na América Latina, consolidando-se como protagonista da próxima onda global de infraestrutura digital.

  • Energia e Datacenters: Como Evitar a Armadilha da Comoditização e Manter Relevância Estratégica

    Energia e Datacenters: Como Evitar a Armadilha da Comoditização e Manter Relevância Estratégica

    Sumário Executivo

    O crescimento exponencial do mercado de datacenters está redefinindo a relação entre energia e infraestrutura digital. Em 2024, essas instalações consumiram aproximadamente 415 TWh de eletricidade, o equivalente a 1,5% da demanda global, com projeções de duplicar ou até triplicar nos próximos anos sob o impulso da inteligência artificial. Esse avanço coloca o setor elétrico diante de uma encruzilhada: ou assume um papel estratégico nesse ecossistema, ou corre o risco de repetir a trajetória das telecomunicações, que se tornaram meras fornecedoras de conectividade, tratadas como commodity pelos datacenters.

    Os sinais de pressão são claros. Na União Europeia, datacenters com mais de 500 kW de capacidade estão obrigados a reportar indicadores de eficiência, e países como Irlanda e Holanda já limitaram novas conexões para preservar a estabilidade da rede. Singapura, após impor uma moratória, retomou a expansão de forma seletiva, condicionando a aprovação de projetos a critérios de sustentabilidade. Esses exemplos mostram que a energia não é mais apenas um insumo: é fator crítico de viabilidade e competitividade para a economia digital.

    Para evitar a comoditização, as utilities precisam reposicionar sua proposta de valor em torno de quatro pilares. O primeiro é a resiliência operacional, garantindo redundância, integração de fontes e padrões de disponibilidade compatíveis com Tier IV. O segundo é a sustentabilidade certificada, com energia renovável rastreável, compensações de carbono auditadas e relatórios alinhados a padrões globais. O terceiro é a digitalização, oferecendo telemetria em tempo real, inteligência artificial para otimização de carga e relatórios automáticos que transformam energia em serviço digitalizado. O quarto é a inovação financeira, com contratos flexíveis, PPAs 24/7 e modelos de co-investimento que acompanhem os ciclos de expansão modular dos datacenters.

    No Brasil, esse reposicionamento encontra uma oportunidade histórica. O país dispõe de uma matriz elétrica majoritariamente renovável, potencial extraordinário em solar e eólica, e experiência consolidada em regulação do setor. Com a implementação do ReData, as utilities podem se tornar parceiras estratégicas de hyperscalers e operadores de datacenters, explorando hubs regionais e participando desde a concepção dos projetos. A integração entre energia e datacenters pode transformar o Brasil em referência internacional em sustentabilidade e inovação digital, atraindo investimentos e consolidando sua posição como protagonista da próxima onda global.

    Em síntese, o desafio não é fornecer mais megawatts, mas oferecer soluções que combinem resiliência, sustentabilidade, digitalização e inovação financeira. O futuro dos datacenters será também o futuro da energia — e o Brasil tem a chance de liderar essa convergência.

    Introdução — A lição das telecomunicações

    Nos primeiros anos da internet comercial e da expansão das infraestruturas digitais, as operadoras de telecomunicações eram vistas como protagonistas naturais no mercado de datacenters. Elas detinham a capilaridade das redes de fibra, a proximidade com os clientes corporativos e a capacidade de realizar investimentos de grande escala. Parecia evidente que a evolução para serviços de colocation e hospedagem de dados seria uma extensão lógica de seus negócios principais. De fato, grupos como a Telefónica chegaram a construir e operar datacenters relevantes, mas, assim como outras operadoras, acabaram se desfazendo desses ativos e transferindo a operação para fundos e empresas especializadas.

