O avanço dos reatores nucleares modulares pequenos (SMRs) está redesenhando o cenário da energia global. Em 2025, o Reino Unido escolheu a Rolls-Royce como fornecedora preferencial de seus primeiros SMRs, apostando na soberania tecnológica, geração de empregos qualificados e segurança energética. Essa iniciativa exemplifica um modelo de transição energética com forte lastro industrial e estratégico — um contraste com a posição do Brasil, que ainda estuda o tema por meio de parceria com a estatal russa Rosatom.
Os SMRs são reatores compactos, seguros e produzidos em escala industrial. Operam de forma contínua, com alta confiabilidade e baixa emissão de carbono, sendo ideais para complementar fontes intermitentes como solar e eólica. Além disso, sua instalação descentralizada permite o atendimento de regiões remotas ou estratégicas, com menor uso de solo e maior resiliência do sistema elétrico.
O Brasil possui ativos institucionais e técnicos relevantes no setor nuclear (CNEN, IPEN, Eletronuclear, Marinha), além de experiência industrial consolidada. No entanto, a dependência tecnológica externa permanece um entrave. O atual modelo de P&D da ANEEL também passa por reformulação, e há preocupação de que o novo formato restrinja a pesquisa estruturante e afaste startups e universidades. A fuga de cérebros é um sintoma dessa desconexão entre potencial científico e estratégia nacional.
Os SMRs oferecem uma rara oportunidade de articular política industrial, capacitação técnica, inclusão energética e protagonismo geopolítico. Para isso, o Brasil precisa ir além da importação de tecnologia. É necessário estruturar uma política de inovação energética que valorize a pesquisa local, forme talentos, mobilize cadeias produtivas e estabeleça parcerias tecnológicas diversificadas e estratégicas.
Exemplos como o projeto argentino CAREM — que prevê uso de SMRs na Patagônia para alimentar datacenters — demonstram a viabilidade e o valor de projetos descentralizados com aplicações críticas em territórios com infraestrutura limitada. O Brasil tem regiões similares que podem se beneficiar desse modelo, contribuindo para o desenvolvimento regional e a segurança nacional.
Por fim, o texto reforça que transição energética e autonomia tecnológica são inseparáveis. Países que dominam as tecnologias da energia do futuro não apenas abastecem seus sistemas com eficiência — eles lideram cadeias de valor, exportam soluções e moldam regras internacionais. O Brasil precisa decidir se será protagonista nesse novo ciclo ou se continuará como consumidor de soluções externas.
O caminho está aberto. Os SMRs são uma porta. Cabe ao Brasil atravessá-la com ambição, inteligência e estratégia.
Reatores Modulares: uma escolha estratégica do Reino Unido
Em 10 de junho de 2025, o Reino Unido anunciou oficialmente a seleção da Rolls-Royce SMR como fornecedora preferencial para o desenvolvimento dos primeiros reatores nucleares modulares pequenos (Small Modular Reactors – SMRs) do país. A decisão marca um ponto de inflexão na política energética britânica e revela uma estratégia clara de alinhar segurança energética, industrialização local e liderança tecnológica em transição energética.
Diferentemente de iniciativas pautadas apenas pela busca de menor custo, a escolha da Rolls-Royce, empresa com profundo enraizamento no setor industrial britânico, reforça o interesse do governo em criar valor nacional ao longo de toda a cadeia produtiva. Ao investir em uma empresa britânica com expertise comprovada em engenharia nuclear, o Reino Unido sinaliza seu compromisso com o fortalecimento da sua capacidade soberana de geração e gestão de energia estratégica.
O programa, conduzido pela agência pública Great British Energy – Nuclear, prevê um investimento estimado de £17 bilhões, com potencial para gerar milhares de empregos qualificados em áreas como engenharia, construção civil, cadeia de suprimentos e operação de plantas nucleares. Isso posiciona os SMRs não apenas como uma resposta tecnológica às metas de descarbonização, mas como uma alavanca de crescimento industrial e geração de renda qualificada em regiões britânicas fora dos grandes centros produtivos.
