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Autor: Eduardo Fagundes

  • Cibersegurança no Setor Elétrico: Uma Agenda de Resiliência Nacional

    Cibersegurança no Setor Elétrico: Uma Agenda de Resiliência Nacional

    Introdução

    A infraestrutura elétrica é uma das colunas vitais de qualquer sociedade moderna — ela sustenta serviços essenciais como saúde, transporte, comunicações, abastecimento e segurança pública. Em uma economia cada vez mais digitalizada, a disponibilidade contínua e confiável de energia depende não apenas de robustez física e redundância técnica, mas também da resiliência cibernética. É nesse contexto que a cibersegurança deixa de ser uma preocupação meramente tecnológica e assume o papel de vetor estratégico, regulatório e institucional para o setor elétrico brasileiro.

    Incidentes recentes, como o apagão na Península Ibérica em abril de 2025 — embora de origem técnica e não cibernética — evidenciam como a falha de um único elo da rede de transmissão pode comprometer milhões de usuários e desorganizar serviços básicos. Mais alarmante ainda são os casos documentados de ataques cibernéticos coordenados contra redes elétricas em zonas de conflito, como na Ucrânia, onde malwares como Industroyer e BlackEnergy demonstraram que softwares maliciosos podem causar danos físicos reais à distância, comprometendo centros de controle, subestações e dados operacionais.

    No Brasil, embora haja avanços pontuais em modernização tecnológica e adoção de sistemas de automação, o cenário ainda é marcado por baixa integração entre TI e OT, carência de políticas cibernéticas setoriais, ausência de requisitos regulatórios específicos para ambientes industriais e uma maturidade desigual entre os agentes do setor. Nesse contexto, as vulnerabilidades se acumulam e a resposta institucional ainda é fragmentada.

    Este artigo tem como objetivo apresentar uma análise aprofundada sobre o estado da cibersegurança no setor elétrico, com base em evidências do relatório global da Fortinet (2025), frameworks técnicos do NIST e do modelo C2M2, além de experiências nacionais como o Exercício Guardião Cibernético. A proposta é consolidar um diagnóstico qualificado e apresentar recomendações práticas e viáveis para fortalecer a resiliência digital do sistema elétrico brasileiro — com foco em governança, conformidade técnica, simulação, capacitação e regulação.

    Mais do que proteger dados, a cibersegurança no setor elétrico significa proteger a energia que move o país — e, com ela, a confiança da sociedade e a estabilidade de toda a cadeia econômica.

    Panorama Atual: Vulnerabilidades em Alta Tensão

    O setor de energia global encontra-se em um ponto de inflexão crítico no que se refere à segurança cibernética. A crescente digitalização das infraestruturas operacionais, aliada à interconexão entre sistemas legados e modernos, ampliou significativamente a superfície de ataque das empresas de energia elétrica, petróleo e gás. Uma pesquisa conduzida pela Fortinet entre fevereiro e março de 2025, com 300 tomadores de decisão de diferentes regiões, revela um cenário preocupante: a frequência de incidentes cibernéticos aumentou, os impactos são profundos e a maturidade das defesas, ainda insuficiente.

    De acordo com o levantamento, 53% das empresas sofreram entre 1 e 5 incidentes cibernéticos nos 12 meses anteriores à pesquisa, enquanto 25% relataram de 6 a mais de 15 ataques. Apenas 7% disseram não ter registrado nenhum incidente no período. Os efeitos mais mencionados incluem queda de produtividade, prejuízos financeiros e aumento do risco reputacional e jurídico, elementos que colocam em xeque a continuidade dos serviços prestados por concessionárias e operadoras de infraestrutura crítica.

    O relatório também chama atenção para a percepção crescente de risco. Entre os profissionais do setor de petróleo e gás, 68% afirmaram que sua exposição cibernética aumentou no último ano, em contraste com 41% no setor elétrico — um sinal de alerta que evidencia a vulnerabilidade do ecossistema energético como um todo, especialmente em cadeias altamente digitalizadas e distribuídas.

    Apesar da frequência elevada de incidentes e do reconhecimento do risco, a maturidade cibernética permanece em níveis preocupantemente baixos. Apenas 31% das empresas afirmam ter uma estratégia de cibersegurança com capacidade preditiva plenamente operacionalizada. A maioria segue atuando de forma reativa ou com iniciativas isoladas de monitoramento e resposta, sem uma visão integrada de gestão de riscos. Além disso, mais de um terço das organizações não possui um plano de longo prazo para segurança cibernética — lacuna crítica para um setor que depende da continuidade, previsibilidade e confiança institucional.

    Entre os principais entraves identificados no relatório estão: a complexidade tecnológica das redes OT/TI, a baixa visibilidade sobre os ativos conectados, a dificuldade de integração entre áreas operacionais e de tecnologia, e a escassez de profissionais especializados em segurança cibernética aplicada à infraestrutura crítica.

    Diante desse panorama, a Fortinet recomenda a adoção de arquiteturas unificadas de segurança cibernética, com foco em segmentação, automação, monitoramento contínuo e visibilidade OT/IT. Também reforça a necessidade urgente de investimento em capacitação de equipes, planejamento estratégico e alinhamento a frameworks consolidados, como o NIST Cybersecurity Framework (CSF), a ISO/IEC 27019 e os modelos de maturidade como o C2M2.

    No contexto brasileiro, esse diagnóstico global ressoa com força: muitas empresas de energia seguem operando com estruturas mínimas de cibersegurança, especialmente em ambientes industriais. A ausência de regulação específica, somada à falta de governança integrada e de simulações práticas, mantém o setor em uma posição vulnerável frente a ameaças que evoluem rapidamente, tanto em sofisticação quanto em impacto potencial.

    Apagões e Conflitos: Lições Reais sobre a Fragilidade Energética

    A resiliência do setor elétrico não depende apenas de sua capacidade técnica, mas também de sua preparação para cenários de falha — acidentais ou deliberadas. Eventos recentes, tanto de origem técnica quanto cibernética, oferecem aprendizados cruciais para o Brasil e demais países em desenvolvimento energético e digital.

    O caso ibérico: um apagão técnico com consequências sistêmicas

    Em 28 de abril de 2025, às 12h33 (horário local), um apagão de grandes proporções atingiu simultaneamente a Espanha e Portugal, deixando a maior parte da Península Ibérica sem energia elétrica por cerca de 10 horas. A falha, de natureza técnica e não cibernética, afetou milhões de residências, empresas, hospitais e sistemas de transporte. Algumas regiões, como Andorra e o País Basco francês, também sofreram cortes momentâneos de segundos a minutos, evidenciando o efeito de propagação de distúrbios em redes altamente interconectadas.

    Embora não tenha sido causado por um ataque cibernético, o episódio expôs a extrema interdependência e fragilidade da malha elétrica moderna, demonstrando como uma única falha física pode escalar rapidamente e impactar vários países. O evento serviu de alerta: se uma falha técnica já causa esse tipo de impacto, o que dizer de ataques cibernéticos intencionais, invisíveis e simultâneos?

    A guerra invisível: ataques cibernéticos à infraestrutura ucraniana

    Entre 2015 e 2022, a Ucrânia tornou-se laboratório real de ataques cibernéticos contra sistemas elétricos, protagonizados por grupos como Sandworm (ligado ao GRU russo) e Industroyer, um dos malwares industriais mais perigosos já identificados.

    • Em dezembro de 2015, um ataque coordenado comprometeu três empresas de energia, causando apagões que afetaram mais de 225 mil pessoas.
    • Os atacantes usaram spear phishing para entrar nas redes corporativas, moveram-se lateralmente até os sistemas SCADA, e reprogramaram disjuntores — desligando fisicamente o fornecimento de energia remotamente.
    • Em 2016, o malware Industroyer (também conhecido como CrashOverride) mostrou-se capaz de interagir com protocolos industriais padronizados, tornando-se uma ameaça replicável a outros países com redes similares.
    • Em 2022, durante a invasão russa, a Ucrânia voltou a ser alvo de ataques cibernéticos massivos, com tentativas de derrubar redes críticas e interromper serviços básicos.

    Esses eventos confirmaram que softwares maliciosos voltados para infraestrutura crítica não só existem, mas já foram usados com sucesso, causando danos físicos reais e colapsos regionais — e demonstrando que a fronteira entre guerra digital e guerra convencional deixou de existir.

    Aprendizados essenciais para o Brasil

    • Redes altamente conectadas e automatizadas trazem eficiência, mas exigem segurança proporcional à sua complexidade;
    • A falta de segmentação entre redes OT e TI — comum em concessionárias brasileiras — representa um risco crítico;
    • É urgente adotar uma postura de resiliência cibernética proativa, com testes de penetração, simulações de ataque e integração entre engenharia, TI e gestão.

    Fundamentos e Referenciais Técnicos

    NIST SP 800-37 Rev. 2 – Ciclo de Vida da Segurança

    A norma NIST Special Publication 800-37 Revision 2, publicada pelo Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia dos EUA (NIST), define o Risk Management Framework (RMF) — um modelo abrangente para gestão de riscos em sistemas de informação, especialmente aqueles que operam em ambientes de missão crítica, como os sistemas de automação e controle do setor elétrico.

    O RMF vai além de um checklist técnico: ele estabelece um ciclo de vida completo da segurança, promovendo a integração entre engenharia, governança, operação e compliance. É totalmente compatível com os frameworks do NIST Cybersecurity Framework (CSF), da ISO/IEC 27001 e do modelo C2M2 para energia.

