Introdução
A infraestrutura elétrica é uma das colunas vitais de qualquer sociedade moderna — ela sustenta serviços essenciais como saúde, transporte, comunicações, abastecimento e segurança pública. Em uma economia cada vez mais digitalizada, a disponibilidade contínua e confiável de energia depende não apenas de robustez física e redundância técnica, mas também da resiliência cibernética. É nesse contexto que a cibersegurança deixa de ser uma preocupação meramente tecnológica e assume o papel de vetor estratégico, regulatório e institucional para o setor elétrico brasileiro.
Incidentes recentes, como o apagão na Península Ibérica em abril de 2025 — embora de origem técnica e não cibernética — evidenciam como a falha de um único elo da rede de transmissão pode comprometer milhões de usuários e desorganizar serviços básicos. Mais alarmante ainda são os casos documentados de ataques cibernéticos coordenados contra redes elétricas em zonas de conflito, como na Ucrânia, onde malwares como Industroyer e BlackEnergy demonstraram que softwares maliciosos podem causar danos físicos reais à distância, comprometendo centros de controle, subestações e dados operacionais.
No Brasil, embora haja avanços pontuais em modernização tecnológica e adoção de sistemas de automação, o cenário ainda é marcado por baixa integração entre TI e OT, carência de políticas cibernéticas setoriais, ausência de requisitos regulatórios específicos para ambientes industriais e uma maturidade desigual entre os agentes do setor. Nesse contexto, as vulnerabilidades se acumulam e a resposta institucional ainda é fragmentada.
Este artigo tem como objetivo apresentar uma análise aprofundada sobre o estado da cibersegurança no setor elétrico, com base em evidências do relatório global da Fortinet (2025), frameworks técnicos do NIST e do modelo C2M2, além de experiências nacionais como o Exercício Guardião Cibernético. A proposta é consolidar um diagnóstico qualificado e apresentar recomendações práticas e viáveis para fortalecer a resiliência digital do sistema elétrico brasileiro — com foco em governança, conformidade técnica, simulação, capacitação e regulação.
Mais do que proteger dados, a cibersegurança no setor elétrico significa proteger a energia que move o país — e, com ela, a confiança da sociedade e a estabilidade de toda a cadeia econômica.
Panorama Atual: Vulnerabilidades em Alta Tensão
O setor de energia global encontra-se em um ponto de inflexão crítico no que se refere à segurança cibernética. A crescente digitalização das infraestruturas operacionais, aliada à interconexão entre sistemas legados e modernos, ampliou significativamente a superfície de ataque das empresas de energia elétrica, petróleo e gás. Uma pesquisa conduzida pela Fortinet entre fevereiro e março de 2025, com 300 tomadores de decisão de diferentes regiões, revela um cenário preocupante: a frequência de incidentes cibernéticos aumentou, os impactos são profundos e a maturidade das defesas, ainda insuficiente.
De acordo com o levantamento, 53% das empresas sofreram entre 1 e 5 incidentes cibernéticos nos 12 meses anteriores à pesquisa, enquanto 25% relataram de 6 a mais de 15 ataques. Apenas 7% disseram não ter registrado nenhum incidente no período. Os efeitos mais mencionados incluem queda de produtividade, prejuízos financeiros e aumento do risco reputacional e jurídico, elementos que colocam em xeque a continuidade dos serviços prestados por concessionárias e operadoras de infraestrutura crítica.
O relatório também chama atenção para a percepção crescente de risco. Entre os profissionais do setor de petróleo e gás, 68% afirmaram que sua exposição cibernética aumentou no último ano, em contraste com 41% no setor elétrico — um sinal de alerta que evidencia a vulnerabilidade do ecossistema energético como um todo, especialmente em cadeias altamente digitalizadas e distribuídas.
Apesar da frequência elevada de incidentes e do reconhecimento do risco, a maturidade cibernética permanece em níveis preocupantemente baixos. Apenas 31% das empresas afirmam ter uma estratégia de cibersegurança com capacidade preditiva plenamente operacionalizada. A maioria segue atuando de forma reativa ou com iniciativas isoladas de monitoramento e resposta, sem uma visão integrada de gestão de riscos. Além disso, mais de um terço das organizações não possui um plano de longo prazo para segurança cibernética — lacuna crítica para um setor que depende da continuidade, previsibilidade e confiança institucional.