Além dos ganhos econômicos, a decisão também reforça uma política de segurança energética autônoma. Em um contexto geopolítico instável — agravado por guerras, sanções, variações no preço do gás natural e tensões no fornecimento internacional de energia —, contar com uma fonte firme, previsível e desenvolvida internamente é uma vantagem estratégica. Os SMRs, por serem modulares, podem ser implantados de forma gradual, próximos aos centros de consumo, com menor impacto territorial e menor dependência de grandes linhas de transmissão.
O Reino Unido também busca assumir uma posição de liderança tecnológica global, especialmente no contexto europeu. A iniciativa com a Rolls-Royce visa não apenas atender à demanda interna, mas também posicionar o país como exportador de soluções em SMR para outros mercados, como Ásia, América Latina e África, especialmente em países que buscam alternativas viáveis à geração fóssil e não têm capacidade para construir grandes usinas nucleares convencionais.
Ao estruturar um programa baseado em expertise nacional, política pública ativa e visão de longo prazo, o Reino Unido dá um passo à frente na corrida pela soberania energética e pelo domínio de tecnologias críticas da próxima década. E, ao fazer isso com uma empresa nacional, envia um sinal claro: inovação energética é também estratégia de Estado. É sobre garantir que a energia que move um país seja também uma fonte de independência, desenvolvimento e liderança.
Essa experiência pode inspirar países como o Brasil a adotarem uma abordagem mais estruturada, associando tecnologia de ponta a políticas industriais robustas e programas de capacitação técnica voltados para o futuro.
SMRs combinam inovação, segurança e operação contínua
Os Small Modular Reactors (SMRs) representam uma nova geração de tecnologia nuclear, projetada para responder aos desafios energéticos do século XXI. São reatores compactos, padronizados e fabricados em série, com capacidade de geração entre 50 MW e 500 MW por unidade — uma escala que permite maior flexibilidade de implantação em comparação com usinas nucleares convencionais.
O primeiro diferencial dos SMRs é sua arquitetura modular, que permite que os reatores sejam construídos em ambientes industriais controlados e, posteriormente, transportados para os locais de instalação. Essa abordagem reduz os riscos de atraso e de sobrecustos típicos das obras de infraestrutura nuclear tradicional, além de garantir padrões consistentes de qualidade e segurança em todo o processo de fabricação.
Do ponto de vista operacional, os SMRs foram concebidos para funcionar de forma contínua e estável, com altíssima confiabilidade. Eles podem operar em regime de base, ou seja, gerando energia 24 horas por dia, 7 dias por semana, com fatores de capacidade superiores a 90%. Isso os torna uma solução valiosa para complementar fontes intermitentes como solar e eólica, garantindo o equilíbrio e a segurança dos sistemas elétricos que caminham para maior participação de renováveis.
A segurança é outro pilar central do design dos SMRs. Muitos projetos utilizam sistemas de resfriamento passivo, que não dependem de ação humana ou energia externa para evitar o superaquecimento em caso de falha. Além disso, o menor porte dos reatores e o uso de tecnologias modernas facilitam o controle, a proteção física e a contenção de riscos. Essas melhorias foram incorporadas com base nas lições aprendidas de eventos passados, como Fukushima, e refletem o avanço da engenharia nuclear nas últimas décadas.
Os SMRs também oferecem reduzido impacto ambiental direto, tanto em termos de uso do solo quanto de emissões de gases de efeito estufa. Como não queimam combustível fóssil, não emitem CO₂ durante a operação. Além disso, ocupam áreas muito menores do que usinas solares ou eólicas de potência equivalente, o que os torna ideais para ambientes urbanos, industriais ou locais com restrição territorial.
Em contextos geopolíticos sensíveis ou regiões isoladas, os SMRs podem ser implantados de forma descentralizada, inclusive com versões móveis, para fornecer energia a bases militares, comunidades remotas ou polos produtivos longe dos grandes centros. Isso os transforma em uma solução não apenas energética, mas também estratégica para resiliência e autonomia regional.
Na prática, os SMRs combinam o melhor da energia nuclear — confiabilidade, densidade energética e baixa emissão — com a flexibilidade operacional e a escalabilidade exigidas pela nova economia de baixo carbono. Por isso, estão ganhando espaço no planejamento energético de países que desejam acelerar a transição energética sem abrir mão da segurança, da previsibilidade e da soberania tecnológica.