    O efeito estratégico foi imediato. As operadoras, antes centrais, cederam espaço para empresas dedicadas e para os hyperscalers, como Amazon, Google e Microsoft, que passaram a construir suas próprias infraestruturas em escala global. Vale lembrar, contudo, que mesmo esses gigantes não operam isoladamente: parte de suas operações é hospedada em datacenters de terceiros, como Equinix, Digital Realty e CyrusOne, entre outros players especializados que oferecem interconexão neutra e presença em múltiplos mercados. Esse arranjo híbrido reforça que o datacenter se consolidou como núcleo estratégico da economia digital, enquanto a conectividade fornecida pelas operadoras passou a ser percebida apenas como insumo intercambiável.

    A conectividade, que antes era vantagem competitiva, transformou-se em requisito mínimo. As telecomunicações passaram a ser vistas pelos datacenters como uma commodity: necessárias, mas facilmente substituíveis por qualquer outro fornecedor disponível. O valor deixou de estar na rede em si e passou a residir na capacidade de atrair, hospedar e operar ambientes digitais com eficiência, confiabilidade e sustentabilidade. Assim, as teles tornaram-se habilitadoras invisíveis de um setor que poderiam ter liderado.

    Hoje, a energia elétrica caminha por uma encruzilhada semelhante. Os datacenters globais, que já respondem por mais de 1,5% do consumo mundial de eletricidade e projetam expansão acelerada com a ascensão da inteligência artificial, dependem diretamente de fontes abundantes, confiáveis e renováveis para sustentar seu crescimento. No entanto, assim como ocorreu com as telecomunicações, existe o risco de que a energia seja percebida apenas como insumo básico, contratável de qualquer fornecedor no mercado livre, sem diferenciação estratégica.

    Este artigo parte dessa analogia para propor um caminho alternativo. Se as empresas de energia quiserem manter relevância no ecossistema de datacenters, não poderão se limitar à venda de megawatts. Precisam transformar-se em parceiras estratégicas, oferecendo resiliência operacional, sustentabilidade certificada, integração digital e soluções financeiras inovadoras. O objetivo aqui é construir um framework que evite a armadilha da comoditização e reposicione o setor de energia como protagonista na infraestrutura digital que molda o futuro.

    Diagnóstico Atual

    O mercado global de datacenters atravessa uma fase de crescimento sem precedentes, impulsionado por tendências estruturais como a massificação da computação em nuvem, a digitalização de serviços e, mais recentemente, a aceleração do uso da inteligência artificial. Esse avanço tem colocado a questão energética no centro da estratégia, tanto do ponto de vista do consumo absoluto quanto das exigências de sustentabilidade e regulação.

    Crescimento explosivo da demanda energética

    De acordo com estimativas recentes da Agência Internacional de Energia, os datacenters consumiram aproximadamente 415 TWh de eletricidade em 2024, o que corresponde a cerca de 1,5% da demanda global. A tendência, contudo, não é de estabilização, mas de forte expansão. O avanço dos modelos de inteligência artificial generativa e o crescimento contínuo de serviços de nuvem e streaming adicionam novas camadas de pressão sobre o sistema elétrico, indicando que o peso relativo dos datacenters deve aumentar de forma acelerada na matriz mundial.

    Nos Estados Unidos, estudo conduzido pelo Lawrence Berkeley National Laboratory, em parceria com o Departamento de Energia, mostra que a carga elétrica dos datacenters praticamente triplicou ao longo da última década. As projeções mais recentes apontam para a possibilidade de dobrar, ou mesmo triplicar novamente, até 2028, um horizonte de tempo extremamente curto se comparado ao ciclo tradicional de expansão de geração e transmissão. Essa aceleração cria uma tensão inédita entre a velocidade de crescimento da demanda e a capacidade de resposta da infraestrutura elétrica.

    Pressões de sustentabilidade e regulação

    Além do desafio quantitativo, os datacenters enfrentam um quadro regulatório e social cada vez mais exigente. Na União Europeia, a revisão da Diretiva de Eficiência Energética estabeleceu a obrigatoriedade de reporte de indicadores de desempenho para todos os datacenters com potência instalada superior a 500 kW. Esses relatórios, entregues em bases regulares a um banco de dados europeu, tornam públicas informações de eficiência e emissões, criando um ambiente de comparação e pressão competitiva.

