Eduardo M Fagundes

Tech & Energy Insights

Análises independentes sobre energia, tecnologias emergentes e modelos de negócios

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A Calda Longa da Transição Energética: Os Desafios e Oportunidades do Setor Elétrico Brasileiro

O setor elétrico brasileiro está no centro de uma transformação histórica. Com uma das matrizes energéticas mais limpas do mundo — 91,1% de capacidade renovável, liderada por hidrelétricas, eólicas, biomassa e solar — o país reúne condições únicas para protagonizar a transição energética global. No entanto, esse potencial está ameaçado por uma série de desafios interligados: falta de planejamento integrado, dependência tecnológica, descompasso regulatório, formação profissional desalinhada e riscos climáticos crescentes.

Este artigo propõe uma análise objetiva e didática sobre o verdadeiro estado do setor: um retrato que vai além dos megawatts instalados e das tarifas — para examinar o que chamamos de “calda longa” da energia. Ou seja, os efeitos duradouros e sistêmicos que decisões de hoje têm sobre a arrecadação, a inovação, a indústria, o desenvolvimento regional e a competitividade do país.

Abordaremos de forma estruturada:

  • Como a matriz renovável brasileira, embora exemplar, é vulnerável a eventos climáticos e exige hibridização e armazenamento;
  • Por que os subsídios à geração distribuída não devem ser vistos apenas como custo, mas como investimento de alto retorno sistêmico;
  • O impacto silencioso do curtailment e a ausência de políticas que conectem geração à industrialização regional;
  • Os riscos geopolíticos e a dependência crítica de componentes estrangeiros — e como isso compromete nossa soberania energética;
  • O déficit na formação de engenheiros, técnicos e pesquisadores — gargalo invisível que limita nossa capacidade de inovação;
  • A necessidade de uma regulação ágil, coordenada e voltada para destravar investimentos em hidrogênio verde, baterias e digitalização;
  • E, por fim, a urgência de uma estratégia nacional de energia, baseada na lógica da calda longa: energia como vetor de desenvolvimento, e não apenas commodity tarifária.

O objetivo é claro: trazer luz às oportunidades e vulnerabilidades que moldarão o futuro energético do Brasil — e cobrar uma atuação sistêmica, transparente e planejada que valorize não só o curto prazo, mas o legado de longo prazo que essa transição deixará.

Uma Matriz Limpa, mas Exposta ao Clima

A matriz elétrica brasileira é, sob diversos aspectos, uma das mais sustentáveis do planeta. Com uma capacidade instalada de 246 gigawatts (GW), dos quais 91,1% provêm de fontes renováveis, o Brasil ocupa posição de destaque no cenário internacional da transição energética. Essa composição é formada principalmente por usinas hidrelétricas (44%), seguidas por biomassa (18%), eólica (14%), solar (8%) e outras fontes renováveis e sustentáveis (6%). Além da baixa intensidade de carbono, essa configuração assegura um suprimento de energia relativamente limpo e competitivo.

Contudo, esse protagonismo está ancorado em um pilar frágil: a dependência das vazões hídricas. A geração hidrelétrica — apesar de renovável — é altamente sensível a eventos climáticos extremos como El Niño, La Niña, secas prolongadas, alterações do regime de chuvas e degradação das bacias hidrográficas. Em anos de escassez hídrica severa, como 2001, 2014 ou 2021, o país enfrentou crises energéticas com necessidade de despacho térmico emergencial, aumento do custo da energia e acionamento de bandeiras tarifárias.

A imprevisibilidade climática é hoje um dos principais riscos estruturais do setor. A mudança no padrão histórico das chuvas, já perceptível em diversos biomas brasileiros, impõe a necessidade de planejamento energético baseado em resiliência e flexibilidade, e não apenas em custo marginal de operação.

Hibridização como Caminho Técnico-Estratégico

Diante desse cenário, a hibridização de fontes surge como estratégia indispensável. Combinar a geração hidrelétrica com usinas fotovoltaicas flutuantes em reservatórios existentes, eólicas em regiões complementares e sistemas de armazenamento energético (baterias ou hidrelétricas reversíveis) é uma forma inteligente de reduzir a variabilidade, ampliar a segurança energética e aproveitar melhor a infraestrutura instalada.