Enquanto o mundo busca soluções viáveis para garantir energia limpa, acessível e constante, os SMRs surgem como uma das propostas mais promissoras e maduras para compor a matriz elétrica do futuro. Uma solução que une inovação tecnológica com inteligência estratégica.
Brasil avança com parceria internacional e abre caminho para adoção de SMRs
Em maio de 2025, o governo brasileiro anunciou um acordo de cooperação com a estatal russa Rosatom para desenvolver estudos e projetos conjuntos envolvendo reatores nucleares modulares pequenos (SMRs). A iniciativa foi apresentada como parte da estratégia nacional de diversificação da matriz elétrica e de redução de emissões, além de atender à necessidade de levar energia a regiões remotas com menor custo ambiental.
A Rosatom é uma das referências mundiais em tecnologia nuclear, com décadas de experiência na operação de usinas e no desenvolvimento de soluções modulares. A estatal russa já opera reatores SMRs comerciais embarcados — como os utilizados em navios quebra-gelo no Ártico — e lidera projetos semelhantes em países da Ásia e do Leste Europeu. Para o Brasil, a parceria representa uma porta de entrada para a aprendizagem acelerada, com acesso a projetos maduros, práticas operacionais testadas e transferência de conhecimento.
No entanto, a escolha da Rússia como parceira prioritária levanta desafios estratégicos importantes. O país está envolvido em um conflito militar com a Ucrânia e sofre sanções comerciais e financeiras impostas por diversos países do Ocidente. Isso pode afetar o acesso a componentes, atrasar cronogramas e criar obstáculos para a integração internacional de futuros projetos brasileiros. Em um setor sensível como o nuclear, a previsibilidade e a confiança geopolítica são tão relevantes quanto a tecnologia em si.
Além disso, o acordo atual não prevê, até o momento, a nacionalização da tecnologia nem a criação de um ecossistema industrial local. O risco é repetir o modelo de dependência adotado em outros segmentos da matriz elétrica brasileira, como energia solar e eólica, em que o país importa a maior parte dos equipamentos e softwares utilizados. Isso limita o desenvolvimento de uma cadeia produtiva nacional e reduz a capacidade de geração de empregos qualificados e inovação.
Ainda assim, a parceria com a Rosatom sinaliza um avanço relevante. Pela primeira vez, o Brasil declara publicamente interesse em explorar os SMRs como alternativa viável à geração tradicional. O Ministério de Minas e Energia já constituiu um grupo de trabalho para estudar o potencial do país nesse campo, incluindo diagnósticos de aplicação regional, aspectos regulatórios, segurança e viabilidade econômica. Esse movimento, se bem estruturado, pode abrir espaço para um programa mais amplo, com múltiplas parcerias internacionais e estímulo à pesquisa local.
Diversificar alianças tecnológicas será essencial. Países como o Reino Unido, Estados Unidos, Canadá e Coreia do Sul já possuem modelos comerciais de SMRs em estágios avançados. O Brasil pode — e deve — buscar parcerias também com esses atores, equilibrando seu portfólio internacional e garantindo acesso a soluções distintas, adaptáveis aos diversos contextos nacionais.
Além das alianças, o desenvolvimento de capacidades locais deve ser um objetivo central. Isso significa investir em centros de pesquisa, atualizar currículos de engenharia, formar técnicos especializados, criar editais de inovação e preparar o ambiente regulatório para receber essa nova geração de reatores. Um programa bem conduzido pode transformar o Brasil não apenas em usuário, mas também em produtor e exportador de soluções em SMR adaptadas à realidade latino-americana.
A decisão de iniciar o diálogo com a Rússia pode ser vista como um primeiro passo. Mas os passos seguintes precisam ser mais ambiciosos, mais amplos e mais bem distribuídos. O Brasil tem a oportunidade de construir um caminho próprio na energia nuclear modular — um caminho que una cooperação internacional, valorização do conhecimento local e planejamento estratégico de longo prazo.
Reduzir a dependência tecnológica é essencial para o desenvolvimento soberano
O debate sobre adoção de novas tecnologias no setor de energia não pode ser separado da discussão sobre soberania tecnológica. No contexto dos reatores nucleares modulares pequenos (SMRs), esse tema ganha ainda mais relevância. Embora seja natural que países em desenvolvimento iniciem sua trajetória com apoio de nações mais avançadas tecnologicamente, a dependência prolongada impõe limites à autonomia, à inovação e à geração de valor econômico local.