    Paralelamente, códigos de conduta e métricas ESG específicas para o setor se consolidaram como padrões de referência, entre os quais se destacam o PUE (Power Usage Effectiveness), o WUE (Water Usage Effectiveness) e as metas de suprimento 24/7 com energia livre de carbono. Em vários países, esses parâmetros já transcenderam a esfera voluntária e se transformaram em requisitos de mercado ou em critérios de regulação.

    Algumas jurisdições foram ainda mais além, impondo limites diretos à expansão dos datacenters. A Irlanda suspendeu novas conexões na região de Dublin até 2028 devido a restrições de rede. A Holanda instituiu uma moratória temporária para hyperscalers enquanto definia novas diretrizes nacionais. Já Singapura adotou um modelo mais seletivo, relançando seu mercado após uma pausa com o programa DC-CFA, que autoriza capacidade limitada apenas para projetos que atendam critérios de sustentabilidade e eficiência.

    Onde está o risco de comoditização

    Esse cenário de crescimento e regulação abre espaço para uma reflexão crítica sobre o papel das empresas de energia. A energia renovável, que há poucos anos era considerada um diferencial competitivo, hoje é requisito mínimo para qualquer contrato com datacenters globais. Estar alinhado ao suprimento renovável deixou de ser uma escolha e passou a ser uma condição de entrada.

    Além disso, a evolução do mercado livre e a possibilidade de autoprodução reduziram ainda mais a dependência de grandes consumidores em relação a fornecedores específicos. Datacenters podem negociar com múltiplos agentes, estruturar portfólios de PPAs e até investir em ativos próprios de geração. Nesse contexto, se as empresas de energia se limitarem a ofertar megawatts de forma indiferenciada, serão inevitavelmente vistas como prestadoras de um insumo básico, sem poder de diferenciação ou relevância estratégica.

    O risco da comoditização é, portanto, real e imediato. A questão central não é se os datacenters vão consumir mais energia — isso já está dado —, mas se as empresas do setor serão capazes de oferecer algo além do fornecimento elétrico tradicional. O próximo capítulo desse mercado será definido pela capacidade de reposicionamento do setor energético diante das demandas de resiliência, sustentabilidade, digitalização e inovação contratual.

    Pilares Estratégicos para Manter Relevância

    O diagnóstico atual mostra que, se limitadas a vender megawatts, as empresas de energia serão reduzidas a fornecedoras de um insumo básico. Para escapar dessa armadilha e conquistar relevância no ecossistema de datacenters, é preciso reposicionar a oferta de valor em torno de quatro pilares estratégicos: resiliência operacional, sustentabilidade certificada, digitalização inteligente e inovação financeira.

    Pilar 1 – Resiliência Operacional

    Os datacenters vivem sob a lógica do “uptime absoluto”. Qualquer interrupção, mesmo de segundos, pode gerar perdas financeiras e comprometer a reputação de provedores globais. Por isso, a energia fornecida a essas operações precisa ir além da disponibilidade convencional e alcançar níveis de redundância compatíveis com certificações Tier IV. O exemplo mais emblemático vem da Bélgica, onde o Google, em parceria com empresas como a Fluence e a Centrica, transformou seus sistemas de UPS e baterias em recursos ativos para a rede elétrica, prestando serviços de regulação de frequência (FCR). Essa experiência mostrou que, além de reduzir o uso de geradores a diesel, a infraestrutura de backup pode ser integrada de forma inteligente ao sistema elétrico nacional.

    Para o Brasil, a proposta é clara. Utilities devem estruturar ofertas que combinem redundância elétrica dedicada, subestações exclusivas para clusters de datacenters e soluções híbridas que integrem renováveis, sistemas de armazenamento em baterias (BESS) e backup a gás natural ou hidrogênio verde. Dessa forma, podem oferecer contratos baseados em níveis de serviço (SLA) equivalentes aos exigidos pelos padrões internacionais mais rigorosos, transformando a resiliência em um diferencial competitivo.