Além disso, a hibridização permite a diluição de riscos e custos operacionais, aumentando o fator de capacidade global do sistema e reduzindo o curtailment (desligamento de usinas por falta de escoamento ou sobreoferta). Mas essa integração requer investimentos expressivos em controle digital, monitoramento meteorológico, despacho preditivo e reforço na malha de transmissão — ou seja, elementos da calda longa que não geram retorno imediato, mas são fundamentais para a estabilidade futura do sistema.

Ameaças à Transição: Corte de Incentivos e Custos Crescentes

Paradoxalmente, em vez de acelerar a diversificação, o país enfrenta um movimento contrário. A retirada gradual dos incentivos fiscais à cadeia fotovoltaica, por meio da Medida Provisória que altera isenções para importação de painéis solares e inversores, encarece projetos de pequeno e médio porte — justamente os que mais agregam valor local, promovem descentralização energética e dinamizam economias regionais.

Sem incentivos inteligentes e políticas públicas de longo prazo, a transição para um sistema mais híbrido, resiliente e eficiente fica mais lenta, mais cara e menos inclusiva.

Um Chamado ao Planejamento de Calda Longa

É fundamental que se reconheça que o benefício de uma matriz diversificada não se mede apenas pelo megawatt-hora entregue hoje. Ele se revela na sustentabilidade tarifária futura, na redução da exposição a crises climáticas, na arrecadação municipal com novos projetos, no fortalecimento da indústria nacional e na capacidade de geração de empregos técnicos de qualidade.

Esses efeitos fazem parte da “calda longa” da transição energética: são estruturais, estratégicos e invisíveis aos olhos de análises de curto prazo. Planejar com essa perspectiva é abandonar a visão míope e assumir uma postura de estadista diante do futuro energético brasileiro.

O Debate dos Subsídios: Custo ou Investimento?

O debate sobre os subsídios no setor elétrico brasileiro tem dominado a pauta regulatória e política. Em 2024, os encargos setoriais e subsídios cruzados somam R$ 45,1 bilhões, o que representa 13,78% da tarifa de energia elétrica paga pelos consumidores. Desses valores, cerca de R$ 11,6 bilhões estão diretamente ligados à geração distribuída solar, que hoje ultrapassa 36 gigawatts de potência instalada, em sua maioria composta por sistemas residenciais, comerciais e cooperativos.

A crítica mais comum aponta para o suposto desequilíbrio tarifário gerado pela lógica do incentivo: consumidores com acesso a sistemas fotovoltaicos (geralmente de maior renda) seriam beneficiados, enquanto os demais arcariam com os encargos repassados na tarifa. Essa leitura, ainda que não desprezível, peca por ignorar a economia política de longo prazo da transição energética.

A geração distribuída, por sua natureza descentralizada, gera efeitos que extrapolam a lógica do custo marginal. Entre eles:

  • Aumento da arrecadação municipal e estadual por meio de tributos (ISS, ICMS, PIS, COFINS);
  • Geração de empregos locais qualificados, especialmente em municípios de menor porte;
  • Incentivo ao empreendedorismo e à inovação tecnológica, com a estruturação de cooperativas, startups de energia, serviços de O&M e integradores regionais;
  • Redução de perdas técnicas e alívio na rede de distribuição, ao injetar energia próxima do ponto de consumo;
  • Estímulo à autonomia energética e ao engajamento da sociedade na pauta da sustentabilidade.

Esses elementos compõem o que chamamos de “calda longa da transição energética”: impactos indiretos, cumulativos e estruturantes, que não aparecem no balanço contábil de curto prazo, mas moldam o futuro da matriz elétrica nacional.

O Caso das Eólicas Offshore: Oportunidade em Suspense

A recente derrubada do veto presidencial ao marco legal da geração eólica offshore reacendeu o interesse por essa fronteira tecnológica. O Brasil possui um dos maiores potenciais técnicos do mundo para exploração offshore — estima-se mais de 700 GW em áreas viáveis, com destaque para o litoral do Nordeste, Sudeste e Sul.