    As 7 etapas do RMF aplicadas ao contexto energético

    1. Preparar (Prepare)
    • Define o contexto organizacional da segurança;
    • Estabelece papéis, responsabilidades, políticas e recursos;
    • No setor elétrico, isso inclui alinhar a TI com a engenharia de proteção, operação e manutenção, e nomear um gestor de riscos ou comitê de cibersegurança com autoridade para tomada de decisão.
    1. Categorizar (Categorize)
    • Classifica os sistemas segundo o impacto potencial à confidencialidade, integridade e disponibilidade (CIA);
    • Em uma concessionária, por exemplo, um sistema de telemetria pode ser classificado como de alto impacto se sua falha comprometer o despacho ou a proteção da rede.
    1. Selecionar controles (Select)
    • Baseia-se na biblioteca de controles do NIST SP 800-53, adaptada para o nível de impacto identificado;
    • Inclui controles técnicos (como criptografia e firewalls), administrativos (políticas e auditorias) e físicos (acesso a salas técnicas e subestações).
    1. Implementar (Implement)
    • Os controles selecionados são implementados tecnicamente e documentados;
    • Isso inclui, por exemplo, a segmentação de redes OT/IT, uso de autenticação multifator nos sistemas SCADA e registro centralizado de eventos.
    1. Avaliar (Assess)
    • Verifica se os controles estão operando de forma eficaz e se os riscos residuais são aceitáveis;
    • Pode envolver testes de penetração, simulações baseadas em MITRE ATT&CK for ICS e auditorias cruzadas com consultores especializados.
    1. Autorizar (Authorize)
    • A alta administração ou autoridade designada formaliza a autorização para operação (ATO) do sistema;
    • No contexto brasileiro, poderia envolver o alinhamento com ANEEL, Operador Nacional do Sistema (ONS) ou diretrizes da Agência Nacional de Cibersegurança, caso instituída.
    1. Monitorar (Monitor)
    • Realiza o monitoramento contínuo dos riscos, ameaças, alterações na configuração e eficácia dos controles;
    • Envolve a integração de sistemas como SIEM, SOC e alertas em tempo real — além da revisão periódica dos planos de continuidade e resposta a incidentes.

    Por que o RMF é importante para o setor elétrico?

    • Flexível: Pode ser aplicado a sistemas de geração, transmissão, distribuição, DERs e até ambientes híbridos TI+OT.
    • Orientado a risco real: Permite que decisões técnicas sejam embasadas em impacto operacional e estratégico.
    • Compliant: Alinha-se a normas internacionais e facilita o atendimento a reguladores, parceiros e seguradoras.
    • Evolutivo: Funciona como base para maturidade crescente — do nível reativo ao preditivo.

    C2M2 – Maturidade Específica para Energia

    Desenvolvido pelo Departamento de Energia dos Estados Unidos (U.S. DoE), o Cybersecurity Capability Maturity Model (C2M2) é um modelo estruturado de avaliação e evolução da maturidade cibernética voltado especialmente para infraestruturas críticas, como energia elétrica, óleo e gás, telecomunicações e água.

    O C2M2 é amplamente adotado por utilities ao redor do mundo como ferramenta prática de autodiagnóstico, permitindo às organizações:

    • Mapear lacunas nos controles de segurança;
    • Priorizar investimentos conforme os ativos mais críticos;
    • Medir avanços ao longo do tempo;
    • Comunicar riscos e progresso à alta gestão e a reguladores.

    Estrutura do C2M2

    O modelo é dividido em 10 domínios de práticas, cobrindo aspectos organizacionais, operacionais e técnicos:

    1. Gestão de Ativos Cibernéticos
    2. Gestão de Riscos Cibernéticos
    3. Gestão de Identidades e Acessos
    4. Gestão de Conexões e Perímetro
    5. Detecção e Monitoramento de Anomalias
    6. Resposta a Incidentes
    7. Recuperação Operacional
    8. Governança e Conformidade
    9. Engajamento com Partes Interessadas
    10. Capacitação e Cultura de Segurança

    Cada domínio é avaliado em três níveis de maturidade, com indicadores claros e objetivos de progresso. Por exemplo:

    • Nível 1 – Inicial/Ad-hoc: Processos informais ou inexistentes.
    • Nível 2 – Implementado: Práticas definidas e aplicadas, mas com cobertura parcial.
    • Nível 3 – Gerenciado e Sustentável: Práticas institucionalizadas, auditáveis e alinhadas ao negócio.

    Aplicação no Setor Elétrico

    O C2M2 conta com versões específicas para eletricidade (ES-C2M2) e óleo e gás (ONG-C2M2), adaptadas à realidade de sistemas SCADA, subestações, centros de controle e plantas híbridas OT/IT.

    Exemplos de uso no setor:

    • Empresas de geração e transmissão podem usar o C2M2 para priorizar melhorias nos gateways OT, sistemas de autenticação, firewalls industriais e SOCs;
    • Concessionárias de distribuição podem identificar fraquezas na gestão de ativos e resposta a incidentes, frequentemente negligenciadas em redes de média e baixa tensão;
    • Startups e integradoras do setor energético podem aplicar o modelo em suas soluções para garantir segurança embarcada e aumentar a confiança junto a clientes regulados.

    Integração com frameworks globais

    O C2M2 se integra perfeitamente ao NIST CSF, sendo compatível com o ciclo do RMF (NIST SP 800-37) e com normas como:

    • NIST SP 800-53 – Biblioteca de controles;
    • ISA/IEC 62443 – Segurança para sistemas de automação industrial;
    • ISO/IEC 27001 e 27019 – Segurança da informação e controle industrial.

    Essa interoperabilidade torna o modelo valioso para organizações que precisam conformidade com múltiplos requisitos regulatórios e de governança.

    Normas ABNT e Regulação da ANEEL

    Apesar de o C2M2 ser uma ferramenta poderosa, sua adoção no Brasil ainda é voluntária e pouco incentivada por regulamentações locais. O que temos hoje:

    • ABNT ISO/IEC 27001: Norma base de gestão da segurança da informação, reconhecida internacionalmente;
    • ABNT ISO/IEC 27019: Complementa a 27001 com requisitos específicos para sistemas de controle industrial em energia, como subestações, redes de medição, automação e despacho;
    • PRODIST (Módulo 3) da ANEEL: Estabelece diretrizes para continuidade, qualidade e confiabilidade no fornecimento de energia elétrica, porém ainda não especifica requisitos técnicos de segurança cibernética para redes OT ou sistemas críticos.

    Esse cenário regulatório revela um vácuo normativo importante no Brasil, onde a segurança digital em infraestrutura energética ainda não é exigida de forma explícita, embora seja reconhecida como fundamental. A ausência de padrões obrigatórios compromete a homogeneidade da maturidade cibernética entre agentes do setor.

    Capacitação Nacional: O Exercício Guardião Cibernético

    O Exercício Guardião Cibernético (EGC) é atualmente a maior simulação brasileira de ciberataques a infraestruturas críticas, promovido pelo Ministério da Defesa e coordenado pelo Comando de Defesa Cibernética (ComDCiber), órgão subordinado ao Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas. Com edições anuais, o EGC tem como objetivo capacitar, avaliar e integrar instituições públicas e privadas para atuar de forma coordenada frente a cenários complexos de ameaças cibernéticas, com foco especial em setores essenciais como energia, finanças, telecomunicações, aviação civil, biossegurança, água, defesa e governo digital.

    A edição mais recente, o EGC 6.0, foi realizada entre os dias 14 e 18 de outubro de 2024, simultaneamente em Brasília e São Paulo, com simulações realistas, ambientes virtuais de ataque e defesa, e gabinetes de crise formados por especialistas civis e militares. Reuniu 140 organizações e mais de 700 participantes, superando a escala da edição anterior. Participaram representantes das Forças Armadas, GSI, ANEEL, Banco Central, ONS, empresas públicas e privadas, universidades, e especialistas de mais de 30 países. A dimensão internacional do exercício foi ampliada com o envolvimento direto de delegações da OTAN, da Guarda Nacional de Nova York e do Fórum Ibero-Americano de Defesa Cibernética. Também houve integração com o Locked Shields 2024, realizado em abril na Europa, com participação ativa de militares brasileiros.

    O EGC 6.0 focou em simulações envolvendo ataques avançados a sistemas SCADA, interrupções de fornecimento de energia, sabotagem de protocolos industriais como o IEC 60870-5-104 e manipulação de dados em redes OT. Casos como os ciberataques à Ucrânia e o apagão de abril de 2025 na Península Ibérica serviram de base para os cenários propostos, ainda que o evento ibérico não tenha sido confirmado como ataque digital. Os exercícios também validaram o Plano Nacional de Tratamento de Incidentes e fortaleceram a Rede Federal de Gestão de Incidentes Cibernéticos, sob coordenação do GSI/PR.

    O ComDCiber lidera a condução estratégica das operações cibernéticas no Brasil, enquanto a Escola Nacional de Defesa Cibernética (ENaDCiber) atua na formação de civis e militares, promovendo cursos e treinamentos voltados à proteção de ativos críticos. Para o setor elétrico, a importância do EGC é clara: ele oferece um ambiente seguro para testar respostas diante de ameaças cibernéticas reais, envolvendo concessionárias de geração, transmissão e distribuição, integradores de tecnologia e órgãos reguladores. O exercício reforça a necessidade de articulação entre defesa, operação, regulação e inovação, consolidando uma cultura nacional de prontidão frente aos riscos digitais que ameaçam a infraestrutura energética do país.

    Recomendações Estratégicas para o Setor Elétrico Brasileiro

    O aumento da superfície de ataque digital no setor elétrico, associado à criticidade das operações OT e à crescente sofisticação das ameaças cibernéticas, exige do Brasil uma resposta sistêmica, coordenada e adaptada à realidade nacional. Esta seção apresenta um conjunto de recomendações estruturadas em cinco eixos estratégicos — governança, maturidade, arquitetura técnica, capacitação e regulação — que, em conjunto, oferecem um caminho factível para o fortalecimento da resiliência cibernética nas empresas do setor elétrico brasileiro.

    Governança e Planejamento

    A construção de uma postura cibernética eficaz começa com uma estrutura sólida de governança. Muitas concessionárias e agentes do setor ainda tratam a cibersegurança como um apêndice da TI corporativa, quando na verdade ela deve ser considerada um eixo estratégico da operação.

    Recomenda-se:

    • A criação de comitês de cibersegurança permanentes, com participação ativa das áreas de TI, engenharia, operação, jurídico e gestão de riscos;
    • A nomeação de um responsável formal pela segurança cibernética (CISO ou equivalente) com autoridade para decisões orçamentárias, técnicas e de gestão de crise;
    • O desenvolvimento e homologação de Planos de Resposta a Incidentes (PRI) específicos para ambientes OT/SCADA, com aprovação e respaldo da alta administração.