    Pilar 2 – Sustentabilidade Certificada

    O segundo pilar está diretamente associado às pressões ESG. Na União Europeia, a obrigatoriedade de reporte de KPIs de eficiência para datacenters acima de 500 kW e a aplicação de códigos de conduta como o EU Code of Conduct for Data Centre Energy Efficiency mostram que a sustentabilidade já não é um discurso, mas uma obrigação institucionalizada. Além disso, os clientes globais buscam cada vez mais soluções que ofereçam rastreabilidade e transparência, com uso de blockchain e certificações reconhecidas para garantir que o consumo está alinhado a metas de neutralidade climática.

    Nesse contexto, a simples oferta de energia renovável já não é suficiente. O diferencial está em entregar “Net Zero as a Service”: pacotes que combinem energia limpa, certificados de origem (I-RECs) e instrumentos de compensação de carbono, acompanhados de auditorias independentes e relatórios transparentes de impacto. O valor não estará apenas na fonte da energia, mas na credibilidade das métricas apresentadas ao mercado.

    Pilar 3 – Digitalização e Inteligência

    O terceiro pilar diz respeito à integração de inteligência e dados no fornecimento de energia. Estudos do Lawrence Berkeley National Laboratory, do MIT e do Rocky Mountain Institute mostram como o uso de inteligência artificial, gêmeos digitais e sistemas de monitoramento em tempo real pode otimizar o consumo energético dos datacenters, prever picos de carga e reduzir custos operacionais.

    Para as utilities, a oportunidade está em oferecer energia como serviço digitalizado. Isso significa fornecer plataformas de telemetria integradas aos contratos, permitindo ao cliente acompanhar em tempo real não apenas o volume de consumo, mas também a origem da energia, as emissões evitadas e o desempenho de eficiência. Relatórios automáticos, dashboards personalizáveis e algoritmos de predição transformam o relacionamento entre empresa de energia e datacenter em uma parceria baseada em dados, não em simples fornecimento físico.

    Pilar 4 – Inovação Financeira

    O quarto pilar é a flexibilidade contratual. O crescimento dos datacenters é marcado por ciclos de expansão rápida, com adição de módulos e capacidade de acordo com a evolução da demanda digital. Modelos financeiros rígidos não atendem a essa dinâmica. Casos como os PPAs 24/7 firmados pelo Google, que buscam casar cada hora de consumo com geração renovável, ou o programa DC-CFA de Singapura, que liberou capacidade sob critérios específicos de sustentabilidade, apontam para a necessidade de arranjos contratuais inovadores.

    Para o setor de energia, isso significa desenvolver estruturas de longo prazo que permitam escalonamento, cláusulas de flexibilidade e até modelos de co-investimento em novas plantas de geração. A utility deixa de ser apenas fornecedora e passa a atuar como parceira financeira, compartilhando riscos e viabilizando a expansão. Dessa forma, não apenas vende energia, mas participa diretamente da estratégia de crescimento do cliente.

    Recomendações para o Brasil

    O Brasil encontra-se em um momento singular para posicionar-se no mercado global de datacenters. O lançamento do ReData, política que prevê incentivos e regras específicas para estimular a instalação e a operação dessas infraestruturas no país, representa uma oportunidade de reposicionamento estratégico para as empresas de energia. O risco, entretanto, é repetir a trajetória das operadoras de telecomunicações, que se limitaram a fornecer conectividade e perderam espaço para players especializados. A hora de agir é agora, antes que a energia seja tratada apenas como commodity na equação dos investimentos digitais.

    Antes de detalhar as recomendações específicas para o Brasil, é importante reconhecer que os datacenters compartilham um conjunto de dores universais que transcendem fronteiras e modelos regulatórios. Questões como confiabilidade do suprimento, custos crescentes de energia, pressões de sustentabilidade, eficiência operacional, integração com a rede, escalabilidade e aceitação social compõem um mosaico de desafios que se repetem em diferentes mercados. Para que as utilities brasileiras compreendam onde podem gerar valor estratégico, apresentamos a seguir um quadro que sintetiza essas principais dores e indica como as empresas de energia podem se posicionar como parceiras de soluções, e não apenas fornecedoras de um insumo básico.