Entretanto, apesar do avanço legislativo, a regulação infralegal segue incompleta. Falta clareza quanto a licenciamento ambiental, modelo de cessão de áreas marítimas, compensações socioambientais, regras de conexão à rede e mecanismos de leilão ou mercado livre. Essa indefinição gera insegurança jurídica e adia decisões de investimento de alto impacto, cujos benefícios, se concretizados, seriam exponenciais em termos de arrecadação, inovação industrial e inserção geopolítica do Brasil como exportador de energia limpa.

A Conclusão Inegociável: Política Pública de Longo Prazo

Reduzir subsídios sem considerar sua “calda longa” é comprometer os vetores de transformação estrutural que permitirão ao país se posicionar na vanguarda energética do século XXI. Não se trata de defender subsídios eternos, mas sim de avaliá-los com critérios técnicos, visão estratégica e métricas de retorno ampliado, como geração de valor agregado, dinamismo econômico regional e soberania energética.

Política pública eficiente não é apenas aquela que reduz custo hoje, mas a que constrói futuro com solidez e justiça.

Curtailment: Energia Perdida, Prejuízo Oculto e Falta de Integração Territorial

O fenômeno do curtailment — desligamento de usinas renováveis por restrições operacionais — tornou-se um dos paradoxos mais evidentes da transição energética brasileira. Segundo o Relatório Técnico RT DGL-ONS 0189-2025, o volume de energia eólica e solar não despachada, especialmente na região Nordeste, vem crescendo de forma significativa, revelando um descompasso entre a velocidade da expansão da geração e a capacidade real do sistema de absorver essa energia.

A transparência do ONS ao divulgar esses dados é louvável do ponto de vista técnico, mas também revela uma ausência de planejamento intersetorial e visão de Estado. Em vez de alinhar a política de geração com estratégias de desenvolvimento produtivo e industrial, o país tem avançado de forma descoordenada, resultando em desperdício de ativos, frustração de investidores e oportunidades econômicas não aproveitadas.

A Oportunidade Perdida: Geração Sem Demanda Local

O Nordeste brasileiro, por exemplo, tornou-se o principal polo de geração renovável do país, com fator de capacidade superior a 50% em muitos parques eólicos e solares. No entanto, a maior parte da energia gerada precisa ser escoada para outras regiões, devido à baixa densidade de consumo local. Esse modelo linear — “gerar para exportar energia” — impõe um custo sistêmico elevado e ignora um potencial transformador.

Faltou, até aqui, uma política industrial energética de longo prazo, que promovesse:

  • A instalação de datacenters energointensivos, sustentáveis e conectados à geração local, aproveitando sinergias com o clima (arrefecimento natural), disponibilidade energética e oportunidades fiscais;
  • A atração de projetos de hidrogênio verde e derivados (amônia, metanol), que agregariam valor à eletricidade renovável antes de exportá-la;
  • A promoção de parques industriais eletrointensivos e inovadores, com estímulo à economia circular, logística verde e qualificação de mão de obra regional;
  • A criação de zonas de desenvolvimento integrado, com infraestrutura, incentivos fiscais e governança público-privada;
  • E, de forma destacada, a reconfiguração das Zonas de Processamento de Exportação (ZPEs) como plataformas para ancorar indústrias verdes voltadas à exportação de produtos de alto valor agregado, associadas a cadeias produtivas energointensivas e sustentáveis.

Ao negligenciar essa conexão entre energia e desenvolvimento territorial, o Brasil perde a chance de transformar regiões geradoras em polos de inovação, industrialização e inserção competitiva internacional.

Curtailment como Síntese da Falta de Planejamento Integrado

O curtailment, nesse contexto, é mais do que um problema técnico. Ele é o sintoma mais visível da ausência de um pensamento sistêmico e holístico sobre a energia como vetor de desenvolvimento econômico. É o resultado de uma estrutura decisória compartimentalizada, onde geração, transmissão, consumo e desenvolvimento industrial seguem lógicas próprias, sem convergência estratégica.

Se a energia renovável é tratada apenas como commodity a ser transmitida, e não como insumo estruturante para um novo modelo de desenvolvimento produtivo regional, a transição energética perde força política, legitimidade social e impacto econômico.