    A governança deve garantir que a segurança cibernética seja integrada à estratégia corporativa e ao planejamento regulatório.

    Maturidade e Conformidade

    A ausência de métricas claras e referenciais maduros dificulta a evolução das empresas. Por isso, é fundamental adotar modelos validados internacionalmente que sirvam como bússola para o desenvolvimento técnico e institucional.

    São recomendadas as seguintes ações:

    • A adoção progressiva do modelo C2M2 (Cybersecurity Capability Maturity Model) como ferramenta de autodiagnóstico, planejamento e comunicação de progresso;
    • A implementação do Risk Management Framework (RMF) do NIST, especialmente para sistemas críticos e centros de operação, assegurando um ciclo contínuo de identificação, mitigação e monitoramento de riscos;
    • O alinhamento aos controles da ISO/IEC 27019, norma específica para segurança cibernética em sistemas de controle industrial no setor de energia, promovendo padronização e reconhecimento institucional.

    Esses modelos são complementares, escaláveis e podem ser integrados aos processos existentes com o apoio de consultorias especializadas e órgãos reguladores.

    Arquitetura Técnica de Proteção

    A proteção eficaz de ativos industriais e corporativos depende de uma arquitetura técnica robusta, segmentada e monitorada continuamente. Muitos ataques recentes, inclusive os observados na Ucrânia e simulações do EGC, exploraram falhas justamente nessa camada.

    Para isso, recomenda-se:

    • A segmentação lógica e física entre redes OT e TI, com firewalls industriais e políticas de tráfego rigorosas entre domínios;
    • A implantação de soluções de detecção e prevenção de intrusões (IDS/IPS) voltadas para protocolos industriais, autenticação multifator em sistemas críticos, e backups segregados com testes de restauração periódicos;
    • A estruturação de um SOC (Security Operations Center) próprio ou terceirizado, com ferramentas de SIEM adaptadas para visibilidade em redes OT, incluindo alertas de integridade, comportamento anômalo e tentativas de acesso não autorizado.

    Essa arquitetura deve ser tratada como um ativo estratégico, com evolução contínua e alinhamento ao ciclo de vida dos sistemas industriais.

    Simulação, Teste e Capacitação

    Investir em tecnologia sem treinar pessoas é ineficaz. A capacidade de resposta a incidentes depende, acima de tudo, da preparação prática e colaborativa das equipes. O Brasil já dispõe de estruturas como o Exercício Guardião Cibernético (EGC), que devem ser integradas à rotina empresarial.

    Sugerem-se as seguintes ações:

    • A realização periódica de Tabletop Exercises, simulando ataques cibernéticos com participação multidisciplinar (TI, engenharia, jurídico, comunicação, diretoria);
    • A execução de simulações técnicas com base no MITRE ATT&CK for ICS, utilizando ambientes controlados ou digital twins para avaliar defesas, tempo de resposta e eficácia de planos de contingência;
    • A criação de gabinetes internos de crise cibernética, com protocolos claros de comunicação, tomada de decisão e relacionamento com reguladores e imprensa.

    Essas práticas ajudam a reduzir o tempo de resposta, fortalecem a confiança da equipe e aumentam a resiliência institucional.

    Cooperação Institucional e Regulação

    A cibersegurança no setor elétrico não é responsabilidade exclusiva de cada empresa — ela deve ser trabalhada como um esforço sistêmico e regulatório. A atuação coordenada entre agentes do setor, órgãos de defesa e reguladores é fundamental para garantir uniformidade de práticas e fortalecimento coletivo da cadeia energética.

    Recomenda-se:

    • Apoiar a ANEEL na atualização do PRODIST e de resoluções normativas, incluindo exigências mínimas de segurança cibernética para redes OT, centros de controle e sistemas de medição;
    • Integrar-se à ENaDCiber (Escola Nacional de Defesa Cibernética) e ao ComDCiber, tanto para treinamentos quanto para estruturação de programas setoriais de capacitação e resposta;
    • Estabelecer fóruns regionais e interestaduais de cibersegurança no setor elétrico, com apoio de associações como Abradee, Abrage, Apine e ONS, promovendo o compartilhamento de boas práticas, inteligência de ameaças e planos de resposta coordenada.

    A cibersegurança deve ser tratada como parte da infraestrutura regulada, com incentivos à conformidade, auditoria técnica e comunicação clara com a sociedade.

    Conclusão: Cibersegurança como Infraestrutura Crítica

    A cibersegurança no setor elétrico deixou de ser uma preocupação periférica para se tornar um pressuposto de continuidade operacional, confiabilidade regulatória e soberania energética. Os dados revelados pelo relatório da Fortinet, somados às experiências recentes de apagões e ataques em zonas de conflito, mostram que os riscos não são mais hipotéticos — são frequentes, direcionados e com impacto sistêmico.

    Em um cenário marcado por digitalização acelerada, integração de DERs, automação de subestações e operação remota, a superfície de ataque cresce de forma exponencial. Isso exige que o setor elétrico brasileiro abandone a postura reativa e adote uma estratégia estruturada de resiliência digital, alinhada a frameworks técnicos, exercícios práticos e articulação institucional.

    Empresas que incorporam modelos como o NIST RMF e o C2M2, que adotam normas como a ISO/IEC 27019, e que se engajam ativamente em iniciativas nacionais como o Exercício Guardião Cibernético, não apenas aumentam sua proteção contra ameaças — elas constroem confiança perante acionistas, reguladores, consumidores e parceiros internacionais.

    A cibersegurança deve ser reconhecida como um componente indissociável da infraestrutura crítica nacional. Investir em maturidade cibernética é garantir a continuidade do fornecimento de energia, a integridade dos dados operacionais e a estabilidade institucional do setor. É assegurar que a transição energética em curso no Brasil ocorra com segurança, confiabilidade e liderança.

    O futuro da energia será cada vez mais digital — e os líderes desse futuro serão aqueles que souberem proteger o presente.

  • O Futuro da Energia Renovável no Brasil: Integrando Hidrogênio Verde, BESS e Datacenters

    O Futuro da Energia Renovável no Brasil: Integrando Hidrogênio Verde, BESS e Datacenters

    O setor elétrico brasileiro enfrenta desafios significativos, como perdas técnicas e não técnicas, gargalos na transmissão e a necessidade de integrar excedentes de fontes renováveis, como os observados no parque eólico Pedra Pintada, na Bahia. Com a ascensão de tecnologias como hidrogênio verde, sistemas de armazenamento por baterias (BESS) e datacenters, e novos marcos legais, o Brasil tem a oportunidade de transformar esses desafios em soluções sustentáveis. Este artigo analisa como essas inovações podem otimizar o sistema energético, com base em dados recentes e tendências regulatórias.

    Desafios do Parque Eólico Pedra Pintada e Perdas no Setor Elétrico

    Inaugurado pela Enel Green Power em junho de 2025, o parque eólico Pedra Pintada, em Umburanas e Ourolândia, Bahia, possui 194 MW de capacidade instalada, gerando energia suficiente para cerca de 435 mil residências. No entanto, enfrenta cortes de geração (curtailment) de aproximadamente 11%, devido à baixa demanda local, especialmente em fins de semana, conforme decisão do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). Esse problema é agravado pela distância entre regiões de geração renovável, como a Bahia, e centros de consumo, como o Sudeste.

    O relatório da ANEEL (2025/2024) destaca que as perdas totais no setor elétrico atingiram cerca de 14% da energia injetada em 2024, sendo 7,4% (44,6 TWh) de perdas técnicas na distribuição e 2,1% na transmissão, com custos financeiros de aproximadamente R$ 11,2 bilhões. As perdas não técnicas, associadas a furtos e fraudes, somaram 6,6% (40,2 TWh), custando R$ 10,3 bilhões. Essas perdas evidenciam a ineficiência do sistema e a necessidade de soluções locais para reduzir a dependência de longas linhas de transmissão, que contribuem para dissipação de energia.

    Soluções Locais com BESS: Viabilidade e Aplicações

    Os Sistemas de Armazenamento de Energia por Baterias (BESS) são uma alternativa para aproveitar excedentes, como os de Pedra Pintada. A Brasol anunciou R$ 150 milhões em investimentos para 2025 no modelo “BESS as a Service”, voltado a clientes comerciais, industriais e agropecuários. Esse sistema pode reduzir custos de energia em até 20%, armazenando energia em períodos de baixa demanda para uso em picos, minimizando perdas técnicas e aliviando a rede.

    Com custos globais de BESS estimados em cerca de US$ 300/kWh (aproximadamente R$ 1,5 milhão/MWh, ajustado por câmbio e impostos), uma instalação de 50 MWh demandaria cerca de R$ 75 milhões. Em microrredes agropecuárias na Bahia, onde a demanda por irrigação é significativa, o BESS pode substituir geradores a diesel, reduzindo custos e emissões. A viabilidade, porém, depende de avanços regulatórios. A Consulta Pública nº 39/2023 da ANEEL, encerrada em janeiro de 2024, discutiu a inclusão de BESS no setor elétrico, mas um marco regulatório definitivo ainda está em desenvolvimento, limitando aplicações em larga escala e a remuneração de serviços ancilares.

    Hidrogênio Verde: Aproveitando Excedentes Renováveis

    O hidrogênio verde, produzido por eletrólise com energia renovável, oferece uma solução para converter excedentes em produtos de alto valor. A usina piloto da Petrobras no Vale do Açu, Rio Grande do Norte, com investimento de R$ 90 milhões, utilizará energia solar para eletrólise, com operação prevista para 2026. Esse projeto valida tecnologias que podem reduzir custos de produção, atualmente estimados em US$ 3,5–5/kg no Brasil, para níveis mais competitivos, próximos a US$ 2/kg, com escala e incentivos.