    Dores dos DatacentersComo as Empresas de Energia Podem Ajudar
    Confiabilidade do suprimento: datacenters não podem ter interrupções; qualquer falha afeta serviços críticos e clientes globais.Oferecer redundância elétrica com subestações dedicadas, linhas independentes de transmissão e integração de renováveis com baterias e backup a gás/H2V, garantindo SLA compatível com Tier IV.
    Custos crescentes de energia: energia representa uma das maiores parcelas do OPEX e está sujeita a volatilidade de preços.Estruturar contratos de longo prazo (PPAs) com preços estáveis, co-investimento em plantas dedicadas e soluções de autoprodução compartilhada, mitigando riscos financeiros.
    Pressões ESG e Net Zero: clientes e reguladores exigem rastreabilidade de consumo e redução de pegada de carbono.Entregar “Net Zero as a Service”, combinando energia renovável certificada, I-RECs e compensações de carbono auditadas; fornecer relatórios alinhados a padrões internacionais (ISSB, TCFD, EU EED).
    Gestão de eficiência energética: dificuldade em otimizar uso de energia em tempo real frente a cargas dinâmicas, IA e resfriamento intensivo.Oferecer plataformas digitais de telemetria, dashboards de consumo, gêmeos digitais e IA para previsão de demanda, otimizando contratos e eficiência operacional.
    Integração com a rede: datacenters são vistos como grandes consumidores que pressionam o sistema.Transformá-los em agentes de flexibilidade, integrando UPS e BESS para participar de resposta à demanda e serviços ancilares, como regulação de frequência.
    Planejamento de expansão: crescimento modular rápido, exigindo escalabilidade do fornecimento.Criar contratos escalonáveis, com cláusulas de expansão e modelos financeiros flexíveis que acompanhem os ciclos de crescimento.
    Aceitação social e impactos locais: críticas pelo alto consumo de energia e água, além da ocupação de grandes áreas.Integrar projetos de reuso de calor em distritos urbanos, apoiar eficiência hídrica e propor contrapartidas socioambientais visíveis, reforçando a legitimidade social dos investimentos.

    A primeira recomendação é que o ReData seja visto não apenas como um instrumento governamental de atração de investimentos, mas como uma plataforma de integração entre utilities, operadores de datacenters e o ecossistema de inovação. As empresas de energia precisam se apresentar como parceiras estratégicas na modelagem dos novos empreendimentos, participando da concepção dos projetos desde o início. Isso significa estar presentes nas negociações, não como fornecedores marginais de megawatts, mas como atores centrais capazes de entregar resiliência, sustentabilidade certificada, soluções digitais e flexibilidade financeira.

    O segundo ponto é explorar de forma inteligente os hubs regionais que o Brasil naturalmente oferece. O Nordeste possui abundância solar e projetos eólicos de grande escala, configurando-se como polo competitivo para datacenters que buscam energia renovável em volumes crescentes. O Sul e o Sudeste, com base hídrica consolidada, térmicas flexíveis e maior densidade de transmissão, podem se tornar atrativos para projetos que demandam redundância, proximidade com centros consumidores e integração com redes internacionais de conectividade. Mapear essas vocações regionais e construir propostas específicas para cada polo será essencial para atrair investimentos de forma sustentável e distribuída.

    O terceiro eixo de recomendação envolve a regulação. A ANEEL e o ONS devem ser instados a estruturar regras que permitam e incentivem a participação de datacenters em programas de resposta à demanda e serviços ancilares. Essa integração já ocorre em países como Bélgica e Estados Unidos, onde UPS e sistemas de baterias de datacenters são mobilizados para apoiar a estabilidade da rede. No Brasil, incorporar essa lógica significa transformar um consumidor intensivo em um agente ativo de flexibilidade, reduzindo pressões sobre o sistema elétrico e criando novas fontes de receita para os operadores de datacenters e seus parceiros energéticos.