Reverter o Quadro: Planejar para a Calda Longa

A reversão desse quadro exige planejamento de longo prazo com visão integrada de território, cadeia produtiva e matriz energética. Políticas públicas devem combinar:

  • Expansão da transmissão;
  • Valorização da flexibilidade e do armazenamento;
  • Incentivos à demanda eletrointensiva local;
  • Estabilidade regulatória para novos negócios;
  • Revisão estratégica do papel das ZPEs como catalisadoras de industrialização verde e integração energética.

A lógica da “calda longa” — que valoriza não apenas o MWh gerado, mas todo o ecossistema que ele viabiliza — precisa orientar a formulação das próximas políticas energéticas brasileiras.

Digitalização: A Modernização Tem Preço — e Valor de Longo Prazo

A digitalização do setor elétrico não é mais uma tendência — é uma imposição da realidade técnica, econômica e climática do século XXI. A publicação da Portaria MME nº 759, de 23 de junho de 2025, que estabelece a obrigatoriedade da digitalização das redes de distribuição até 2035, marca um divisor de águas. O país assume, formalmente, o compromisso de modernizar a base do seu sistema elétrico, com implantação massiva de medidores inteligentes, automação de redes, softwares de controle, interoperabilidade de dados e cibersegurança.

No entanto, como toda transformação estrutural, essa medida traz consigo um desafio crítico: o custo da transição e sua alocação entre os agentes.

Inovação e Tarifa: Um Equilíbrio Instável

A digitalização das redes distribuidoras — abrangendo mais de 90 milhões de unidades consumidoras no Brasil — exigirá bilhões de reais em investimentos, cuja origem ainda está em debate. Há propostas para financiamento via consumidores, fundos setoriais (como a CDE), repasse tarifário escalonado e incentivos cruzados com eficiência energética.

O risco está em replicar a lógica linear de curto prazo, concentrando o custo nos consumidores sem explicar, de forma clara e transparente, os benefícios de médio e longo prazo que essa transformação irá gerar. Isso compromete a aceitação social e cria resistência regulatória. O setor elétrico, já pressionado por aumentos tarifários e distorções de subsídios, pode ver na digitalização mais um fator de alta de tarifa — quando, na realidade, ela é um investimento estruturante para a calda longa do sistema.

A Calda Longa da Digitalização

Ao olhar para além do custo imediato, é possível identificar uma cadeia extensa e positiva de efeitos da digitalização, com potencial para redefinir a matriz de valor do setor elétrico:

  • Precisão na medição e cobrança, reduzindo perdas não técnicas, fraudes e inadimplência;
  • Integração de geração distribuída e armazenamento residencial, com resposta em tempo real;
  • Abertura para o mercado varejista de energia, com novos modelos de negócio (tarifas horárias, energia sob demanda, pacotes customizados);
  • Ativação da chamada “cidadania energética”, permitindo que o consumidor participe ativamente da operação do sistema;
  • Criação de milhares de empregos em TI, eletrônica, segurança cibernética, ciência de dados e serviços técnicos, com impacto direto na qualificação profissional e dinamismo econômico;
  • Estímulo ao surgimento de startups, integradores e desenvolvedores locais, formando um ecossistema de inovação alinhado à infraestrutura elétrica nacional;
  • Instrumentalização da regulação baseada em dados, com mais agilidade, previsibilidade e resposta adaptativa por parte da Aneel e dos próprios agentes de mercado.

Trata-se de muito mais do que trocar medidores. É sobre reposicionar o setor elétrico como eixo tecnológico da transformação produtiva e urbana brasileira — e isso só se concretiza com visão de longo prazo.

O Desafio da Arquitetura Financeira

Para que esse potencial se cumpra, é urgente definir uma arquitetura de financiamento equilibrada, transparente e orientada a resultados. É preciso:

  • Garantir que os custos não recaiam integralmente sobre o consumidor final de forma regressiva;
  • Prever mecanismos de compensação e incentivo para consumidores de baixa renda;
  • Criar instrumentos de fomento para que empresas nacionais participem da cadeia de fornecimento tecnológico, reduzindo a dependência externa e ampliando os efeitos multiplicadores no PIB;
  • Articular o projeto com políticas de desenvolvimento regional — por exemplo, estimulando a produção de medidores, software e equipamentos em polos industriais de regiões de baixo IDH, como parte de uma política industrial energética distributiva.