    Em Pedra Pintada, o excedente de geração (estimado em 98,3 GWh/ano) poderia ser convertido em hidrogênio verde, gerando milhares de toneladas anuais para aplicações industriais, como fertilizantes ou combustíveis. Apesar do alto custo inicial de plantas de escala média (centenas de milhões de reais), o aprendizado do piloto da Petrobras pode viabilizar projetos em regiões ricas em renováveis, como a Bahia, onde a Enel opera 1,9 GW de capacidade.

    Marcos Legais: Impulsionando Hidrogênio Verde e Datacenters

    A Lei nº 14.990/2024, sancionada em 2024, instituiu o Programa de Estímulo à Cadeia Produtiva do Hidrogênio Verde (PHBC) e diretrizes para o setor, complementada pela Lei nº 14.948/2024, que criou o Regime Especial de Incentivos para o Hidrogênio de Baixa Emissão de Carbono (Rehidro). O Rehidro oferece isenções de PIS/Cofins, redução de até 50% nas tarifas de transmissão e distribuição (TUSD/TUST) e isenção de encargos como a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) por 10 anos. O setor, porém, aguarda decretos e portarias que detalhem a implementação, como critérios de certificação e comercialização.

    A Política Nacional de Datacenters, anunciada em maio de 2025, prevê desonerações de PIS/Cofins, IPI e impostos de importação por cinco anos, com foco em sustentabilidade e uso de energia renovável. Datacenters podem absorver excedentes renováveis localmente, reduzindo perdas técnicas e complementando BESS e hidrogênio verde. Contudo, gargalos na capacidade do Sistema Interligado Nacional (SIN) limitam a implementação no curto prazo.

    Desafios Regulatórios e Cancelamento do Leilão de 2025

    A viabilidade de BESS e hidrogênio verde depende de avanços regulatórios. A ausência de um marco definitivo para BESS, apesar das discussões na Consulta Pública nº 39/2023, restringe sua adoção em larga escala. Para o hidrogênio verde, regulamentações complementares ao Rehidro são esperadas para clarificar incentivos e comercialização.

    Um obstáculo significativo foi o cancelamento do Leilão de Reserva de Capacidade (LRCAP) na forma de potência em 2025, anunciado pelo Ministério de Minas e Energia (MME) em abril de 2025, devido a disputas judiciais e questionamentos sobre a modelagem em um contexto de sobrecontratação. A Consulta Pública nº 010/2025 da ANEEL, encerrada em abril de 2025, buscou revisar as diretrizes do LRCAP, mas até 17 de junho de 2025, um novo edital não foi publicado, mantendo incertezas sobre a contratação de capacidade, incluindo BESS.

    Impactos Sistêmicos e Soluções Integradas

    A integração de BESS, hidrogênio verde e datacenters pode otimizar o setor elétrico brasileiro. BESS e hidrogênio verde permitem aproveitar excedentes, reduzindo perdas técnicas (7,4% na distribuição) e cortes de geração, como em Pedra Pintada. Datacenters, com alta demanda energética, podem consumir energia renovável localmente, aliviando o SIN. Investimentos em transmissão, como os R$ 21,7 bilhões contratados em 2024 para 4.471 km de linhas, são essenciais, mas demandam tempo, reforçando a necessidade de soluções locais.

    A CDE, com orçamento de R$ 40,6 bilhões para 2025, pode financiar essas tecnologias, mas aumenta o risco de encarecimento das tarifas, especialmente com perdas não técnicas (6,6%) sobrecarregando o sistema. A regulação por incentivos da ANEEL, que limita o repasse de perdas não técnicas às tarifas, é crucial para liberar recursos para inovação.

    Conclusão: Rumo a uma Matriz Energética Sustentável

    O Brasil está em um momento decisivo para sua transição energética. Projetos como o parque eólico Pedra Pintada, a usina piloto de hidrogênio verde da Petrobras e a Política Nacional de Datacenters sinalizam um futuro promissor, mas enfrentam desafios de perdas, infraestrutura e regulação. Soluções integradas, como BESS e hidrogênio verde, podem maximizar excedentes renováveis, enquanto datacenters impulsionam a demanda local. A superação de gargalos regulatórios, incluindo a retomada de leilões de capacidade, será essencial para viabilizar investimentos e posicionar o Brasil como líder em energia sustentável. A colaboração entre governo, setor privado e reguladores é fundamental para equilibrar inovação, sustentabilidade e acessibilidade energética.

  • Reatores Modulares Pequenos (SMRs): Oportunidade Estratégica para o Brasil

    Reatores Modulares Pequenos (SMRs): Oportunidade Estratégica para o Brasil

    O avanço dos reatores nucleares modulares pequenos (SMRs) está redesenhando o cenário da energia global. Em 2025, o Reino Unido escolheu a Rolls-Royce como fornecedora preferencial de seus primeiros SMRs, apostando na soberania tecnológica, geração de empregos qualificados e segurança energética. Essa iniciativa exemplifica um modelo de transição energética com forte lastro industrial e estratégico — um contraste com a posição do Brasil, que ainda estuda o tema por meio de parceria com a estatal russa Rosatom.

    Os SMRs são reatores compactos, seguros e produzidos em escala industrial. Operam de forma contínua, com alta confiabilidade e baixa emissão de carbono, sendo ideais para complementar fontes intermitentes como solar e eólica. Além disso, sua instalação descentralizada permite o atendimento de regiões remotas ou estratégicas, com menor uso de solo e maior resiliência do sistema elétrico.

    O Brasil possui ativos institucionais e técnicos relevantes no setor nuclear (CNEN, IPEN, Eletronuclear, Marinha), além de experiência industrial consolidada. No entanto, a dependência tecnológica externa permanece um entrave. O atual modelo de P&D da ANEEL também passa por reformulação, e há preocupação de que o novo formato restrinja a pesquisa estruturante e afaste startups e universidades. A fuga de cérebros é um sintoma dessa desconexão entre potencial científico e estratégia nacional.

    Os SMRs oferecem uma rara oportunidade de articular política industrial, capacitação técnica, inclusão energética e protagonismo geopolítico. Para isso, o Brasil precisa ir além da importação de tecnologia. É necessário estruturar uma política de inovação energética que valorize a pesquisa local, forme talentos, mobilize cadeias produtivas e estabeleça parcerias tecnológicas diversificadas e estratégicas.

    Exemplos como o projeto argentino CAREM — que prevê uso de SMRs na Patagônia para alimentar datacenters — demonstram a viabilidade e o valor de projetos descentralizados com aplicações críticas em territórios com infraestrutura limitada. O Brasil tem regiões similares que podem se beneficiar desse modelo, contribuindo para o desenvolvimento regional e a segurança nacional.

    Por fim, o texto reforça que transição energética e autonomia tecnológica são inseparáveis. Países que dominam as tecnologias da energia do futuro não apenas abastecem seus sistemas com eficiência — eles lideram cadeias de valor, exportam soluções e moldam regras internacionais. O Brasil precisa decidir se será protagonista nesse novo ciclo ou se continuará como consumidor de soluções externas.

    O caminho está aberto. Os SMRs são uma porta. Cabe ao Brasil atravessá-la com ambição, inteligência e estratégia.

    Reatores Modulares: uma escolha estratégica do Reino Unido

    Em 10 de junho de 2025, o Reino Unido anunciou oficialmente a seleção da Rolls-Royce SMR como fornecedora preferencial para o desenvolvimento dos primeiros reatores nucleares modulares pequenos (Small Modular Reactors – SMRs) do país. A decisão marca um ponto de inflexão na política energética britânica e revela uma estratégia clara de alinhar segurança energética, industrialização local e liderança tecnológica em transição energética.

    Diferentemente de iniciativas pautadas apenas pela busca de menor custo, a escolha da Rolls-Royce, empresa com profundo enraizamento no setor industrial britânico, reforça o interesse do governo em criar valor nacional ao longo de toda a cadeia produtiva. Ao investir em uma empresa britânica com expertise comprovada em engenharia nuclear, o Reino Unido sinaliza seu compromisso com o fortalecimento da sua capacidade soberana de geração e gestão de energia estratégica.

    O programa, conduzido pela agência pública Great British Energy – Nuclear, prevê um investimento estimado de £17 bilhões, com potencial para gerar milhares de empregos qualificados em áreas como engenharia, construção civil, cadeia de suprimentos e operação de plantas nucleares. Isso posiciona os SMRs não apenas como uma resposta tecnológica às metas de descarbonização, mas como uma alavanca de crescimento industrial e geração de renda qualificada em regiões britânicas fora dos grandes centros produtivos.

    Além dos ganhos econômicos, a decisão também reforça uma política de segurança energética autônoma. Em um contexto geopolítico instável — agravado por guerras, sanções, variações no preço do gás natural e tensões no fornecimento internacional de energia —, contar com uma fonte firme, previsível e desenvolvida internamente é uma vantagem estratégica. Os SMRs, por serem modulares, podem ser implantados de forma gradual, próximos aos centros de consumo, com menor impacto territorial e menor dependência de grandes linhas de transmissão.

    O Reino Unido também busca assumir uma posição de liderança tecnológica global, especialmente no contexto europeu. A iniciativa com a Rolls-Royce visa não apenas atender à demanda interna, mas também posicionar o país como exportador de soluções em SMR para outros mercados, como Ásia, América Latina e África, especialmente em países que buscam alternativas viáveis à geração fóssil e não têm capacidade para construir grandes usinas nucleares convencionais.

    Ao estruturar um programa baseado em expertise nacional, política pública ativa e visão de longo prazo, o Reino Unido dá um passo à frente na corrida pela soberania energética e pelo domínio de tecnologias críticas da próxima década. E, ao fazer isso com uma empresa nacional, envia um sinal claro: inovação energética é também estratégia de Estado. É sobre garantir que a energia que move um país seja também uma fonte de independência, desenvolvimento e liderança.

    Essa experiência pode inspirar países como o Brasil a adotarem uma abordagem mais estruturada, associando tecnologia de ponta a políticas industriais robustas e programas de capacitação técnica voltados para o futuro.