    Por fim, é fundamental construir alianças estratégicas com hyperscalers. Amazon, Google e Microsoft já adotam modelos de co-investimento em plantas de geração dedicadas em outras partes do mundo, garantindo suprimento estável e sustentável para suas operações. Replicar esse modelo no Brasil pode ser decisivo para consolidar o país como hub regional de datacenters. Utilities nacionais que se apresentarem como parceiras de co-investimento terão condições de capturar valor não apenas pela venda de energia, mas também pela participação direta na expansão da infraestrutura digital, garantindo relevância no longo prazo.

    Conclusão

    A experiência das telecomunicações deixa uma lição clara: setores inteiros podem perder relevância estratégica quando se limitam a fornecer insumos básicos sem diferenciação. O que aconteceu com a conectividade — transformada em commodity diante da ascensão dos datacenters especializados e dos hyperscalers — pode se repetir com a energia. Se o fornecimento elétrico continuar a ser tratado apenas como a entrega de megawatts indiferenciados, as empresas de energia correm o risco de se tornarem invisíveis no ecossistema digital, ainda que sejam absolutamente essenciais para sua existência.

    A saída para evitar essa armadilha passa por um reposicionamento profundo. O setor precisa assumir o papel de parceiro estratégico, não apenas de fornecedor. Isso significa oferecer resiliência operacional com redundância e integração de fontes, assegurar sustentabilidade certificada com métricas transparentes, incorporar digitalização e inteligência para transformar energia em serviço monitorável e confiável, além de inovar em modelos financeiros que acompanhem o ritmo de expansão dos datacenters. Em outras palavras, trata-se de deslocar a oferta de energia do campo da commodity para o campo da solução estratégica.

    O Brasil, por sua vez, dispõe de uma oportunidade histórica. Com uma matriz elétrica majoritariamente renovável, vasto potencial de expansão solar e eólico, experiência consolidada em regulação do setor e programas emergentes como o ReData, o país tem condições de se posicionar como protagonista na próxima onda global de infraestrutura digital. A integração inteligente entre energia e datacenters pode não apenas atrair investimentos, mas também consolidar o Brasil como referência internacional em sustentabilidade, inovação e segurança energética aplicada ao universo digital.

    O desafio, portanto, é de visão e ação. Assim como as telecomunicações perderam seu espaço por não compreenderem a tempo o papel estratégico dos datacenters, as empresas de energia precisam agir agora para não repetir a mesma trajetória. O futuro dos datacenters será também o futuro da energia. Cabe ao Brasil decidir se será apenas fornecedor de megawatts ou parceiro estratégico da transformação digital.

  • Rodovias autônomas e o futuro da infraestrutura: lições da experiência chinesa

    Rodovias autônomas e o futuro da infraestrutura: lições da experiência chinesa

    O setor de infraestrutura global vive uma mudança sem precedentes. O que até pouco tempo parecia ficção científica tornou-se realidade em larga escala: a automação plena de obras rodoviárias. A experiência chinesa, que recapou 158 quilômetros da rodovia Pequim–Hong Kong–Macau utilizando apenas máquinas autônomas e drones, sinaliza um novo paradigma para o futuro da engenharia civil. Este marco coloca em evidência o tema central deste briefing: rodovias autônomas futuro da infraestrutura.

    Um marco histórico no setor viário

    A construção de rodovias sempre foi reflexo da capacidade de um país em organizar seu território e estimular seu desenvolvimento. Da engenharia romana ao advento das autoestradas do século XX, cada salto tecnológico respondeu à mesma lógica: fazer mais, em menos tempo, com mais qualidade. Hoje, a automação impulsionada por inteligência artificial, internet das coisas e comunicação 5G abre um novo ciclo. A rodovia autônoma chinesa tornou-se símbolo dessa nova era, não apenas pelo alcance técnico, mas pelo impacto social e estratégico.