A ZPEs tecnológicas e clusters de inovação associados à digitalização energética também poderiam ser ativados como ferramentas de ancoragem produtiva e exportadora, reforçando a integração entre energia, indústria e inovação.

O Caminho é Estratégia, Não Imposição

A digitalização do setor elétrico é inevitável — mas seu sucesso dependerá de como ela será conduzida. Se tratada apenas como despesa, será mal recebida e mal implementada. Se compreendida como investimento sistêmico com retorno prolongado e difuso, poderá posicionar o Brasil como referência em redes inteligentes, resiliência energética e inovação setorial.

Como toda calda longa, os resultados não virão no primeiro ciclo de revisão tarifária, mas moldarão toda uma nova era do setor elétrico. Planejar essa transição com transparência, equilíbrio e visão é o verdadeiro desafio.

Formação Profissional: Um Gargalo Silencioso e Sistêmico

Por trás dos debates regulatórios, das disputas tarifárias e dos investimentos bilionários no setor elétrico brasileiro, existe um fator estrutural e silencioso que pode comprometer todo o projeto de transição energética nacional: a formação profissional qualificada.

De acordo com dados oficiais da CAPES (2024), o país contabiliza 105.713 bolsas de pós-graduação ativas, sendo apenas 8.869 (8,39%) alocadas nas Engenharias — área diretamente ligada à infraestrutura, energia, digitalização e inovação tecnológica. Em contraste, Ciências Humanas (15,64%) e Sociais Aplicadas (12,86%) somam mais de 28% das bolsas, uma alocação legítima para o equilíbrio da pesquisa nacional, mas que evidencia um descompasso grave frente às demandas urgentes da economia real, sobretudo no setor elétrico.

Uma Pirâmide Invertida: Mestrados Teóricos, Pouco Pós-Doutorado Aplicado

Do total de bolsas em Engenharia, a maior parte concentra-se nos níveis de Mestrado (4.312 bolsas) e Doutorado (4.227). Já o Pós-Doutorado — etapa crítica para a produção de ciência de ponta, patentes e transferência tecnológica — representa menos de 4% do total, com apenas 313 bolsas ativas.

Esse desequilíbrio revela uma pirâmide invertida, onde formamos muitos pesquisadores em nível intermediário, mas falhamos em criar pontes entre pesquisa e aplicação, entre universidade e mercado, entre conhecimento e inovação.

Além disso, 91,1% das bolsas são institucionais, voltadas à manutenção dos programas de pós-graduação, enquanto apenas 8,9% são classificadas como estratégicas — aquelas que poderiam ser orientadas a desafios tecnológicos como redes inteligentes, materiais avançados, hidrogênio verde, simulações energéticas, IoT, cibersegurança crítica ou armazenamento de energia.

A Desconexão com a Realidade do Setor

Esse cenário agrava a desconexão entre a formação de capital humano e as demandas da indústria energética, que requer profissionais com alta qualificação técnica, visão multidisciplinar e capacidade de atuar em ambientes complexos e regulados.

Setores críticos como:

  • Integração digital de redes e equipamentos;
  • Projetos de hidrogênio verde e amônia verde;
  • Segurança cibernética em infraestruturas críticas;
  • Eficiência energética em sistemas urbanos e industriais;
  • Desenvolvimento de sensores, algoritmos e softwares para redes autônomas;

… simplesmente não encontram profissionais formados no volume e com a capacitação necessária no país, o que reforça a dependência de consultorias estrangeiras, aumenta o custo dos projetos e reduz a capacidade de internalizar valor agregado na cadeia de energia.

Fuga de Cérebros e Oportunidades Perdidas

Sem uma política clara de retenção de talentos, parte significativa dos profissionais altamente qualificados busca oportunidades no exterior ou migra para áreas desconectadas do setor energético. O Brasil investe na formação de cérebros, mas não oferece caminhos de continuidade para sua aplicação estratégica.

É uma calda longa desperdiçada: forma-se o talento, mas não se cria o ecossistema para que ele floresça e gere frutos duradouros.