No caso brasileiro, a experiência com energias renováveis recentes oferece uma lição clara. O país se tornou um dos maiores mercados do mundo em energia solar e eólica, mas importa a maior parte dos painéis fotovoltaicos, turbinas e componentes eletrônicos. Isso resultou em forte crescimento da capacidade instalada, mas com baixo impacto no fortalecimento da indústria nacional. Pouco se desenvolveu internamente em termos de pesquisa, fabricação, design de sistemas ou propriedade intelectual.
Repetir esse padrão no campo dos SMRs seria um erro estratégico. A energia nuclear envolve setores sensíveis, de alta complexidade e forte controle regulatório. Isso significa que confiar apenas em fornecedores estrangeiros — seja para engenharia, operação ou manutenção — expõe o país a riscos técnicos, econômicos e geopolíticos, especialmente em um mundo marcado por tensões comerciais e instabilidade internacional.
Por outro lado, internalizar conhecimento e desenvolver tecnologia nacional não significa partir do zero. O Brasil já possui instituições reconhecidas no campo nuclear, como o IPEN, a CNEN, a Eletronuclear e o projeto do submarino nuclear da Marinha. Esses ativos técnicos e humanos podem ser reorientados e conectados a novos polos de inovação, startups, universidades e empresas privadas. Isso exige coordenação, investimentos e, sobretudo, uma visão estratégica de Estado.
A criação de uma cadeia produtiva nacional voltada aos SMRs também representa uma oportunidade industrial. Ela pode envolver desde a fabricação de componentes e módulos, até o desenvolvimento de sistemas digitais de controle, softwares de simulação, serviços de engenharia, logística especializada e reciclagem de materiais. Com políticas públicas bem desenhadas, é possível estimular a entrada de novos atores e gerar empregos qualificados em áreas de alto valor agregado.
Esse movimento também fortalece a resiliência energética e a segurança nacional. Um país que domina sua infraestrutura crítica tem mais capacidade de reagir a crises, manter sua soberania regulatória e negociar com outros mercados em condições mais equilibradas. A independência tecnológica permite tomar decisões com base no interesse público, e não nas limitações impostas por terceiros.
Reduzir a dependência tecnológica no setor de energia — especialmente em tecnologias estratégicas como os SMRs — não é um luxo, mas uma condição necessária para transformar energia em desenvolvimento de longo prazo. Significa criar as bases para que o Brasil não apenas consuma energia limpa e segura, mas também a projete, produza e exporte com inteligência. É isso que transforma uma solução técnica em um verdadeiro projeto de país.
Oportunidade para fortalecer a base industrial e inovadora brasileira
A adoção de reatores nucleares modulares pequenos (SMRs) pode funcionar como um poderoso catalisador para a reindustrialização qualificada do Brasil. Mais do que um projeto de geração de energia, os SMRs representam uma plataforma tecnológica de alta complexidade, com potencial para integrar setores variados da economia nacional — da engenharia pesada à automação digital, da metalurgia avançada ao desenvolvimento de software e sistemas embarcados.
O modelo modular desses reatores é especialmente favorável à criação de uma cadeia produtiva descentralizada e escalável. Como os componentes podem ser fabricados em série, em ambientes industriais padronizados, abre-se uma oportunidade concreta para o envolvimento de pequenas, médias e grandes empresas nacionais em processos como fundição, usinagem, montagem eletromecânica, revestimentos especiais, sensores, válvulas, trocadores de calor, estruturas metálicas e muito mais.
Além da engenharia mecânica e civil, a adoção dos SMRs exige soluções sofisticadas em automação, instrumentação e controle digital. Sistemas de segurança, supervisão remota, inteligência artificial para predição de falhas e cibersegurança são áreas-chave que podem ser desenvolvidas no Brasil com apoio de startups, centros de pesquisa e universidades. Essa integração entre indústria tradicional e inovação digital é exatamente o tipo de conexão que o país precisa fortalecer para modernizar sua base produtiva.