Entre os principais entraves identificados no relatório estão: a complexidade tecnológica das redes OT/TI, a baixa visibilidade sobre os ativos conectados, a dificuldade de integração entre áreas operacionais e de tecnologia, e a escassez de profissionais especializados em segurança cibernética aplicada à infraestrutura crítica.
Diante desse panorama, a Fortinet recomenda a adoção de arquiteturas unificadas de segurança cibernética, com foco em segmentação, automação, monitoramento contínuo e visibilidade OT/IT. Também reforça a necessidade urgente de investimento em capacitação de equipes, planejamento estratégico e alinhamento a frameworks consolidados, como o NIST Cybersecurity Framework (CSF), a ISO/IEC 27019 e os modelos de maturidade como o C2M2.
No contexto brasileiro, esse diagnóstico global ressoa com força: muitas empresas de energia seguem operando com estruturas mínimas de cibersegurança, especialmente em ambientes industriais. A ausência de regulação específica, somada à falta de governança integrada e de simulações práticas, mantém o setor em uma posição vulnerável frente a ameaças que evoluem rapidamente, tanto em sofisticação quanto em impacto potencial.
Apagões e Conflitos: Lições Reais sobre a Fragilidade Energética
A resiliência do setor elétrico não depende apenas de sua capacidade técnica, mas também de sua preparação para cenários de falha — acidentais ou deliberadas. Eventos recentes, tanto de origem técnica quanto cibernética, oferecem aprendizados cruciais para o Brasil e demais países em desenvolvimento energético e digital.
O caso ibérico: um apagão técnico com consequências sistêmicas
Em 28 de abril de 2025, às 12h33 (horário local), um apagão de grandes proporções atingiu simultaneamente a Espanha e Portugal, deixando a maior parte da Península Ibérica sem energia elétrica por cerca de 10 horas. A falha, de natureza técnica e não cibernética, afetou milhões de residências, empresas, hospitais e sistemas de transporte. Algumas regiões, como Andorra e o País Basco francês, também sofreram cortes momentâneos de segundos a minutos, evidenciando o efeito de propagação de distúrbios em redes altamente interconectadas.
Embora não tenha sido causado por um ataque cibernético, o episódio expôs a extrema interdependência e fragilidade da malha elétrica moderna, demonstrando como uma única falha física pode escalar rapidamente e impactar vários países. O evento serviu de alerta: se uma falha técnica já causa esse tipo de impacto, o que dizer de ataques cibernéticos intencionais, invisíveis e simultâneos?
A guerra invisível: ataques cibernéticos à infraestrutura ucraniana
Entre 2015 e 2022, a Ucrânia tornou-se laboratório real de ataques cibernéticos contra sistemas elétricos, protagonizados por grupos como Sandworm (ligado ao GRU russo) e Industroyer, um dos malwares industriais mais perigosos já identificados.
- Em dezembro de 2015, um ataque coordenado comprometeu três empresas de energia, causando apagões que afetaram mais de 225 mil pessoas.
- Os atacantes usaram spear phishing para entrar nas redes corporativas, moveram-se lateralmente até os sistemas SCADA, e reprogramaram disjuntores — desligando fisicamente o fornecimento de energia remotamente.
- Em 2016, o malware Industroyer (também conhecido como CrashOverride) mostrou-se capaz de interagir com protocolos industriais padronizados, tornando-se uma ameaça replicável a outros países com redes similares.
- Em 2022, durante a invasão russa, a Ucrânia voltou a ser alvo de ataques cibernéticos massivos, com tentativas de derrubar redes críticas e interromper serviços básicos.
Esses eventos confirmaram que softwares maliciosos voltados para infraestrutura crítica não só existem, mas já foram usados com sucesso, causando danos físicos reais e colapsos regionais — e demonstrando que a fronteira entre guerra digital e guerra convencional deixou de existir.
Aprendizados essenciais para o Brasil
- Redes altamente conectadas e automatizadas trazem eficiência, mas exigem segurança proporcional à sua complexidade;
- A falta de segmentação entre redes OT e TI — comum em concessionárias brasileiras — representa um risco crítico;
- É urgente adotar uma postura de resiliência cibernética proativa, com testes de penetração, simulações de ataque e integração entre engenharia, TI e gestão.