    Como se constrói hoje e o contraste com a China

    Enquanto países como Brasil, Estados Unidos e nações europeias avançam em automação parcial, com máquinas semi-autônomas e uso pontual de drones e BIM, a China apostou em escala total. No Brasil, o DNIT e algumas concessionárias exploram projetos-piloto com drones e GPS, mas o processo ainda é marcado por forte presença manual. Nos EUA, Caterpillar e Komatsu oferecem equipamentos inteligentes, e a Federal Highway Administration incentiva a digitalização. A Europa, por sua vez, aposta na integração com digital twins e manutenção preditiva.

    O contraste é evidente. A experiência chinesa demonstra que é possível centralizar esforços e realizar uma obra real em larga escala sem intervenção humana no campo. Essa ousadia reposiciona os termos do debate sobre o futuro da infraestrutura.

    Ganhos de produtividade e eficiência

    O impacto mais visível é a produtividade. As máquinas autônomas operam 24 horas por dia, sete dias por semana, sem pausas. O tempo total de execução cai drasticamente, e os custos de operação são reduzidos pela eliminação de despesas associadas a equipes presenciais. Além disso, a precisão milimétrica na aplicação de camadas de asfalto e a coordenação entre pavimentadoras e compactadores reduzem retrabalhos e aumentam a durabilidade do pavimento.

    Esse modelo mostra como as rodovias autônomas podem transformar a lógica de custo-benefício da infraestrutura, entregando mais qualidade e segurança ao longo de todo o ciclo de vida.

    Desafios socioeconômicos e éticos

    Apesar dos ganhos, o projeto chinês abre discussões importantes. O deslocamento de empregos na construção civil é inevitável. Tarefas antes manuais agora são substituídas por sistemas de controle remoto, supervisão de IA e análise de dados. Isso exige requalificação da mão de obra e a criação de novos papéis profissionais.

    Há também o risco de concentração tecnológica em poucos fornecedores globais de inteligência artificial, sensores e máquinas pesadas. Isso pode criar dependências críticas, especialmente em países que não desenvolvem suas próprias plataformas digitais. Além disso, surge a questão ética: até que ponto devemos automatizar? O desafio será equilibrar eficiência com inclusão social, inovação com preservação de oportunidades.

    A rodovia como plataforma digital

    Um dos grandes aprendizados da experiência chinesa é enxergar a estrada não apenas como infraestrutura física, mas como plataforma digital. Sensores embarcados, drones e satélites coletam dados em tempo real sobre densidade, temperatura e desgaste. Esses dados alimentam modelos preditivos que permitem planejar manutenções antes que falhas ocorram.

    No futuro, esse ecossistema poderá se integrar diretamente com veículos autônomos. Uma rodovia capaz de informar em tempo real sua condição estrutural aumentará a segurança e a eficiência de toda a rede de mobilidade. É o prenúncio de uma infraestrutura inteligente e conectada, em que cada quilômetro pavimentado se torna também um nó em uma rede de dados estratégicos.

    Cenários para os próximos 20 anos

    Podemos imaginar três cenários. O primeiro é o da automação parcial, já presente no Ocidente, em que operadores humanos ainda são necessários. O segundo é o da automação plena, em que máquinas autônomas realizam todas as etapas, com supervisão remota mínima. O terceiro, mais visionário, é o da infraestrutura auto-regenerativa: estradas monitoradas por gêmeos digitais, que acionam robôs e drones para reparar fissuras ou irregularidades antes que se tornem problemas.

    Esses cenários mostram que o futuro da infraestrutura será construído em camadas: do tradicional ao disruptivo, do físico ao digital.

    Conclusão

    As rodovias autônomas representam mais do que uma revolução tecnológica. Elas são um marco civilizatório que nos obriga a repensar a relação entre trabalho, tecnologia e sociedade. O desafio não é apenas adotar máquinas mais inteligentes, mas construir um modelo de infraestrutura que concilie eficiência, segurança e inclusão.

    O futuro das estradas será escrito com algoritmos, sensores e dados, mas também com decisões humanas sobre como equilibrar inovação e ética. A experiência chinesa é apenas o primeiro capítulo dessa transformação global.

    Artigo expandido: https://efagundes.com/blog/rodovias-autonomas-futuro/