Outro aspecto positivo é a demanda por qualificação técnica e profissional de longo prazo. A implantação de SMRs requer engenheiros nucleares, projetistas, técnicos em eletricidade, soldadores especializados, operadores de plantas e analistas de dados. Ao estimular a formação desses perfis, o Brasil não apenas responde à necessidade imediata dos projetos, mas fortalece sua posição como um polo de conhecimento e inovação na área energética.
Os benefícios não se restringem às regiões mais desenvolvidas. A distribuição territorial dos projetos de SMR pode gerar dinamismo econômico em áreas fora do eixo Sudeste-Sul, contribuindo para o desenvolvimento regional com base em infraestrutura crítica. A instalação de unidades industriais de médio porte para produção ou montagem de módulos, por exemplo, pode ativar economias locais e gerar emprego qualificado em cidades médias.
O Brasil já provou sua capacidade de construir obras de engenharia complexas, como hidrelétricas, refinarias e plataformas offshore. Também possui experiência acumulada em energia nuclear, com operação de usinas em Angra e projetos da Marinha. O desafio agora é transformar esse conhecimento em uma plataforma de exportação de soluções tecnológicas e industriais, inserindo o país de forma ativa na cadeia global de valor da energia nuclear modular.
A chegada dos SMRs é uma chance real de reposicionar a indústria brasileira para o século XXI, com foco em inovação, sustentabilidade e alta especialização. Com planejamento, governança e políticas públicas bem desenhadas, o Brasil pode deixar de ser apenas consumidor de tecnologia para se tornar um fornecedor estratégico de componentes, serviços e conhecimento, ampliando sua relevância econômica e geopolítica na transição energética global.
Capacitação técnica e infraestrutura nacional como diferenciais competitivos
Um dos ativos mais valiosos que o Brasil possui para avançar na agenda dos reatores nucleares modulares pequenos (SMRs) é o seu capital humano qualificado e sua base institucional acumulada no setor nuclear. O país conta com um ecossistema técnico-científico robusto, que inclui universidades, centros de pesquisa, instituições públicas e projetos estratégicos de defesa. Esse conjunto de competências representa um diferencial competitivo que precisa ser reconhecido, articulado e fortalecido — e não negligenciado.
Entre os destaques estão a CNEN, o IPEN, a Eletronuclear e o programa nuclear da Marinha, que desenvolve tecnologias para propulsão desde os anos 1980. São estruturas com conhecimento consolidado, infraestrutura técnica instalada e quadros especializados. Esse patrimônio imaterial — acumulado ao longo de décadas — tem potencial para ser reativado e colocado a serviço do desenvolvimento de tecnologias civis como os SMRs, especialmente se combinado com o dinamismo das universidades e empresas inovadoras.
Contudo, o Brasil vive um momento ambíguo. Ao mesmo tempo em que se abre à discussão sobre novas tecnologias energéticas, como os SMRs, o país revê seu modelo de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PDI) no setor elétrico, sob coordenação da ANEEL. A proposta de reformulação do programa, ainda em consolidação, busca maior eficiência e aproximação com o mercado. Mas há sinais de que isso pode resultar na redução do espaço destinado à pesquisa científica estruturante — justamente aquela que sustenta a base técnica necessária para que o Brasil desenvolva, em vez de apenas consumir, tecnologias estratégicas.
Historicamente, o P&D da ANEEL foi um dos poucos instrumentos de fomento direto à ciência aplicada em energia, conectando academia e setor produtivo. Ao priorizar projetos com aplicação imediata e retorno de curto prazo, o novo modelo pode enfraquecer a capacidade de gerar conhecimento em áreas como materiais avançados, reatores, digitalização de redes e armazenamento de energia. Esse tipo de pesquisa demanda tempo, continuidade e liberdade metodológica — características que não se ajustam facilmente a editais com metas rígidas e foco em produtos finalizados.
Além disso, a nova modelagem impõe entraves que podem afastar startups, universidades e pequenos desenvolvedores, dificultando o ingresso de novos agentes inovadores. Ao transformar a lógica do P&D em algo mais próximo da compra de soluções prontas, o programa corre o risco de perder sua função transformadora.