Fundamentos e Referenciais Técnicos
NIST SP 800-37 Rev. 2 – Ciclo de Vida da Segurança
A norma NIST Special Publication 800-37 Revision 2, publicada pelo Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia dos EUA (NIST), define o Risk Management Framework (RMF) — um modelo abrangente para gestão de riscos em sistemas de informação, especialmente aqueles que operam em ambientes de missão crítica, como os sistemas de automação e controle do setor elétrico.
O RMF vai além de um checklist técnico: ele estabelece um ciclo de vida completo da segurança, promovendo a integração entre engenharia, governança, operação e compliance. É totalmente compatível com os frameworks do NIST Cybersecurity Framework (CSF), da ISO/IEC 27001 e do modelo C2M2 para energia.
As 7 etapas do RMF aplicadas ao contexto energético
- Preparar (Prepare)
- Define o contexto organizacional da segurança;
- Estabelece papéis, responsabilidades, políticas e recursos;
- No setor elétrico, isso inclui alinhar a TI com a engenharia de proteção, operação e manutenção, e nomear um gestor de riscos ou comitê de cibersegurança com autoridade para tomada de decisão.
- Categorizar (Categorize)
- Classifica os sistemas segundo o impacto potencial à confidencialidade, integridade e disponibilidade (CIA);
- Em uma concessionária, por exemplo, um sistema de telemetria pode ser classificado como de alto impacto se sua falha comprometer o despacho ou a proteção da rede.
- Selecionar controles (Select)
- Baseia-se na biblioteca de controles do NIST SP 800-53, adaptada para o nível de impacto identificado;
- Inclui controles técnicos (como criptografia e firewalls), administrativos (políticas e auditorias) e físicos (acesso a salas técnicas e subestações).
- Implementar (Implement)
- Os controles selecionados são implementados tecnicamente e documentados;
- Isso inclui, por exemplo, a segmentação de redes OT/IT, uso de autenticação multifator nos sistemas SCADA e registro centralizado de eventos.
- Avaliar (Assess)
- Verifica se os controles estão operando de forma eficaz e se os riscos residuais são aceitáveis;
- Pode envolver testes de penetração, simulações baseadas em MITRE ATT&CK for ICS e auditorias cruzadas com consultores especializados.
- Autorizar (Authorize)
- A alta administração ou autoridade designada formaliza a autorização para operação (ATO) do sistema;
- No contexto brasileiro, poderia envolver o alinhamento com ANEEL, Operador Nacional do Sistema (ONS) ou diretrizes da Agência Nacional de Cibersegurança, caso instituída.
- Monitorar (Monitor)
- Realiza o monitoramento contínuo dos riscos, ameaças, alterações na configuração e eficácia dos controles;
- Envolve a integração de sistemas como SIEM, SOC e alertas em tempo real — além da revisão periódica dos planos de continuidade e resposta a incidentes.
Por que o RMF é importante para o setor elétrico?
- Flexível: Pode ser aplicado a sistemas de geração, transmissão, distribuição, DERs e até ambientes híbridos TI+OT.
- Orientado a risco real: Permite que decisões técnicas sejam embasadas em impacto operacional e estratégico.
- Compliant: Alinha-se a normas internacionais e facilita o atendimento a reguladores, parceiros e seguradoras.
- Evolutivo: Funciona como base para maturidade crescente — do nível reativo ao preditivo.
C2M2 – Maturidade Específica para Energia
Desenvolvido pelo Departamento de Energia dos Estados Unidos (U.S. DoE), o Cybersecurity Capability Maturity Model (C2M2) é um modelo estruturado de avaliação e evolução da maturidade cibernética voltado especialmente para infraestruturas críticas, como energia elétrica, óleo e gás, telecomunicações e água.
O C2M2 é amplamente adotado por utilities ao redor do mundo como ferramenta prática de autodiagnóstico, permitindo às organizações:
- Mapear lacunas nos controles de segurança;
- Priorizar investimentos conforme os ativos mais críticos;
- Medir avanços ao longo do tempo;
- Comunicar riscos e progresso à alta gestão e a reguladores.