O Que Fazer: Reequilibrar e Conectar

Superar esse gargalo silencioso exige ações coordenadas entre MCTI, MEC, CAPES, CNPq, Aneel e setor privado, com foco na formação aplicada e na inovação estratégica. Algumas diretrizes urgentes:

  • Rever a distribuição de bolsas com metas para áreas críticas da infraestrutura e transição energética;
  • Expandir o financiamento para pós-doutorado em inovação tecnológica, especialmente com parcerias universidade-empresa;
  • Criar Programas Nacionais de Especialização Técnica em Energia, conectando institutos federais, SENAI e centros de excelência;
  • Ativar editais PDI com exigência de bolsas vinculadas a projetos reais do setor, como smart grids, baterias, painéis bifaciais, geração híbrida e eficiência energética;
  • Mapear a demanda por profissionais de engenharia elétrica, mecatrônica, computação e materiais para orientar políticas públicas de médio prazo.

Formação como Infraestrutura Invisível

A formação profissional qualificada é a infraestrutura invisível da transição energética brasileira. Sem ela, todo o investimento físico — linhas de transmissão, painéis solares, medidores digitais, turbinas eólicas — se tornará oco, instável e dependente de expertise externa.

Valorizar a formação técnica e científica não é gasto, é estratégia. É plantar a semente da soberania energética e colher os frutos da inovação, da competitividade e do desenvolvimento autônomo. Essa é, talvez, a mais importante calda longa de todas.

Riscos Geopolíticos e Dependência Tecnológica: A Fragilidade Invisível

Em um mundo cada vez mais polarizado e volátil, os riscos geopolíticos deixaram de ser uma variável periférica para se tornarem elemento central da formulação de políticas energéticas. O setor elétrico brasileiro, intensamente dependente de cadeias globais de suprimento — em especial para equipamentos de geração solar, eólica e soluções digitais — encontra-se vulnerável a choques exógenos que ameaçam a continuidade, o custo e a soberania de sua transição energética.

A China como Fornecedora Hegemônica

Cerca de 80% dos painéis fotovoltaicos instalados no Brasil em 2024 foram importados da China, país que também domina a cadeia de fornecimento de inversores, células, módulos bifaciais e matérias-primas críticas como o polisilício. Essa concentração torna o país altamente exposto a políticas industriais e comerciais decididas por um único ator global, cujas decisões não obedecem à lógica de previsibilidade e multilateralismo — mas sim à geopolítica de poder.

Além disso, tarifas norte-americanas e europeias sobre produtos chineses têm redirecionado estoques excedentes para países da América Latina, o que distorce os preços internos, desincentiva a industrialização local e cria uma ilusão de abundância e custo baixo que não se sustenta no longo prazo.

A Nova Guerra dos Chips e os Efeitos no Setor Elétrico

A escassez global de semicondutores e o bloqueio tecnológico entre EUA, China e Taiwan têm gerado atrasos críticos na entrega de medidores inteligentes, módulos de comunicação, sistemas de automação e inversores de frequência. Esses insumos são essenciais para a modernização das redes e para a digitalização do setor.

No Brasil, diversos projetos de smart grid e usinas solares foram postergados ou renegociados em 2024 e 2025 por conta da elevação dos custos ou da falta de componentes. A dependência de poucos fabricantes — e de rotas logísticas concentradas — transforma a cadeia de suprimento em um gargalo estrutural.

A Falta de Indústria Nacional como Calcanhar de Aquiles

A industrialização energética brasileira não acompanhou a velocidade da expansão do mercado. O país carece de:

  • Fábricas de painéis solares e inversores com escala e competitividade internacional;
  • Linhas de produção de baterias estacionárias e sistemas de armazenamento;
  • Plantas de semicondutores e eletrônica de potência;
  • Centros de excelência em softwares de controle, cibersegurança e gestão de energia;
  • Capacidade de integrar verticalmente projetos complexos com padrão internacional.

Essa lacuna limita a geração de empregos de alta qualificação, aumenta o déficit comercial do setor e reduz a “calda longa” dos investimentos em energia renovável, pois o valor agregado permanece no exterior.