    SMRs combinam inovação, segurança e operação contínua

    Os Small Modular Reactors (SMRs) representam uma nova geração de tecnologia nuclear, projetada para responder aos desafios energéticos do século XXI. São reatores compactos, padronizados e fabricados em série, com capacidade de geração entre 50 MW e 500 MW por unidade — uma escala que permite maior flexibilidade de implantação em comparação com usinas nucleares convencionais.

    O primeiro diferencial dos SMRs é sua arquitetura modular, que permite que os reatores sejam construídos em ambientes industriais controlados e, posteriormente, transportados para os locais de instalação. Essa abordagem reduz os riscos de atraso e de sobrecustos típicos das obras de infraestrutura nuclear tradicional, além de garantir padrões consistentes de qualidade e segurança em todo o processo de fabricação.

    Do ponto de vista operacional, os SMRs foram concebidos para funcionar de forma contínua e estável, com altíssima confiabilidade. Eles podem operar em regime de base, ou seja, gerando energia 24 horas por dia, 7 dias por semana, com fatores de capacidade superiores a 90%. Isso os torna uma solução valiosa para complementar fontes intermitentes como solar e eólica, garantindo o equilíbrio e a segurança dos sistemas elétricos que caminham para maior participação de renováveis.

    A segurança é outro pilar central do design dos SMRs. Muitos projetos utilizam sistemas de resfriamento passivo, que não dependem de ação humana ou energia externa para evitar o superaquecimento em caso de falha. Além disso, o menor porte dos reatores e o uso de tecnologias modernas facilitam o controle, a proteção física e a contenção de riscos. Essas melhorias foram incorporadas com base nas lições aprendidas de eventos passados, como Fukushima, e refletem o avanço da engenharia nuclear nas últimas décadas.

    Os SMRs também oferecem reduzido impacto ambiental direto, tanto em termos de uso do solo quanto de emissões de gases de efeito estufa. Como não queimam combustível fóssil, não emitem CO₂ durante a operação. Além disso, ocupam áreas muito menores do que usinas solares ou eólicas de potência equivalente, o que os torna ideais para ambientes urbanos, industriais ou locais com restrição territorial.

    Em contextos geopolíticos sensíveis ou regiões isoladas, os SMRs podem ser implantados de forma descentralizada, inclusive com versões móveis, para fornecer energia a bases militares, comunidades remotas ou polos produtivos longe dos grandes centros. Isso os transforma em uma solução não apenas energética, mas também estratégica para resiliência e autonomia regional.

    Na prática, os SMRs combinam o melhor da energia nuclear — confiabilidade, densidade energética e baixa emissão — com a flexibilidade operacional e a escalabilidade exigidas pela nova economia de baixo carbono. Por isso, estão ganhando espaço no planejamento energético de países que desejam acelerar a transição energética sem abrir mão da segurança, da previsibilidade e da soberania tecnológica.

    Enquanto o mundo busca soluções viáveis para garantir energia limpa, acessível e constante, os SMRs surgem como uma das propostas mais promissoras e maduras para compor a matriz elétrica do futuro. Uma solução que une inovação tecnológica com inteligência estratégica.

    Brasil avança com parceria internacional e abre caminho para adoção de SMRs

    Em maio de 2025, o governo brasileiro anunciou um acordo de cooperação com a estatal russa Rosatom para desenvolver estudos e projetos conjuntos envolvendo reatores nucleares modulares pequenos (SMRs). A iniciativa foi apresentada como parte da estratégia nacional de diversificação da matriz elétrica e de redução de emissões, além de atender à necessidade de levar energia a regiões remotas com menor custo ambiental.

    A Rosatom é uma das referências mundiais em tecnologia nuclear, com décadas de experiência na operação de usinas e no desenvolvimento de soluções modulares. A estatal russa já opera reatores SMRs comerciais embarcados — como os utilizados em navios quebra-gelo no Ártico — e lidera projetos semelhantes em países da Ásia e do Leste Europeu. Para o Brasil, a parceria representa uma porta de entrada para a aprendizagem acelerada, com acesso a projetos maduros, práticas operacionais testadas e transferência de conhecimento.

    No entanto, a escolha da Rússia como parceira prioritária levanta desafios estratégicos importantes. O país está envolvido em um conflito militar com a Ucrânia e sofre sanções comerciais e financeiras impostas por diversos países do Ocidente. Isso pode afetar o acesso a componentes, atrasar cronogramas e criar obstáculos para a integração internacional de futuros projetos brasileiros. Em um setor sensível como o nuclear, a previsibilidade e a confiança geopolítica são tão relevantes quanto a tecnologia em si.

    Além disso, o acordo atual não prevê, até o momento, a nacionalização da tecnologia nem a criação de um ecossistema industrial local. O risco é repetir o modelo de dependência adotado em outros segmentos da matriz elétrica brasileira, como energia solar e eólica, em que o país importa a maior parte dos equipamentos e softwares utilizados. Isso limita o desenvolvimento de uma cadeia produtiva nacional e reduz a capacidade de geração de empregos qualificados e inovação.

    Ainda assim, a parceria com a Rosatom sinaliza um avanço relevante. Pela primeira vez, o Brasil declara publicamente interesse em explorar os SMRs como alternativa viável à geração tradicional. O Ministério de Minas e Energia já constituiu um grupo de trabalho para estudar o potencial do país nesse campo, incluindo diagnósticos de aplicação regional, aspectos regulatórios, segurança e viabilidade econômica. Esse movimento, se bem estruturado, pode abrir espaço para um programa mais amplo, com múltiplas parcerias internacionais e estímulo à pesquisa local.

    Diversificar alianças tecnológicas será essencial. Países como o Reino Unido, Estados Unidos, Canadá e Coreia do Sul já possuem modelos comerciais de SMRs em estágios avançados. O Brasil pode — e deve — buscar parcerias também com esses atores, equilibrando seu portfólio internacional e garantindo acesso a soluções distintas, adaptáveis aos diversos contextos nacionais.

    Além das alianças, o desenvolvimento de capacidades locais deve ser um objetivo central. Isso significa investir em centros de pesquisa, atualizar currículos de engenharia, formar técnicos especializados, criar editais de inovação e preparar o ambiente regulatório para receber essa nova geração de reatores. Um programa bem conduzido pode transformar o Brasil não apenas em usuário, mas também em produtor e exportador de soluções em SMR adaptadas à realidade latino-americana.

    A decisão de iniciar o diálogo com a Rússia pode ser vista como um primeiro passo. Mas os passos seguintes precisam ser mais ambiciosos, mais amplos e mais bem distribuídos. O Brasil tem a oportunidade de construir um caminho próprio na energia nuclear modular — um caminho que una cooperação internacional, valorização do conhecimento local e planejamento estratégico de longo prazo.

    Reduzir a dependência tecnológica é essencial para o desenvolvimento soberano

    O debate sobre adoção de novas tecnologias no setor de energia não pode ser separado da discussão sobre soberania tecnológica. No contexto dos reatores nucleares modulares pequenos (SMRs), esse tema ganha ainda mais relevância. Embora seja natural que países em desenvolvimento iniciem sua trajetória com apoio de nações mais avançadas tecnologicamente, a dependência prolongada impõe limites à autonomia, à inovação e à geração de valor econômico local.

    No caso brasileiro, a experiência com energias renováveis recentes oferece uma lição clara. O país se tornou um dos maiores mercados do mundo em energia solar e eólica, mas importa a maior parte dos painéis fotovoltaicos, turbinas e componentes eletrônicos. Isso resultou em forte crescimento da capacidade instalada, mas com baixo impacto no fortalecimento da indústria nacional. Pouco se desenvolveu internamente em termos de pesquisa, fabricação, design de sistemas ou propriedade intelectual.

    Repetir esse padrão no campo dos SMRs seria um erro estratégico. A energia nuclear envolve setores sensíveis, de alta complexidade e forte controle regulatório. Isso significa que confiar apenas em fornecedores estrangeiros — seja para engenharia, operação ou manutenção — expõe o país a riscos técnicos, econômicos e geopolíticos, especialmente em um mundo marcado por tensões comerciais e instabilidade internacional.

    Por outro lado, internalizar conhecimento e desenvolver tecnologia nacional não significa partir do zero. O Brasil já possui instituições reconhecidas no campo nuclear, como o IPEN, a CNEN, a Eletronuclear e o projeto do submarino nuclear da Marinha. Esses ativos técnicos e humanos podem ser reorientados e conectados a novos polos de inovação, startups, universidades e empresas privadas. Isso exige coordenação, investimentos e, sobretudo, uma visão estratégica de Estado.

    A criação de uma cadeia produtiva nacional voltada aos SMRs também representa uma oportunidade industrial. Ela pode envolver desde a fabricação de componentes e módulos, até o desenvolvimento de sistemas digitais de controle, softwares de simulação, serviços de engenharia, logística especializada e reciclagem de materiais. Com políticas públicas bem desenhadas, é possível estimular a entrada de novos atores e gerar empregos qualificados em áreas de alto valor agregado.

    Esse movimento também fortalece a resiliência energética e a segurança nacional. Um país que domina sua infraestrutura crítica tem mais capacidade de reagir a crises, manter sua soberania regulatória e negociar com outros mercados em condições mais equilibradas. A independência tecnológica permite tomar decisões com base no interesse público, e não nas limitações impostas por terceiros.

    Reduzir a dependência tecnológica no setor de energia — especialmente em tecnologias estratégicas como os SMRs — não é um luxo, mas uma condição necessária para transformar energia em desenvolvimento de longo prazo. Significa criar as bases para que o Brasil não apenas consuma energia limpa e segura, mas também a projete, produza e exporte com inteligência. É isso que transforma uma solução técnica em um verdadeiro projeto de país.

    Oportunidade para fortalecer a base industrial e inovadora brasileira

    A adoção de reatores nucleares modulares pequenos (SMRs) pode funcionar como um poderoso catalisador para a reindustrialização qualificada do Brasil. Mais do que um projeto de geração de energia, os SMRs representam uma plataforma tecnológica de alta complexidade, com potencial para integrar setores variados da economia nacional — da engenharia pesada à automação digital, da metalurgia avançada ao desenvolvimento de software e sistemas embarcados.