Estrutura do C2M2
O modelo é dividido em 10 domínios de práticas, cobrindo aspectos organizacionais, operacionais e técnicos:
- Gestão de Ativos Cibernéticos
- Gestão de Riscos Cibernéticos
- Gestão de Identidades e Acessos
- Gestão de Conexões e Perímetro
- Detecção e Monitoramento de Anomalias
- Resposta a Incidentes
- Recuperação Operacional
- Governança e Conformidade
- Engajamento com Partes Interessadas
- Capacitação e Cultura de Segurança
Cada domínio é avaliado em três níveis de maturidade, com indicadores claros e objetivos de progresso. Por exemplo:
- Nível 1 – Inicial/Ad-hoc: Processos informais ou inexistentes.
- Nível 2 – Implementado: Práticas definidas e aplicadas, mas com cobertura parcial.
- Nível 3 – Gerenciado e Sustentável: Práticas institucionalizadas, auditáveis e alinhadas ao negócio.
Aplicação no Setor Elétrico
O C2M2 conta com versões específicas para eletricidade (ES-C2M2) e óleo e gás (ONG-C2M2), adaptadas à realidade de sistemas SCADA, subestações, centros de controle e plantas híbridas OT/IT.
Exemplos de uso no setor:
- Empresas de geração e transmissão podem usar o C2M2 para priorizar melhorias nos gateways OT, sistemas de autenticação, firewalls industriais e SOCs;
- Concessionárias de distribuição podem identificar fraquezas na gestão de ativos e resposta a incidentes, frequentemente negligenciadas em redes de média e baixa tensão;
- Startups e integradoras do setor energético podem aplicar o modelo em suas soluções para garantir segurança embarcada e aumentar a confiança junto a clientes regulados.
Integração com frameworks globais
O C2M2 se integra perfeitamente ao NIST CSF, sendo compatível com o ciclo do RMF (NIST SP 800-37) e com normas como:
- NIST SP 800-53 – Biblioteca de controles;
- ISA/IEC 62443 – Segurança para sistemas de automação industrial;
- ISO/IEC 27001 e 27019 – Segurança da informação e controle industrial.
Essa interoperabilidade torna o modelo valioso para organizações que precisam conformidade com múltiplos requisitos regulatórios e de governança.
Normas ABNT e Regulação da ANEEL
Apesar de o C2M2 ser uma ferramenta poderosa, sua adoção no Brasil ainda é voluntária e pouco incentivada por regulamentações locais. O que temos hoje:
- ABNT ISO/IEC 27001: Norma base de gestão da segurança da informação, reconhecida internacionalmente;
- ABNT ISO/IEC 27019: Complementa a 27001 com requisitos específicos para sistemas de controle industrial em energia, como subestações, redes de medição, automação e despacho;
- PRODIST (Módulo 3) da ANEEL: Estabelece diretrizes para continuidade, qualidade e confiabilidade no fornecimento de energia elétrica, porém ainda não especifica requisitos técnicos de segurança cibernética para redes OT ou sistemas críticos.
Esse cenário regulatório revela um vácuo normativo importante no Brasil, onde a segurança digital em infraestrutura energética ainda não é exigida de forma explícita, embora seja reconhecida como fundamental. A ausência de padrões obrigatórios compromete a homogeneidade da maturidade cibernética entre agentes do setor.
Capacitação Nacional: O Exercício Guardião Cibernético
O Exercício Guardião Cibernético (EGC) é atualmente a maior simulação brasileira de ciberataques a infraestruturas críticas, promovido pelo Ministério da Defesa e coordenado pelo Comando de Defesa Cibernética (ComDCiber), órgão subordinado ao Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas. Com edições anuais, o EGC tem como objetivo capacitar, avaliar e integrar instituições públicas e privadas para atuar de forma coordenada frente a cenários complexos de ameaças cibernéticas, com foco especial em setores essenciais como energia, finanças, telecomunicações, aviação civil, biossegurança, água, defesa e governo digital.
A edição mais recente, o EGC 6.0, foi realizada entre os dias 14 e 18 de outubro de 2024, simultaneamente em Brasília e São Paulo, com simulações realistas, ambientes virtuais de ataque e defesa, e gabinetes de crise formados por especialistas civis e militares. Reuniu 140 organizações e mais de 700 participantes, superando a escala da edição anterior. Participaram representantes das Forças Armadas, GSI, ANEEL, Banco Central, ONS, empresas públicas e privadas, universidades, e especialistas de mais de 30 países. A dimensão internacional do exercício foi ampliada com o envolvimento direto de delegações da OTAN, da Guarda Nacional de Nova York e do Fórum Ibero-Americano de Defesa Cibernética. Também houve integração com o Locked Shields 2024, realizado em abril na Europa, com participação ativa de militares brasileiros.