Nesse cenário, emerge ainda um efeito colateral preocupante: a fuga de cérebros. Jovens talentos, pesquisadores experientes e profissionais altamente capacitados, diante da escassez de recursos, da instabilidade nos programas de fomento e da falta de perspectiva, buscam oportunidades em centros de excelência no exterior. Isso representa uma perda dupla: perde-se o investimento já feito em formação e perde-se o protagonismo em áreas tecnológicas sensíveis. A ciência brasileira precisa ser mantida, valorizada e convocada a contribuir com os desafios nacionais — não empurrada para fora.
Torna-se, portanto, urgente valorizar os ativos nacionais já existentes. O Brasil possui uma rede de competências técnicas e infraestrutura científica que, se conectada de forma estratégica ao setor produtivo, pode liderar o desenvolvimento de SMRs adaptados às necessidades regionais. Com apoio adequado, essa base pode gerar empregos de alta qualificação, atrair investimentos privados e posicionar o país como exportador de conhecimento e tecnologia em energia limpa.
Qualquer política pública voltada ao avanço de novas tecnologias — seja no campo nuclear, do hidrogênio ou das baterias — deve reconhecer o papel central da pesquisa aplicada como motor da soberania tecnológica. Sem isso, o Brasil continuará preso à lógica da dependência: comprando soluções, pagando caro e perdendo a chance de crescer com inteligência.
Valorizar a ciência, investir na formação de pessoas, modernizar laboratórios, fixar talentos e articular esforços entre governo, universidades e empresas não é um custo — é uma estratégia de desenvolvimento nacional. E é exatamente isso que os SMRs exigem: visão de longo prazo, compromisso com o conhecimento e a coragem de assumir protagonismo.
Aplicações dos SMRs em territórios estratégicos e regiões isoladas
Um dos maiores diferenciais dos reatores nucleares modulares pequenos (SMRs) é sua capacidade de operar de forma segura, contínua e independente em locais de difícil acesso ou com infraestrutura energética limitada. Ao contrário de grandes usinas térmicas ou hidrelétricas, que exigem redes complexas de transmissão e logística, os SMRs podem ser instalados próximos ao ponto de consumo, o que reduz perdas, amplia a eficiência e leva energia limpa a territórios estratégicos e regiões isoladas.
Essa característica torna os SMRs particularmente atrativos para países com vasta extensão territorial e desigualdade no acesso à energia — como o Brasil. Regiões da Amazônia Legal, do semiárido nordestino e de áreas de fronteira enfrentam desafios históricos relacionados ao abastecimento elétrico. Muitas dessas localidades dependem até hoje de termelétricas a óleo diesel, caras, poluentes e logísticamente complexas. Substituí-las por reatores compactos, silenciosos e de operação contínua pode representar uma mudança estrutural na inclusão energética dessas populações.
Além do aspecto social, há um componente estratégico e produtivo. O Brasil possui centros de mineração, agronegócios, polos industriais e instalações militares que operam em áreas remotas e vulneráveis a oscilações no fornecimento elétrico. O uso de SMRs nessas regiões pode garantir autonomia energética, previsibilidade de operação e redução de custos, contribuindo para a competitividade dos setores produtivos e para a segurança nacional.
O exemplo da Argentina ilustra bem esse potencial. O país desenvolve, por meio da estatal INVAP e da empresa NA-SA, o projeto CAREM, um dos primeiros SMRs do hemisfério sul. Uma das aplicações estratégicas previstas é a instalação de reatores modulares na Patagônia, região de difícil acesso logístico, mas altamente atrativa para a instalação de datacenters de alta performance. O raciocínio é claro: em tempos de economia digital e demanda por computação intensiva, centros de dados precisam de energia estável, limpa e contínua — exatamente o que os SMRs podem oferecer, mesmo longe dos grandes centros urbanos.
Esse tipo de solução também é altamente replicável no Brasil. Estados como Roraima, Acre, Maranhão ou partes do Centro-Oeste reúnem condições similares: baixa densidade populacional, limitação de acesso rodoviário, presença de cadeias produtivas relevantes e ausência de infraestrutura robusta de transmissão. A instalação de SMRs, nesse caso, não apenas resolve um problema técnico, mas redefine o papel dessas regiões no mapa energético e econômico do país.