Estratégia Industrial e Tecnológica: A Urgência Ignorada

É fundamental entender que a transição energética só será sustentável se for também tecnologicamente soberana. O Brasil precisa definir uma estratégia nacional de fomento à indústria energética e digital, baseada em:

  • Financiamento direcionado à produção nacional de equipamentos e insumos críticos;
  • Política de conteúdo local inteligente, que incentive a transferência de tecnologia e escale a produção sem ineficiência protecionista;
  • Reativação da política industrial com foco em eletroeletrônicos, automação, materiais críticos e semicondutores;
  • Criação de zonas industriais integradas à geração renovável, com isenções fiscais condicionadas à nacionalização da cadeia;
  • Alinhamento entre BNDES, Finep, Embrapii e a nova política energética do MME.

A inclusão da indústria de componentes nos editais de P&D+I da Aneel também pode representar um caminho para criar sinergias entre inovação, mercado e segurança nacional.

Da Dependência à Autonomia: Calda Longa, Não Curta

Reduzir a dependência externa não significa isolar-se — mas sim reconhecer que uma economia baseada em energia e tecnologia precisa de pilares internos robustos para prosperar.

A lógica da calda longa exige que o Brasil pare de enxergar a energia apenas como uma commodity barata para atrair investimentos estrangeiros, e passe a compreendê-la como alavanca para construir capacidades tecnológicas nacionais.

A energia que gera inovação, indústria, empregos e exportação de alto valor agregado é a que vale mais no século XXI. E para isso, é preciso agir agora — com estratégia, coordenação e coragem.

Regulação e Leilões: Agilidade para Viabilizar a Calda Longa

Em um ambiente energético cada vez mais dinâmico, onde inovação, tecnologia e modelos de negócio se reinventam com velocidade exponencial, a regulação brasileira segue operando — em muitos casos — com a lógica da era analógica. Embora haja avanços importantes nos marcos legais, persistem atrasos e incoerências que freiam investimentos estratégicos e comprometem os efeitos de calda longa da transição energética.

Avanços Importantes, Mas Lentos

Nos últimos dois anos, o Brasil aprovou ou avançou em marcos regulatórios fundamentais, como:

  • O Marco Legal do Hidrogênio de Baixo Carbono, estabelecendo diretrizes para certificação, incentivos fiscais e infraestrutura de transporte;
  • A regulamentação inicial para datacenters energointensivos, especialmente em regiões com excedente renovável;
  • A preparação para leilões de capacidade com baterias, previstos para 2025, que visam ampliar a flexibilidade do sistema e reduzir curtailment;
  • A abertura do mercado livre para todos os consumidores a partir de 2026, conforme definido na MP 1300/25.

No entanto, a implementação dessas iniciativas tem sido marcada por atrasos, lacunas normativas e baixa coordenação entre os entes reguladores, como MME, Aneel, EPE e ANP.

Atrasos Custam Desenvolvimento

Leilões de reserva de capacidade foram adiados ou mal desenhados, não atraindo o volume de investimentos esperados. Projetos de usinas a gás natural — fundamentais para o backup do sistema — enfrentam insegurança jurídica, indefinições contratuais e resistência ambiental.

Esses atrasos criam um vácuo de confiabilidade no setor, desorganizam o planejamento das distribuidoras e desestimulam a entrada de novos agentes, especialmente aqueles dispostos a aportar tecnologias inovadoras ou projetos estruturantes de longo prazo.

Abertura do Mercado: Risco ou Oportunidade?

A abertura total do mercado livre a partir de 2026 representa uma das maiores disrupções do setor elétrico nas últimas décadas. Todos os consumidores, inclusive de baixa tensão, poderão contratar diretamente seus fornecedores. Isso pode gerar:

  • Maior competição e sofisticação dos serviços;
  • Diferenciação tarifária com base em perfil e consumo;
  • Empoderamento do consumidor, com novos produtos e soluções personalizadas.

Contudo, se essa abertura não for acompanhada de uma regulação que assegure equilíbrio tarifário, sinalização adequada de preços e segurança jurídica, pode haver:

  • Risco de sobrecarga tarifária para consumidores cativos remanescentes, gerando distorções e desigualdade;
  • Aumento de litigiosidade no setor, com insegurança para investimentos de longo prazo;
  • Perda de valor para distribuidoras sem mecanismos de compensação justa.