    O modelo modular desses reatores é especialmente favorável à criação de uma cadeia produtiva descentralizada e escalável. Como os componentes podem ser fabricados em série, em ambientes industriais padronizados, abre-se uma oportunidade concreta para o envolvimento de pequenas, médias e grandes empresas nacionais em processos como fundição, usinagem, montagem eletromecânica, revestimentos especiais, sensores, válvulas, trocadores de calor, estruturas metálicas e muito mais.

    Além da engenharia mecânica e civil, a adoção dos SMRs exige soluções sofisticadas em automação, instrumentação e controle digital. Sistemas de segurança, supervisão remota, inteligência artificial para predição de falhas e cibersegurança são áreas-chave que podem ser desenvolvidas no Brasil com apoio de startups, centros de pesquisa e universidades. Essa integração entre indústria tradicional e inovação digital é exatamente o tipo de conexão que o país precisa fortalecer para modernizar sua base produtiva.

    Outro aspecto positivo é a demanda por qualificação técnica e profissional de longo prazo. A implantação de SMRs requer engenheiros nucleares, projetistas, técnicos em eletricidade, soldadores especializados, operadores de plantas e analistas de dados. Ao estimular a formação desses perfis, o Brasil não apenas responde à necessidade imediata dos projetos, mas fortalece sua posição como um polo de conhecimento e inovação na área energética.

    Os benefícios não se restringem às regiões mais desenvolvidas. A distribuição territorial dos projetos de SMR pode gerar dinamismo econômico em áreas fora do eixo Sudeste-Sul, contribuindo para o desenvolvimento regional com base em infraestrutura crítica. A instalação de unidades industriais de médio porte para produção ou montagem de módulos, por exemplo, pode ativar economias locais e gerar emprego qualificado em cidades médias.

    O Brasil já provou sua capacidade de construir obras de engenharia complexas, como hidrelétricas, refinarias e plataformas offshore. Também possui experiência acumulada em energia nuclear, com operação de usinas em Angra e projetos da Marinha. O desafio agora é transformar esse conhecimento em uma plataforma de exportação de soluções tecnológicas e industriais, inserindo o país de forma ativa na cadeia global de valor da energia nuclear modular.

    A chegada dos SMRs é uma chance real de reposicionar a indústria brasileira para o século XXI, com foco em inovação, sustentabilidade e alta especialização. Com planejamento, governança e políticas públicas bem desenhadas, o Brasil pode deixar de ser apenas consumidor de tecnologia para se tornar um fornecedor estratégico de componentes, serviços e conhecimento, ampliando sua relevância econômica e geopolítica na transição energética global.

    Capacitação técnica e infraestrutura nacional como diferenciais competitivos

    Um dos ativos mais valiosos que o Brasil possui para avançar na agenda dos reatores nucleares modulares pequenos (SMRs) é o seu capital humano qualificado e sua base institucional acumulada no setor nuclear. O país conta com um ecossistema técnico-científico robusto, que inclui universidades, centros de pesquisa, instituições públicas e projetos estratégicos de defesa. Esse conjunto de competências representa um diferencial competitivo que precisa ser reconhecido, articulado e fortalecido — e não negligenciado.

    Entre os destaques estão a CNEN, o IPEN, a Eletronuclear e o programa nuclear da Marinha, que desenvolve tecnologias para propulsão desde os anos 1980. São estruturas com conhecimento consolidado, infraestrutura técnica instalada e quadros especializados. Esse patrimônio imaterial — acumulado ao longo de décadas — tem potencial para ser reativado e colocado a serviço do desenvolvimento de tecnologias civis como os SMRs, especialmente se combinado com o dinamismo das universidades e empresas inovadoras.

    Contudo, o Brasil vive um momento ambíguo. Ao mesmo tempo em que se abre à discussão sobre novas tecnologias energéticas, como os SMRs, o país revê seu modelo de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PDI) no setor elétrico, sob coordenação da ANEEL. A proposta de reformulação do programa, ainda em consolidação, busca maior eficiência e aproximação com o mercado. Mas há sinais de que isso pode resultar na redução do espaço destinado à pesquisa científica estruturante — justamente aquela que sustenta a base técnica necessária para que o Brasil desenvolva, em vez de apenas consumir, tecnologias estratégicas.

    Historicamente, o P&D da ANEEL foi um dos poucos instrumentos de fomento direto à ciência aplicada em energia, conectando academia e setor produtivo. Ao priorizar projetos com aplicação imediata e retorno de curto prazo, o novo modelo pode enfraquecer a capacidade de gerar conhecimento em áreas como materiais avançados, reatores, digitalização de redes e armazenamento de energia. Esse tipo de pesquisa demanda tempo, continuidade e liberdade metodológica — características que não se ajustam facilmente a editais com metas rígidas e foco em produtos finalizados.

    Além disso, a nova modelagem impõe entraves que podem afastar startups, universidades e pequenos desenvolvedores, dificultando o ingresso de novos agentes inovadores. Ao transformar a lógica do P&D em algo mais próximo da compra de soluções prontas, o programa corre o risco de perder sua função transformadora.

    Nesse cenário, emerge ainda um efeito colateral preocupante: a fuga de cérebros. Jovens talentos, pesquisadores experientes e profissionais altamente capacitados, diante da escassez de recursos, da instabilidade nos programas de fomento e da falta de perspectiva, buscam oportunidades em centros de excelência no exterior. Isso representa uma perda dupla: perde-se o investimento já feito em formação e perde-se o protagonismo em áreas tecnológicas sensíveis. A ciência brasileira precisa ser mantida, valorizada e convocada a contribuir com os desafios nacionais — não empurrada para fora.

    Torna-se, portanto, urgente valorizar os ativos nacionais já existentes. O Brasil possui uma rede de competências técnicas e infraestrutura científica que, se conectada de forma estratégica ao setor produtivo, pode liderar o desenvolvimento de SMRs adaptados às necessidades regionais. Com apoio adequado, essa base pode gerar empregos de alta qualificação, atrair investimentos privados e posicionar o país como exportador de conhecimento e tecnologia em energia limpa.

    Qualquer política pública voltada ao avanço de novas tecnologias — seja no campo nuclear, do hidrogênio ou das baterias — deve reconhecer o papel central da pesquisa aplicada como motor da soberania tecnológica. Sem isso, o Brasil continuará preso à lógica da dependência: comprando soluções, pagando caro e perdendo a chance de crescer com inteligência.

    Valorizar a ciência, investir na formação de pessoas, modernizar laboratórios, fixar talentos e articular esforços entre governo, universidades e empresas não é um custo — é uma estratégia de desenvolvimento nacional. E é exatamente isso que os SMRs exigem: visão de longo prazo, compromisso com o conhecimento e a coragem de assumir protagonismo.

    Aplicações dos SMRs em territórios estratégicos e regiões isoladas

    Um dos maiores diferenciais dos reatores nucleares modulares pequenos (SMRs) é sua capacidade de operar de forma segura, contínua e independente em locais de difícil acesso ou com infraestrutura energética limitada. Ao contrário de grandes usinas térmicas ou hidrelétricas, que exigem redes complexas de transmissão e logística, os SMRs podem ser instalados próximos ao ponto de consumo, o que reduz perdas, amplia a eficiência e leva energia limpa a territórios estratégicos e regiões isoladas.

    Essa característica torna os SMRs particularmente atrativos para países com vasta extensão territorial e desigualdade no acesso à energia — como o Brasil. Regiões da Amazônia Legal, do semiárido nordestino e de áreas de fronteira enfrentam desafios históricos relacionados ao abastecimento elétrico. Muitas dessas localidades dependem até hoje de termelétricas a óleo diesel, caras, poluentes e logísticamente complexas. Substituí-las por reatores compactos, silenciosos e de operação contínua pode representar uma mudança estrutural na inclusão energética dessas populações.

    Além do aspecto social, há um componente estratégico e produtivo. O Brasil possui centros de mineração, agronegócios, polos industriais e instalações militares que operam em áreas remotas e vulneráveis a oscilações no fornecimento elétrico. O uso de SMRs nessas regiões pode garantir autonomia energética, previsibilidade de operação e redução de custos, contribuindo para a competitividade dos setores produtivos e para a segurança nacional.

    O exemplo da Argentina ilustra bem esse potencial. O país desenvolve, por meio da estatal INVAP e da empresa NA-SA, o projeto CAREM, um dos primeiros SMRs do hemisfério sul. Uma das aplicações estratégicas previstas é a instalação de reatores modulares na Patagônia, região de difícil acesso logístico, mas altamente atrativa para a instalação de datacenters de alta performance. O raciocínio é claro: em tempos de economia digital e demanda por computação intensiva, centros de dados precisam de energia estável, limpa e contínua — exatamente o que os SMRs podem oferecer, mesmo longe dos grandes centros urbanos.

    Esse tipo de solução também é altamente replicável no Brasil. Estados como Roraima, Acre, Maranhão ou partes do Centro-Oeste reúnem condições similares: baixa densidade populacional, limitação de acesso rodoviário, presença de cadeias produtivas relevantes e ausência de infraestrutura robusta de transmissão. A instalação de SMRs, nesse caso, não apenas resolve um problema técnico, mas redefine o papel dessas regiões no mapa energético e econômico do país.

    Além disso, os SMRs podem ser integrados a microrredes inteligentes, operando de forma autônoma ou em parceria com outras fontes renováveis, como solar e biomassa. Essa flexibilidade permite atender comunidades indígenas, assentamentos rurais, distritos industriais e até bases científicas em áreas remotas, com redução da pegada ambiental e aumento da resiliência local.

    É importante ressaltar que a resiliência do sistema elétrico nacional também se fortalece com a descentralização da geração. Ao dispersar pontos de produção de energia e evitar a dependência de grandes linhas de transmissão vulneráveis a falhas climáticas ou técnicas, os SMRs contribuem para a estabilidade e segurança da matriz elétrica brasileira — algo que será cada vez mais relevante em um cenário de eventos extremos e aumento da demanda digital.