Além disso, os SMRs podem ser integrados a microrredes inteligentes, operando de forma autônoma ou em parceria com outras fontes renováveis, como solar e biomassa. Essa flexibilidade permite atender comunidades indígenas, assentamentos rurais, distritos industriais e até bases científicas em áreas remotas, com redução da pegada ambiental e aumento da resiliência local.
É importante ressaltar que a resiliência do sistema elétrico nacional também se fortalece com a descentralização da geração. Ao dispersar pontos de produção de energia e evitar a dependência de grandes linhas de transmissão vulneráveis a falhas climáticas ou técnicas, os SMRs contribuem para a estabilidade e segurança da matriz elétrica brasileira — algo que será cada vez mais relevante em um cenário de eventos extremos e aumento da demanda digital.
Em resumo, os SMRs não são apenas uma alternativa à geração centralizada. São uma ferramenta estratégica para a ocupação produtiva, a integração nacional e a ampliação do acesso à energia limpa com inteligência territorial. E o Brasil, com seu tamanho continental e desigualdades regionais, tem talvez um dos maiores potenciais do mundo para aplicar essa tecnologia de forma transformadora.
Transição energética e autonomia tecnológica caminham juntas
A transição energética global é, antes de tudo, uma transição estratégica. Não se trata apenas de substituir combustíveis fósseis por fontes renováveis, mas de decidir quem irá dominar as tecnologias que movem o mundo nas próximas décadas. Nesse cenário, os reatores nucleares modulares pequenos (SMRs) não devem ser vistos apenas como uma alternativa técnica de geração elétrica. Eles representam uma janela histórica para o Brasil construir sua própria trajetória energética, com autonomia, inovação e protagonismo.
A consolidação de uma matriz elétrica de baixo carbono requer fontes firmes, seguras e despacháveis. Os SMRs atendem a esses critérios com vantagens adicionais: operação contínua, baixa emissão de gases de efeito estufa, ocupação territorial reduzida e compatibilidade com diferentes ambientes geográficos e produtivos. Mas o que os torna particularmente valiosos é sua conexão com setores de alta tecnologia, como engenharia avançada, materiais especiais, robótica, inteligência artificial, automação e cibersegurança.
Países que liderarem o desenvolvimento e a aplicação dos SMRs não apenas garantirão energia para si mesmos — estarão criando novas fronteiras de exportação, atraindo investimentos estratégicos e moldando os padrões técnicos e regulatórios globais. O Reino Unido, ao escolher a Rolls-Royce como fornecedora nacional, não está apenas respondendo à crise climática; está apostando na construção de uma nova vantagem competitiva global, baseada em tecnologia de alta densidade intelectual.
O Brasil tem a chance de seguir esse caminho, mas com um diferencial: seu histórico de competência em engenharia pesada, suas universidades de ponta, seus centros de pesquisa nuclear e a existência de um sistema elétrico já majoritariamente renovável. Com planejamento, governança e visão de longo prazo, o país pode usar os SMRs como alavanca para reposicionar sua indústria, desenvolver talentos e projetar influência tecnológica e energética na América Latina e além.
Para isso, é essencial abandonar a ideia de que transição energética se limita à troca de fontes. Ela precisa ser compreendida como um projeto nacional de desenvolvimento sustentável, econômico e científico. Isso significa apoiar a ciência, fomentar startups de base tecnológica, criar ambientes regulatórios que estimulem a experimentação e garantir que cada real investido em energia contribua também para formação de capital intelectual.
A autonomia tecnológica é uma condição para que o Brasil possa definir suas próprias rotas energéticas — sem depender de fornecedores estrangeiros, sem importar soluções fechadas, sem ficar à margem dos avanços que hoje se aceleram no hemisfério Norte. A energia do futuro não será apenas limpa: será estratégica, digital e geopolítica. E os países que liderarem essa transformação não serão apenas consumidores — serão formadores de padrões e exportadores de soluções.
Nesse sentido, os SMRs não devem ser vistos como uma solução pontual, mas como um vetor estruturante para o Brasil se reinventar como potência energética e tecnológica. Uma aposta que exige coragem política, coordenação institucional e um compromisso inequívoco com a inovação como motor de soberania.
Porque no século XXI, quem controla a tecnologia que gera energia, controla também as condições para crescer com liberdade, segurança e dignidade. E isso é exatamente o que o Brasil merece conquistar.