Regulação: O Norte da Calda Longa

A regulação deve ser proativa, estável e integradora, com foco em três pilares:

  1. Agilidade com previsibilidade: Não basta regular, é preciso fazê-lo com tempo, escuta qualificada e visão de cadeia produtiva;
  2. Sinalização de longo prazo: Investimentos em energia não se fazem com base em ciclos anuais, mas com horizonte de 10 a 30 anos;
  3. Estabilidade contratual e confiança jurídica: Sem isso, não há inovação nem investimento sustentável.

Mais do que regras, o setor precisa de visão estratégica regulatória, alinhada à transição energética, à digitalização, à descentralização e à descarbonização. O Brasil tem todos os recursos para liderar esse novo paradigma — mas precisa de uma regulação que olhe além do megawatt-hora e enxergue a calda longa que ele pode desencadear.

Por uma Estratégia Nacional de Energia: Plantar Agora para Colher no Longo Prazo

O setor elétrico brasileiro atravessa uma encruzilhada histórica. Por um lado, detém recursos naturais abundantes, uma matriz predominantemente renovável e um mercado interno em expansão. Por outro, enfrenta desafios estruturais, fragilidades institucionais e riscos geopolíticos que comprometem a concretização de seu pleno potencial.

Como demonstrado ao longo deste artigo, a questão central não é apenas técnica ou financeira — é estratégica. O país não pode se dar ao luxo de operar com miopia regulatória, decisões fragmentadas ou agendas desconectadas. A transição energética, a digitalização, a inovação e o desenvolvimento regional só produzirão resultados sustentáveis se forem pensados como uma política de Estado de longo prazo, ancorada em efeitos multiplicadores duradouros.

Essa é a essência da calda longa que precisa guiar as decisões do setor: entender que o verdadeiro valor da energia não está apenas na geração ou na tarifa, mas no conjunto de impactos que ela gera na sociedade, na economia, no território e no futuro do país.

Um Novo Norte Estratégico: Seis Diretrizes para uma Política Energética Sistêmica

  1. Planejamento Climático Integrado
  • Incorporar cenários de escassez hídrica, eventos extremos e variabilidade renovável na expansão da geração;
  • Apostar na hibridização de fontes (ex.: hídrica + solar flutuante) e no armazenamento estratégico (baterias, hidrelétricas reversíveis).
  1. Revisão Estruturada dos Subsídios
  • Reavaliar políticas de incentivos sob a ótica do retorno sistêmico, e não apenas do impacto tarifário de curto prazo;
  • Valorizar os benefícios da geração distribuída e das fontes renováveis sob a lente da calda longa fiscal, social e tecnológica.
  1. Redução da Dependência Tecnológica
  • Estimular a indústria nacional de equipamentos críticos, eletrônica de potência, automação, semicondutores e cibersegurança;
  • Articular uma política industrial energética com fomento à pesquisa, inovação e verticalização produtiva.
  1. Formação Profissional como Infraestrutura Estratégica
  • Reequilibrar a alocação de bolsas de pós-graduação para áreas críticas como Engenharia, Energia, TI e Cibersegurança;
  • Estimular parcerias universidade-empresa e valorizar o pós-doutorado tecnológico como ativo para a inovação aplicada.
  1. Regulação Ágil, Estável e Sistêmica
  • Garantir previsibilidade e segurança jurídica em marcos regulatórios para H₂V, datacenters, baterias e mercado livre;
  • Antecipar os efeitos distributivos da abertura do mercado e proteger a coesão do sistema elétrico nacional.
  1. Integração Territorial e Desenvolvimento Regional
  • Transformar regiões excedentárias em polos de consumo eletrointensivo, com ZPEs voltadas à indústria limpa, datacenters, H₂V e logística verde;
  • Usar a energia como vetor de industrialização descentralizada e de inclusão produtiva.

A Hora é Agora

O Brasil tem tudo para se tornar uma potência energética limpa, resiliente e inovadora. Mas para isso, precisa superar o imediatismo, a fragmentação e a lógica exclusivamente tarifária. A energia deve ser tratada como infraestrutura estratégica e ativo civilizacional, capaz de induzir novos arranjos produtivos, gerar inovação nacional e garantir justiça socioeconômica.

A calda longa da energia não é um luxo — é a condição essencial para que o país não desperdice seu maior ativo: o futuro.

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