    Em resumo, os SMRs não são apenas uma alternativa à geração centralizada. São uma ferramenta estratégica para a ocupação produtiva, a integração nacional e a ampliação do acesso à energia limpa com inteligência territorial. E o Brasil, com seu tamanho continental e desigualdades regionais, tem talvez um dos maiores potenciais do mundo para aplicar essa tecnologia de forma transformadora.

    Transição energética e autonomia tecnológica caminham juntas

    A transição energética global é, antes de tudo, uma transição estratégica. Não se trata apenas de substituir combustíveis fósseis por fontes renováveis, mas de decidir quem irá dominar as tecnologias que movem o mundo nas próximas décadas. Nesse cenário, os reatores nucleares modulares pequenos (SMRs) não devem ser vistos apenas como uma alternativa técnica de geração elétrica. Eles representam uma janela histórica para o Brasil construir sua própria trajetória energética, com autonomia, inovação e protagonismo.

    A consolidação de uma matriz elétrica de baixo carbono requer fontes firmes, seguras e despacháveis. Os SMRs atendem a esses critérios com vantagens adicionais: operação contínua, baixa emissão de gases de efeito estufa, ocupação territorial reduzida e compatibilidade com diferentes ambientes geográficos e produtivos. Mas o que os torna particularmente valiosos é sua conexão com setores de alta tecnologia, como engenharia avançada, materiais especiais, robótica, inteligência artificial, automação e cibersegurança.

    Países que liderarem o desenvolvimento e a aplicação dos SMRs não apenas garantirão energia para si mesmos — estarão criando novas fronteiras de exportação, atraindo investimentos estratégicos e moldando os padrões técnicos e regulatórios globais. O Reino Unido, ao escolher a Rolls-Royce como fornecedora nacional, não está apenas respondendo à crise climática; está apostando na construção de uma nova vantagem competitiva global, baseada em tecnologia de alta densidade intelectual.

    O Brasil tem a chance de seguir esse caminho, mas com um diferencial: seu histórico de competência em engenharia pesada, suas universidades de ponta, seus centros de pesquisa nuclear e a existência de um sistema elétrico já majoritariamente renovável. Com planejamento, governança e visão de longo prazo, o país pode usar os SMRs como alavanca para reposicionar sua indústria, desenvolver talentos e projetar influência tecnológica e energética na América Latina e além.

    Para isso, é essencial abandonar a ideia de que transição energética se limita à troca de fontes. Ela precisa ser compreendida como um projeto nacional de desenvolvimento sustentável, econômico e científico. Isso significa apoiar a ciência, fomentar startups de base tecnológica, criar ambientes regulatórios que estimulem a experimentação e garantir que cada real investido em energia contribua também para formação de capital intelectual.

    A autonomia tecnológica é uma condição para que o Brasil possa definir suas próprias rotas energéticas — sem depender de fornecedores estrangeiros, sem importar soluções fechadas, sem ficar à margem dos avanços que hoje se aceleram no hemisfério Norte. A energia do futuro não será apenas limpa: será estratégica, digital e geopolítica. E os países que liderarem essa transformação não serão apenas consumidores — serão formadores de padrões e exportadores de soluções.

    Nesse sentido, os SMRs não devem ser vistos como uma solução pontual, mas como um vetor estruturante para o Brasil se reinventar como potência energética e tecnológica. Uma aposta que exige coragem política, coordenação institucional e um compromisso inequívoco com a inovação como motor de soberania.

    Porque no século XXI, quem controla a tecnologia que gera energia, controla também as condições para crescer com liberdade, segurança e dignidade. E isso é exatamente o que o Brasil merece conquistar.

  • Rio Grande do Sul na Era da Soberania Digital: Infraestrutura, Talentos e Integração Regional

    Rio Grande do Sul na Era da Soberania Digital: Infraestrutura, Talentos e Integração Regional

    1. Uma virada digital de escala inédita

    A chegada da Scala AI City a Eldorado do Sul (RS) inaugura uma nova etapa da infraestrutura digital brasileira, com implicações que vão muito além da tecnologia. Com 4,75 GW de capacidade elétrica reservada — carga superior à de estados inteiros como Mato Grosso ou Maranhão —, o projeto coloca o Rio Grande do Sul no centro das cadeias globais de dados. Mas sua magnitude exige uma abordagem integrada: envolve a sustentabilidade do sistema elétrico, a atualização do marco regulatório, o aproveitamento da malha logística e energética do estado, o fortalecimento de zonas estratégicas como a ZPE de Rio Grande, e, sobretudo, a valorização do capital humano gaúcho. Este post propõe uma leitura estratégica sobre como esse megaprojeto pode — e deve — ser articulado a políticas públicas, inteligência territorial e oportunidades de desenvolvimento distribuído.

    2. A infraestrutura elétrica sob nova pressão

    A magnitude energética do projeto da Scala AI City exige atenção especial à capacidade atual e futura da infraestrutura de transmissão no estado do Rio Grande do Sul. Embora Eldorado do Sul conte com uma subestação de alta potência, apta a suportar até 5 GW, e esteja integrada à Rede Básica do Sistema Interligado Nacional (SIN), a escala do consumo previsto — contínuo e prioritário — cria um novo patamar de exigência para o sistema elétrico regional.

    Essa carga contratada de forma exclusiva, por meio de reserva energética, pode ocupar uma parcela significativa da capacidade disponível na malha de transmissão da região metropolitana de Porto Alegre. Isso representa um ponto de atenção para empreendimentos futuros, especialmente para indústrias eletrointensivas, centros logísticos automatizados e sistemas urbanos que pretendem se expandir com base em energia firme, estável e despachável.

    Em momentos de retomada econômica, políticas industriais ou reconstrução regional — como no cenário pós-enchentes — a disponibilidade de energia e de conexão à rede será fator determinante para a atração de investimentos. Caso não haja planejamento coordenado, é possível que indústrias ou parques tecnológicos encontrem dificuldades para se conectar ao sistema em tempo viável, mesmo com projetos prontos para execução. O risco não está apenas na falta de energia, mas na ausência de capacidade de escoamento local.

    Adicionalmente, grandes consumidores com carga constante, como data centers, tendem a operar com prioridade contratual, o que pode afetar o despacho de outras cargas ou exigir investimentos compensatórios em reforços estruturais. Essa dinâmica precisa ser compreendida de forma integrada pelos órgãos de planejamento (ONS, EPE, ANEEL), pelas concessionárias de transmissão e pelas agências estaduais de desenvolvimento.

    Antecipar gargalos, distribuir investimentos e regionalizar a expansão da rede são ações estratégicas. Linhas de transmissão robustas, subestações modernas e capacidade de resposta rápida tornam-se ativos fundamentais para garantir que a transição digital não limite a diversificação produtiva do estado. Nesse sentido, o projeto da Scala AI City pode ser o catalisador de uma nova fase de modernização elétrica do Rio Grande do Sul, desde que inserido num plano mais amplo de uso inteligente e democrático da infraestrutura energética disponível.

    Além disso, é recomendável que grandes projetos como este sejam acompanhados por estudos prospectivos de impacto sobre a malha regional, com simulações de cenários de crescimento e ferramentas de mapeamento dinâmico da capacidade instalada. Com isso, é possível preservar o equilíbrio entre os diferentes usos — digital, industrial, urbano e logístico —, garantindo que a infraestrutura de transmissão seja um vetor de desenvolvimento e não um fator limitante para a competitividade territorial.

    3. O Marco Legal dos Data Centers e a chance de um novo modelo

    O contexto atual ganha ainda mais complexidade — e ao mesmo tempo oportunidade — com a tramitação no Congresso Nacional do novo Marco Legal dos Data Centers. Essa proposta legislativa busca estabelecer diretrizes específicas para o setor, reconhecendo a crescente importância estratégica dos centros de dados na economia digital e seu impacto direto sobre a infraestrutura energética, territorial e ambiental do país.

    Entre os principais eixos do marco, destacam-se três frentes essenciais: a sustentabilidade energética dos empreendimentos; a definição de critérios para a escolha de localização com base em segurança hídrica, capacidade elétrica e resiliência climática; e a criação de incentivos regulatórios e fiscais para a inovação, visando atrair investimentos globais e estimular cadeias produtivas nacionais associadas à operação, manutenção e fornecimento de equipamentos para esses centros.

    A discussão do marco cria a possibilidade de o Brasil avançar de forma coordenada em um segmento altamente intensivo em recursos e tecnologia. Hoje, as decisões de implantação de data centers são tomadas, em muitos casos, com base apenas na disponibilidade técnica de terreno e energia, sem necessariamente considerar os impactos estruturais de longo prazo sobre o entorno ou o potencial de indução de desenvolvimento local. Um marco legal moderno pode corrigir essa assimetria e induzir escolhas mais qualificadas, com base em critérios técnicos, sociais e ambientais.

    Nesse cenário, a sinergia entre uma regulação bem formulada e projetos como a Scala AI City pode gerar um modelo de referência nacional. Isso significa construir uma governança que envolva União, estados e municípios, articulando diferentes instrumentos de planejamento — energético, urbano, ambiental, industrial e educacional — para garantir que esses megaprojetos sejam efetivamente motores de transformação territorial positiva.

    Um ponto essencial nesse debate é reconhecer a diversidade territorial brasileira. As vocações regionais variam intensamente: há estados com excedentes de energia limpa, outros com corredores logísticos de exportação, regiões com forte base universitária e polos de inovação já estabelecidos. Inserir essas variáveis no planejamento da implantação e operação de data centers permite que o Brasil avance de forma descentralizada, promovendo coesão econômica e tecnológica entre regiões.

    O novo marco, portanto, não deve ser apenas um instrumento de regulamentação técnica, mas uma política estruturante, capaz de alinhar infraestrutura digital com metas de transição energética, reindustrialização inteligente e valorização do território. Projetos como o da Scala AI City podem ser laboratórios vivos para essa convergência, desde que articulados com uma visão sistêmica, colaborativa e de longo prazo.