O EGC 6.0 focou em simulações envolvendo ataques avançados a sistemas SCADA, interrupções de fornecimento de energia, sabotagem de protocolos industriais como o IEC 60870-5-104 e manipulação de dados em redes OT. Casos como os ciberataques à Ucrânia e o apagão de abril de 2025 na Península Ibérica serviram de base para os cenários propostos, ainda que o evento ibérico não tenha sido confirmado como ataque digital. Os exercícios também validaram o Plano Nacional de Tratamento de Incidentes e fortaleceram a Rede Federal de Gestão de Incidentes Cibernéticos, sob coordenação do GSI/PR.
O ComDCiber lidera a condução estratégica das operações cibernéticas no Brasil, enquanto a Escola Nacional de Defesa Cibernética (ENaDCiber) atua na formação de civis e militares, promovendo cursos e treinamentos voltados à proteção de ativos críticos. Para o setor elétrico, a importância do EGC é clara: ele oferece um ambiente seguro para testar respostas diante de ameaças cibernéticas reais, envolvendo concessionárias de geração, transmissão e distribuição, integradores de tecnologia e órgãos reguladores. O exercício reforça a necessidade de articulação entre defesa, operação, regulação e inovação, consolidando uma cultura nacional de prontidão frente aos riscos digitais que ameaçam a infraestrutura energética do país.
Recomendações Estratégicas para o Setor Elétrico Brasileiro
O aumento da superfície de ataque digital no setor elétrico, associado à criticidade das operações OT e à crescente sofisticação das ameaças cibernéticas, exige do Brasil uma resposta sistêmica, coordenada e adaptada à realidade nacional. Esta seção apresenta um conjunto de recomendações estruturadas em cinco eixos estratégicos — governança, maturidade, arquitetura técnica, capacitação e regulação — que, em conjunto, oferecem um caminho factível para o fortalecimento da resiliência cibernética nas empresas do setor elétrico brasileiro.
Governança e Planejamento
A construção de uma postura cibernética eficaz começa com uma estrutura sólida de governança. Muitas concessionárias e agentes do setor ainda tratam a cibersegurança como um apêndice da TI corporativa, quando na verdade ela deve ser considerada um eixo estratégico da operação.
Recomenda-se:
- A criação de comitês de cibersegurança permanentes, com participação ativa das áreas de TI, engenharia, operação, jurídico e gestão de riscos;
- A nomeação de um responsável formal pela segurança cibernética (CISO ou equivalente) com autoridade para decisões orçamentárias, técnicas e de gestão de crise;
- O desenvolvimento e homologação de Planos de Resposta a Incidentes (PRI) específicos para ambientes OT/SCADA, com aprovação e respaldo da alta administração.
A governança deve garantir que a segurança cibernética seja integrada à estratégia corporativa e ao planejamento regulatório.
Maturidade e Conformidade
A ausência de métricas claras e referenciais maduros dificulta a evolução das empresas. Por isso, é fundamental adotar modelos validados internacionalmente que sirvam como bússola para o desenvolvimento técnico e institucional.
São recomendadas as seguintes ações:
- A adoção progressiva do modelo C2M2 (Cybersecurity Capability Maturity Model) como ferramenta de autodiagnóstico, planejamento e comunicação de progresso;
- A implementação do Risk Management Framework (RMF) do NIST, especialmente para sistemas críticos e centros de operação, assegurando um ciclo contínuo de identificação, mitigação e monitoramento de riscos;
- O alinhamento aos controles da ISO/IEC 27019, norma específica para segurança cibernética em sistemas de controle industrial no setor de energia, promovendo padronização e reconhecimento institucional.
Esses modelos são complementares, escaláveis e podem ser integrados aos processos existentes com o apoio de consultorias especializadas e órgãos reguladores.
Arquitetura Técnica de Proteção
A proteção eficaz de ativos industriais e corporativos depende de uma arquitetura técnica robusta, segmentada e monitorada continuamente. Muitos ataques recentes, inclusive os observados na Ucrânia e simulações do EGC, exploraram falhas justamente nessa camada.