    4. O Rio Grande do Sul como plataforma digital do Cone Sul

    Nesse cenário, o Rio Grande do Sul apresenta um conjunto de atributos raros e altamente complementares às exigências da nova economia digital. O estado combina infraestrutura energética de base renovável, localização geopolítica privilegiada no Cone Sul e uma malha logística e acadêmica que favorece a criação de ecossistemas distribuídos de inovação. Tais elementos colocam o território gaúcho em posição diferenciada para absorver e impulsionar projetos de infraestrutura digital com alto valor agregado.

    A presença de um dos maiores complexos eólicos do Brasil ao longo do litoral norte é um desses ativos estruturantes. Com elevados fatores de capacidade e integração já estabelecida à Rede Básica do SIN, esse corredor energético oferece uma base limpa, estável e escalável para alimentar tanto grandes consumidores industriais quanto aplicações digitais contínuas. Trata-se de uma fonte estratégica para viabilizar centros de dados com baixa pegada de carbono, alinhados às exigências ESG e às metas de descarbonização setorial.

    5. Cabo Malbec e edge computing: conectividade com inteligência distribuída

    A recente expansão do cabo submarino Malbec, com ponto de chegada em Balneário Pinhal, projeta o Rio Grande do Sul como nova porta de entrada para fluxos internacionais de dados. Essa conexão direta com países do Atlântico Sul — como Uruguai e Argentina — e com as redes intercontinentais operadas por grandes players globais reduz a dependência de rotas de dados concentradas no Sudeste e no exterior. Isso significa menor latência, maior redundância e mais resiliência para aplicações críticas.

    Essa infraestrutura de conectividade pode ser a base para a implantação de polos de edge computing em regiões fora dos grandes centros urbanos. Diferente dos data centers centrais, os nós de borda (edge) processam dados mais próximos do local de geração ou consumo. Isso melhora a performance de aplicações em saúde conectada, agricultura de precisão, cidades inteligentes, monitoramento ambiental e logística avançada, reduzindo custos e aumentando a autonomia regional em termos digitais.

    Esse modelo de descentralização computacional também cria novas oportunidades de uso eficiente da energia local, evitando sobrecargas em corredores específicos da rede e promovendo o uso equilibrado dos recursos territoriais. No contexto do Rio Grande do Sul, isso significa sincronizar o potencial energético do litoral, a infraestrutura de dados recém-chegada e a base técnica-científica das universidades locais para compor um sistema inteligente, seguro e regionalmente distribuído de inovação digital.

    A integração entre energia renovável, conectividade internacional e inteligência computacional distribuída posiciona o estado como plataforma tecnológica estratégica do Cone Sul. Com visão de longo prazo e articulação público-privada, esse arranjo pode atrair investimentos, promover capacitação local e reforçar o papel do RS como elo entre o Brasil e seus vizinhos em um mercado digital regional cada vez mais relevante.

    6. ZPE de Rio Grande: logística, indústria e inovação em um só território

    A cidade de Rio Grande constitui um ativo logístico e geoeconômico singular dentro da configuração territorial do sul do Brasil. Localizada em posição estratégica no litoral sul do estado, próxima à fronteira com o Uruguai, o município reúne uma série de atributos que o qualificam para assumir um papel central no apoio à nova infraestrutura digital brasileira — com impactos que ultrapassam as fronteiras nacionais.

    O município abriga um dos principais portos de águas profundas do país, com capacidade para movimentação de cargas de grande volume e calado, apto a operar com contêineres, granéis e equipamentos de alta densidade tecnológica. Essa infraestrutura portuária está interligada a uma malha ferroviária e rodoviária consolidada, permitindo o escoamento eficiente de mercadorias para o interior do Brasil e para os países do Mercosul. Essa capilaridade logística é um diferencial para operações de suporte à economia digital e ao setor de tecnologia avançada.

    Além disso, Rio Grande possui uma Zona de Processamento de Exportação (ZPE) ativa, que oferece um ambiente aduaneiro especial, com incentivos fiscais e regimes simplificados para importação, montagem e exportação de bens e serviços voltados ao mercado internacional. Este instrumento pode ser revitalizado e adaptado para atrair empresas de montagem de equipamentos para data centers, manufatura de componentes eletroeletrônicos, centros de armazenagem de dados regionais e unidades de integração de soluções digitais para exportação.

    A existência de infraestrutura instalada, combinada à disponibilidade territorial e aos incentivos do regime da ZPE, permite que o município se transforme em plataforma industrial de apoio à economia de dados. Em vez de concentrar apenas os servidores em grandes cidades, o modelo proposto sugere a dispersão de funções complementares — montagem, testes, manutenção, logística, armazenagem e suporte — para áreas logísticas de alta eficiência, como Rio Grande.

    Outro fator decisivo é a proximidade física e cultural com o Uruguai e a Argentina. A posição da cidade a menos de 300 quilômetros das fronteiras internacionais cria as condições ideais para o desenvolvimento de um corredor binacional de inovação, que articule competências industriais, fluxos logísticos e políticas de integração digital. Essa conexão geográfica pode sustentar um novo eixo tecnológico no Cone Sul, integrado por cidades como Montevidéu, Rivera, Buenos Aires e Porto Alegre.

    Ao incorporar Rio Grande como ponto de apoio e conexão industrial ao ecossistema digital que se desenha com a chegada da Scala AI City e do cabo Malbec, o Brasil pode avançar na criação de uma infraestrutura tecnológica policêntrica, moderna e conectada à sua base exportadora. Trata-se de potencializar o que o território já oferece, alinhando ativos logísticos, fiscais e geopolíticos em prol de um modelo de desenvolvimento digital inclusivo, eficiente e com projeção internacional.

    7. Reter talentos qualificados é tão estratégico quanto gerar energia

    Outro fator-chave, muitas vezes subdimensionado em análises de grandes projetos de infraestrutura digital, é o capital humano qualificado. O Rio Grande do Sul possui uma rede acadêmica sólida e reconhecida nacional e internacionalmente, com universidades como UFRGS, UFSM, FURG, Unisinos e PUCRS formando milhares de profissionais por ano em áreas como engenharia elétrica, ciência da computação, automação, sistemas embarcados, análise de dados e tecnologias aplicadas à energia e ao meio ambiente.

    No entanto, apesar desse ecossistema formativo robusto, grande parte desses talentos acaba migrando para outros estados ou países, em busca de oportunidades mais alinhadas às suas qualificações técnicas. São profissionais com alto nível de empregabilidade, que muitas vezes deixam o estado por falta de empresas que atuem na fronteira da inovação tecnológica ou por ausência de projetos estruturantes que conectem academia e mercado com densidade e escala.

    A chegada de um empreendimento como a Scala AI City e a expansão de conectividade internacional via o cabo Malbec oferecem a oportunidade de reverter esse fluxo migratório e transformar a formação de capital humano em motor de desenvolvimento territorial de longo prazo. Mas isso depende de decisões estratégicas que extrapolam a mera presença de um grande data center.

    É preciso interiorizar os investimentos em tecnologia e infraestrutura, criando polos regionais de inovação digital com foco em aplicações locais — como saúde conectada, monitoramento ambiental, agricultura de precisão, indústria 4.0 e logística inteligente. A combinação entre energia limpa, conectividade de alta velocidade, estímulo à pesquisa aplicada e ambientes de negócio favoráveis pode dar origem a ecossistemas tecnológicos sustentáveis, fora dos grandes centros metropolitanos.

    Esses polos regionais permitiriam não apenas reter profissionais já formados, mas também atrair de volta talentos que migraram e estimular a permanência de jovens qualificados em suas regiões de origem. O efeito multiplicador disso é significativo: surgimento de startups, fortalecimento de institutos de ciência e tecnologia, expansão de serviços especializados e geração de renda qualificada em áreas hoje periféricas ao circuito principal da inovação.

    Em outras palavras, a valorização do capital humano gaúcho não depende apenas de formar bons profissionais, mas de criar as condições territoriais, econômicas e tecnológicas para que eles permaneçam, prosperem e inovem em suas regiões. Esse é um componente essencial para que o desenvolvimento digital impulsionado pela infraestrutura chegue, de fato, à sociedade de maneira distribuída e transformadora.

    8. Da infraestrutura à soberania digital: o que está em jogo

    A Scala AI City representa uma oportunidade concreta de reposicionamento do Brasil — e, em especial, do Rio Grande do Sul — na nova geopolítica da infraestrutura digital global. Trata-se de um projeto com potencial de reconfigurar o papel do estado no mapa de dados, conectividade e inteligência computacional da América Latina, inserindo-o como um elo relevante nas cadeias digitais globais, hoje altamente concentradas em poucos polos do Hemisfério Norte.

    Contudo, para que esse movimento de projeção tecnológica gere resultados sustentáveis e estruturantes, é essencial que ele seja articulado a um conjunto coordenado de políticas públicas, diretrizes regulatórias, instrumentos de fomento à indústria e estratégias de desenvolvimento regional. A simples presença de uma infraestrutura de grande porte, por si só, não garante redistribuição de oportunidades, tampouco dinamismo econômico em cadeia.

    Será necessário que o investimento em gigawatts, servidores e cabos de dados esteja conectado a uma visão de Estado que contemple também educação técnica, uso racional do território, estímulo à pesquisa aplicada, reindustrialização digital, e valorização de ativos locais — como energia renovável, capital humano, base universitária, logística e capacidade fiscal.

    Nesse contexto, o RS pode se tornar uma referência internacional, mas essa liderança deverá ser construída a partir de modelos integrados de inteligência territorial, onde grandes projetos privados conversem com políticas públicas consistentes, planos de longo prazo e mecanismos de monitoramento e avaliação. O sucesso da Scala AI City, portanto, não se mede apenas pela potência instalada ou pelo número de servidores, mas pela qualidade do impacto que ela gera no entorno e pela capacidade do território em absorver, expandir e transformar essa energia em prosperidade compartilhada.

    Trata-se, enfim, de pensar além da infraestrutura física. De compreender que o futuro digital se constrói com equilíbrio federativo, inteligência distribuída, inclusão produtiva e soberania tecnológica, onde cada região pode ser protagonista de uma parte da solução — desde que as condições certas sejam criadas, respeitadas e potencializadas. O projeto da Scala é um ponto de partida. O que virá depois dependerá das escolhas que fizermos agora.