Para isso, recomenda-se:
- A segmentação lógica e física entre redes OT e TI, com firewalls industriais e políticas de tráfego rigorosas entre domínios;
- A implantação de soluções de detecção e prevenção de intrusões (IDS/IPS) voltadas para protocolos industriais, autenticação multifator em sistemas críticos, e backups segregados com testes de restauração periódicos;
- A estruturação de um SOC (Security Operations Center) próprio ou terceirizado, com ferramentas de SIEM adaptadas para visibilidade em redes OT, incluindo alertas de integridade, comportamento anômalo e tentativas de acesso não autorizado.
Essa arquitetura deve ser tratada como um ativo estratégico, com evolução contínua e alinhamento ao ciclo de vida dos sistemas industriais.
Simulação, Teste e Capacitação
Investir em tecnologia sem treinar pessoas é ineficaz. A capacidade de resposta a incidentes depende, acima de tudo, da preparação prática e colaborativa das equipes. O Brasil já dispõe de estruturas como o Exercício Guardião Cibernético (EGC), que devem ser integradas à rotina empresarial.
Sugerem-se as seguintes ações:
- A realização periódica de Tabletop Exercises, simulando ataques cibernéticos com participação multidisciplinar (TI, engenharia, jurídico, comunicação, diretoria);
- A execução de simulações técnicas com base no MITRE ATT&CK for ICS, utilizando ambientes controlados ou digital twins para avaliar defesas, tempo de resposta e eficácia de planos de contingência;
- A criação de gabinetes internos de crise cibernética, com protocolos claros de comunicação, tomada de decisão e relacionamento com reguladores e imprensa.
Essas práticas ajudam a reduzir o tempo de resposta, fortalecem a confiança da equipe e aumentam a resiliência institucional.
Cooperação Institucional e Regulação
A cibersegurança no setor elétrico não é responsabilidade exclusiva de cada empresa — ela deve ser trabalhada como um esforço sistêmico e regulatório. A atuação coordenada entre agentes do setor, órgãos de defesa e reguladores é fundamental para garantir uniformidade de práticas e fortalecimento coletivo da cadeia energética.
Recomenda-se:
- Apoiar a ANEEL na atualização do PRODIST e de resoluções normativas, incluindo exigências mínimas de segurança cibernética para redes OT, centros de controle e sistemas de medição;
- Integrar-se à ENaDCiber (Escola Nacional de Defesa Cibernética) e ao ComDCiber, tanto para treinamentos quanto para estruturação de programas setoriais de capacitação e resposta;
- Estabelecer fóruns regionais e interestaduais de cibersegurança no setor elétrico, com apoio de associações como Abradee, Abrage, Apine e ONS, promovendo o compartilhamento de boas práticas, inteligência de ameaças e planos de resposta coordenada.
A cibersegurança deve ser tratada como parte da infraestrutura regulada, com incentivos à conformidade, auditoria técnica e comunicação clara com a sociedade.
Conclusão: Cibersegurança como Infraestrutura Crítica
A cibersegurança no setor elétrico deixou de ser uma preocupação periférica para se tornar um pressuposto de continuidade operacional, confiabilidade regulatória e soberania energética. Os dados revelados pelo relatório da Fortinet, somados às experiências recentes de apagões e ataques em zonas de conflito, mostram que os riscos não são mais hipotéticos — são frequentes, direcionados e com impacto sistêmico.
Em um cenário marcado por digitalização acelerada, integração de DERs, automação de subestações e operação remota, a superfície de ataque cresce de forma exponencial. Isso exige que o setor elétrico brasileiro abandone a postura reativa e adote uma estratégia estruturada de resiliência digital, alinhada a frameworks técnicos, exercícios práticos e articulação institucional.
Empresas que incorporam modelos como o NIST RMF e o C2M2, que adotam normas como a ISO/IEC 27019, e que se engajam ativamente em iniciativas nacionais como o Exercício Guardião Cibernético, não apenas aumentam sua proteção contra ameaças — elas constroem confiança perante acionistas, reguladores, consumidores e parceiros internacionais.
A cibersegurança deve ser reconhecida como um componente indissociável da infraestrutura crítica nacional. Investir em maturidade cibernética é garantir a continuidade do fornecimento de energia, a integridade dos dados operacionais e a estabilidade institucional do setor. É assegurar que a transição energética em curso no Brasil ocorra com segurança, confiabilidade e liderança.
O futuro da energia será cada vez mais digital — e os líderes desse futuro serão aqueles que souberem proteger o presente.